Prerrogativas da Fazenda Pública em Juízo X Princípio da Isonomia e sua consequencia na efetividade do processo

Prerrogativas da Fazenda Pública em Juízo X Princípio da Isonomia e sua consequencia na efetividade do processo

Trata da incompatibilidade de manutenção das prerrogativas da Fazenda Pública quando em juízo na defesa do interesse público secundário, devendo ser mantida a igualdade de condições entre as partes, sob pena de comprometimento da efetividade do processo judicial.

As prerrogativas da Fazenda Pública já foram tema de muitos debates pela doutrina pátria, considerando o impasse entre a natureza da Constituição Federal brasileira de 1988, cujo principal objeto seria a limitação do Poder Público em face das garantias fundamentais do cidadão e a legislação infraconstitucional que, em sentido diametralmente oposto, conferiu ao Poder Público diversas prerrogativas na condição de litigante em processo judicial em face de um particular.

Vários são os dispositivos de lei que traduzem as prerrogativas da Fazenda Pública em Juízo em face do particular, tais como o artigo 99 do Código de Processo Civil que dispõe sobre o privilégio de foro na Capital do Estado ou do território quando em litígio; o artigo 188 do Código de Processo Civil que prevê prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer; o artigo 475, II, do Código de Processo Civil que determina o reexame necessário das sentenças contra si proferidas; o artigo 100 da Constituição Federal que prevê procedimento especial para pagamento de valores por meio de precatório quando executada a Fazenda Pública; o artigo 2ºB da lei 9494/94 que estabelece a restrição de execução provisória de sentença em desfavor da Fazenda; além da lei 8437/92 que restringe a concessão de liminar ou tutela antecipada em desfavor da Fazenda; dentre outros.

As prerrogativas da Fazenda Pública têm fundamento no regime jurídico público ou administrativo ao qual está submetida a Administração Pública, que atua na defesa do interesse público, traduzido pela busca do bem comum, pela busca da satisfação da coletividade que deve ser preservada em detrimento do interesse particular. Não é à toa que o Direito Administrativo estabelece como um dos princípios da Administração Pública o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, visando o equilíbrio das relações.

Parte da doutrina entende que tais prerrogativas violam o princípio da isonomia conferido ao particular pelo artigo 5° da Constituição Federal, na medida em que o particular fica em situação de extrema desvantagem perante a Fazenda Pública, comprometendo, inclusive, a efetividade da tutela jurisdicional diante da demora procedimental na solução da lide (BUENO, 2008, p.320).

Por outro lado, a possibilidade de manutenção de tais prerrogativas em face do particular, sem ferir o princípio da isonomia, justifica-se pelo princípio da supremacia do interesse público, segundo, inclusive, entendimento do STF:

“Não se equipara ao particular a Fazenda Pública. A Relevância do interesse público, por esta preservado, separa-a, na sua natureza, do particular.” (STF, RE 83041, Rel. Min. Cordeiro Guerra, publicado no DJU de 15.08.80).

“RECURSO. IGUALDADE PROCESSUAL. PRIVILÉGIO DA FAZENDA PÚBLICA. ART. 74 DO DL 960/38. Não ofende o princípio da isonomia, aplicável a igualdade das partes no processo, o conferimento de tratamento especial à Fazenda Pública, o que se faz em atenção ao peso e superioridade dos seus interesses em jogo.” (STF, RE 83432, Relator Min. Leitão de Abreu, publicado no DJU de 06.06.80).

Quando se fala em interesse público, deve-se atentar para o alcance dessa expressão. A doutrina subdivide o interesse público em primário, segundo o qual a Administração Pública atua na defesa dos interesses da coletividade, exercendo sua real atividade de forma imparcial e visando sempre o bem comum; e secundário, segundo o qual a Administração Pública atua em defesa dos seus próprios interesses, de cunho patrimonial, exercendo sua atividade de gestão de forma parcial.

O interesse público que, de fato, implica o uso de prerrogativas pela Fazenda Pública é justamente o interesse público primário, razão de ser do Estado, sendo o interesse público secundário, no dizer de Marçal Justen Filho “(...) nem ao menos são “interesses”, na acepção jurídica do termo. São meras conveniências circunstanciais (...)”. (2006, p.40)

Em seguida, há que se observar a finalidade dos princípios em conflito: o princípio da isonomia, que garante a todos igual tratamento legal, inclusive no âmbito processual; e o princípio da supremacia do interesse público que se quer dizer pela doutrina e jurisprudência (primário) que garante a proteção do interesse coletivo, da maioria da sociedade, de forma que o interesse de um indivíduo não prevaleça sobre os demais, o que, caso contrário, seria um dissenso.

Na verdade, é preciso tratar os desiguais desigualmente na medida de suas desigualdades. A concepção de isonomia pelo famoso filósofo grego Aristóteles vem se somar a essa justificativa, pois para se chegar à igualdade deve-se buscar o justo, que é também o proporcional, ou seja, um meio-termo entre situações que se colocam em extremidades desproporcionais, sendo da mais lídima justiça e proporcionalidade a prevalência do interesse da coletividade sobre o interesse de um mero particular, sob pena de se desestabilizar as relações jurídico-sociais, não havendo que se falar em afronta ao princípio da isonomia quando se fala em prerrogativas da Fazendo Pública inerentes ao interesse público primário.

Ressalte-se inclusive que, como disse Maximiliano, as normas que instituem privilégios são consideradas normas excepcionais, daí porque merecem uma interpretação restritiva ao invés de extensiva, já que constituem uma exceção à regra geral, devendo-se limitar a incidência dos privilégios da Fazenda Pública ao interesse público primário. (1998, p.232)

A Fazenda Pública, quando em juízo, na maioria das vezes, não atua no real sentido da aplicação do princípio da supremacia do interesse público que se quer dizer pela doutrina e jurisprudência, pois não está representando o interesse da coletividade e sim o do próprio Estado, sendo o interesse público secundário mais evidente em se tratando de Fazenda Pública em Juízo, o que garante a aplicação do princípio da igualdade, vez que se trata de partes litigantes, cada uma em defesa do seu próprio direito.

Nesse prisma, de acordo com Celso Antônio Bandeira de Melo (2003, p.57):

“o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas (as demais pessoas físicas e jurídicas), concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes (...) não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer sujeito”¹.


Tome-se, como exemplo, uma Ação de indenização contra a União. Nesse caso, tal ente está a defender seu próprio interesse na qualidade de réu, a fim de poupar seus próprios cofres. O ente federativo em si dispõe de receitas milionárias, inclusive possui uma gama de Advogados ou procuradores concursados e muito bem-pagos que o defendem com exclusividade, com disponibilidade de transportes privativos do governo ou da própria instituição à qual são vinculados. Em contrapartida, imagine-se um particular que ajuizou a Ação de Indenização contra a União, residindo em local não amparado por seção da Justiça Federal, portanto, diverso do Juízo competente para julgamento da causa, e ainda dependendo de Advogado particular que exerce suas funções para inúmeros outros clientes.

Diante do exposto acima, qual a razão de ser para as prerrogativas de prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer? Condenado o ente federado, qual a finalidade do reexame necessário se o recurso é uma faculdade das partes e, nesse caso, os litigantes estão numa mesma situação? E em relação ao Juízo privativo, por que facilitar o acesso ao ente em comprometimento do acesso do particular?

O que se pretende com a manutenção dessas prerrogativas quando a Administração Pública atua na defesa do interesse público secundário, na realidade, é garantir poderes excessivos ao ente público, a fim de que o particular seja sempre submisso ao controle político, e dele possa extrair o mínimo de proveito possível, garantindo aos dirigentes públicos a possibilidade de cometimento de abusos, os mais variados possíveis, como se pode visualizar na prática.

A aplicação injustificada dessas prerrogativas acaba por inviabilizar a efetividade do processo, pois, com tantas prerrogativas, os processos contra a Fazenda Pública acabam se perpetuando e abarrotando o Poder Judiciário. Frise-se, por oportuno, que as prerrogativas da Fazenda Pública não ferem apenas o princípio da igualdade, ferindo ainda outros importantes princípios, como tempestividade da tutela jurisdicional, dignidade da pessoa humana, inafastabilidade do controle judicial, devido processo legal, proporcionalidade, razoabilidade etc.

Nesse sentido, constata Dinamarco (2004, p.214):

“apoiados no falso dogma da indisponibilidade dos bens do Estado, os privilégios concedidos pela lei e pelos tribunais aos entes estatais alimentam a litigiosidade irresponsável que estes vêm praticando, tudo concorrendo ainda para o congestionamento dos órgãos judiciários e retardamento da tutela jurisdicional aos membros da população”.

O direito processual brasileiro está em constante evolução, na medida em que vem se modificando no sentido de proporcionar uma maior efetividade prática ao processo judicial, exempli gratia, os juizados especiais criados em 1995, a fungibilidade das tutelas de urgência em 2002, a videoconferência em 2009, dentre outros.

Em matéria constitucional, a emenda 45/04 trouxe o inciso LXXVIII ao artigo 5º, contendo o princípio da razoável duração do processo, objetivando garantir uma maior celeridade processual. Tal princípio, na verdade, decorre de outro princípio já previsto no artigo 5º, inciso LIV, da CF, que é o princípio do devido processo legal substantivo, centro irradiador das demais garantias processuais, segundo o qual o “processo legal deve ser justo e adequado”, garantindo uma participação “equânime, justa e leal dos sujeitos processuais”. (NOVELINO, 2010, p.452)

Diante de tantos princípios constitucionais e de tantas conquistas infraconstitucionais no sentido de ampliar a efetividade no âmbito processual, as prerrogativas da Fazenda Pública vêm em sentido diametralmente oposto, já que ao invés de facilitar a fruição do processo acabam por debilitar seu andamento.

Ainda nesse sentido, o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” sem qualquer restrição, impossibilitando que uma norma infraconstitucional venha a limitar o Poder Judiciário quando da apreciação de medida liminar em face do Poder Público ou em sede de execução provisória, de forma a dificultar o acesso à prestação jurisdicional, já que constitui obstáculo à atuação do juiz no processo judicial.

Como afirma o processualista Luiz Guilherme Marinoni, tanto a doutrina quanto os operadores do direito têm o dever de extrair das normas processuais o máximo de efetividade possível, entendendo-as sempre à luz das garantias constitucionais, de forma que a estrutura técnica do processo esteja sempre apta a prestar a tutela mais efetiva para a realização do direito. (2004, p.31)

Assim, quando a Fazenda Pública estiver munida de interesse público secundário, deve ser mantida em igualdade de condições com o particular, não havendo razão de ser para a sustentação das prerrogativas, ao passo que, quando estiver em defesa do interesse público primário, as prerrogativas devem ser aplicadas, justificando-se o desnivelamento das partes na relação jurídica processual pelo princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e também pelo conceito aristotélico de igualdade.


Referências

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003.

BUENO, Cassio Scarpinella. O Poder Público em Juízo. 4ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2004.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 2ª Edição rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.

MARINONI, Luiz Guilherme. Manuel do Processo de Conhecimento. 3ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998.

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2010.

Sobre o(a) autor(a)
Raquel Santos de Santana
Bacharela em Direito pela Universidade Tiradentes em Sergipe desde 2006. Aprovada na OAB-SE/ em 2006. Especialista em Direito Público pela UNIDERP desde 2010. Servidora Pública Estadual (TJ/SE).
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