Responsabilidade civil médica
Médicos, Cirurgiões, Farmacêuticos e Dentistas são responsáveis e têm o dever de indenizar quando, no exercício da atividade profissional, obrarem com negligência, imperícia ou imprudência, causando a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão ou inabilitá-lo para o trabalho.
1. Introdução
Segunda a inteligência do artigo 951 do Código Civil, Médicos, Cirurgiões, Farmacêuticos e Dentistas são responsáveis e têm o dever de indenizar quando, no exercício da atividade profissional, obrarem com negligência, imperícia ou imprudência, causando a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão ou inabilitá-lo para o trabalho. Tal dever tem sido considerado resultante de uma responsabilidade contratual. No ensinamento de Gustavo Tepedino a relação jurídica formada entre o médico e seu paciente é “considerada uma locação de serviços sui generis, agregando à prestação remunerada dos serviços médicos um núcleo de deveres extrapatrimoniais, essencial a natureza da avença”.
Para a formalização do contrato de prestação de serviços médicos é necessário o beneplasto do paciente em submeter-se ao tratamento, podendo tal manifestação ser de maneira expressa ou tácita, pessoal ou através de seus familiares. O contrato pode ser verbal sem a necessidade de instrumento escrito para formalizar o negócio jurídico.
Atendendo ao disposto no artigo 14, §4º da lei 8.078/90, a responsabilidade dos profissionais liberais é averiguada através da constatação de culpa, sendo, por tanto, subjetiva, encontrando sua definição legal no artigo 951 do Código Civil. Contudo, existe moderno segmento jurisprudencial que autoriza a inversão do ônus da prova nestes casos de responsabilidade subjetiva.
Assim, a distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual perde um pouco de sentido, pois nesta, a vítima tem a incumbência de indigitar o comportamento culposo por parte do profissional causador do dano. Por outro lado, na responsabilidade contratual, o simples descumprimento da obrigação avençada dá ensejo à presunção relativa de responsabilidade do profissional que é elidida pela ausência de culpa pelo seu inadimplemento.
Ocorre que no exercício da atividade médica prevalecem as obrigações de meio e não de resultado. Nesta o médico se responsabiliza em proceder de forma a trazer um benefício em favor do paciente. Dessa maneira, demonstrando a existência de um contrato e a inocorrência do resultado pretendido, resta ao médico à demonstração da inexistência de culpa no seu agir para ficar isento de qualquer responsabilidade ou dever de indenizar.
Agora, nas obrigações de meio o devedor se compromete a empregar seus conhecimentos técnicos visando alcançar um resultado útil para o credor, contudo, não é responsável pela não ocorrência do almejado quando imprime seus melhores esforços.
Aqui, o médico não se obriga a alcançar o resultado, mas sim, laborar utilizando diligência, cautela e conhecimento técnico visando à cura do paciente, cabendo a este a demonstração da negligência, imprudência ou imperícia do médico que não logrou êxito no resultado pretendido.
Apesar de a corrente jurisprudencial clássica não enxergar com bons olhos a inversão do ônus probatório em todas as situações, o Código de Defesa do Consumidor, que não enxerga dicotomia entre responsabilidade contratual e extracontratual, autoriza a inversão do ônus da prova em favor do consumidor ou equiparado, conforme dispõe seu artigo 6º, VIII, conquanto que haja hipossuficiência ou verossimilhança das alegações ventiladas.
A tendência comum da doutrina é apontar a obrigação do Médico sempre como uma obrigação de meio, pois toda intervenção cirúrgica vem acompanhada de um risco inerente e cada organismo é singular, podendo reagir de forma diferente ao tratamento. Porém, a doutrina dominante considera algumas espécies de atividades médicas como obrigação de resultado, tais como os tratamentos odontológicos, exames radiográficos e cirurgias estéticas. A ciência médica alcançou um patamar considerável de conhecimento, que aliado aos aparatos tecnológicos de última geração, possibilita o alcance dos objetivos esperados na intervenção médica.
Mesmo assim, devemos considerar as particularidades de cada caso, haja vista que podemos encontrar negligência, imperícia ou imprudência no desenrolar de uma obrigação de meio que não alcançou o resultado colimado, da mesma forma que pode inocorrer qualquer ato ilícito numa obrigação de resultado que não obteve seu objetivo por circunstâncias alheias a capacidade profissional do médico.
2. Deveres do Médico
O primeiro dever do médico para com o paciente é o de informação. O paciente procura o profissional com base em sua reputação, esperando que este seja certeiro no diagnóstico e sincero nos riscos do tratamento.
Salienta Gustavo Tepedino que “O dever de informação diz com os riscos do tratamento, a ponderação quanto às vantagens e às desvantagens da hospitalização ou das diversas técnicas a serem empregadas, bem como a revelação quanto aos prognósticos e ao quadro clínico e cirúrgico, salvo quando tal informação possa afetar psicologicamente o paciente”. Entendemos que se a verdade for abalar psiquicamente o paciente, deve ser informada sem hesitações a seus familiares ou responsáveis legais.
O artigo 59 do Código de Ética Médica (Resolução do Conselho Federal de Medicina nº. 1.246, de 08 de janeiro de 1988) veda ao médico “deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao seu responsável legal”.
Como ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de morte, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica (artigo 15 do Código Civil), o dever de informação resulta na necessidade de se obter o sinal positivo do paciente quanto às práticas a serem empreendidas.
Por isso, o artigo 56 do Código de Ética Médica impõe ser direito do paciente “decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida”. Há casos em que a espera pelo consentimento do paciente ou de seus familiares pode resultar no agravamento do quadro clínico ou até mesmo a morte, devendo o médico agir imediatamente visando salvaguardar a saúde e a vida do paciente.
Ruy Rosado de Aguiar Júnior observa que “em certas circunstâncias, a inexistência do assentimento é evidente, como no caso do surgimento de um fato novo, no desenrolar da cirurgia. Se possível suspender o ato, sem risco, para submeter à decisão ao paciente em vista de novos exames do material encontrado, essa a providência é recomendada”.
Desse modo, não estando o paciente no exercício pleno de suas faculdades mentais, não tendo, em razão disso, condições de autorizar o procedimento, Pontes de Miranda, citado por Gustavo Tepedino, recomenda que a atuação do médico seja encarada com expressão da vontade presumida daquele, pois, “há gestão útil de negócio alheio. Há mais: o médico tem dever de executar a gestão, o que somente poderia ser afastado se fora de presumir-se a vontade contrária da pessoa que precisava de tratamento”.
No caso das “testemunhas de Jeová” que se recusam a submeter-se a transfusão de sangue em razão de sentimento religioso, o Conselho Federal de Medicina impõe que o Médico deve obedecer ao Código de Ética. O Código de Ética Médica estabelece que no caso de recusa do paciente em permitir a realização do procedimento, o Médico deve agir da seguinte forma: Respeitará a vontade do moribundo se não houver perigo de morte; caso contrário, existindo perigo iminente, o Médico procederá à transfusão de sangue. A propósito, o entendimento jurisprudencial é idêntico.
No tange o erro de diagnóstico, Ruy Rosado de Aguiar Júnior leciona que “o erro de diagnóstico não gera responsabilidade, salvo se tomado sem atenção e precauções conforme o estado da ciência, apresentando-se como erro manifesto e grosseiro”.
Gustavo Tepedino entende que não podemos somente levar em consideração a culpa grave (erro grosseiro) como única forma ensejadora do erro de diagnóstico. O exegeta aponta como solução a “consideração da prática do diagnóstico como procedimento sujeito a regras, cautelas e rigores insuprimíveis, investigando-se a diligência do profissional ao efetuá-lo”.
De qualquer forma, devemos ter cuidado ao apontar determinado caso como erro de diagnóstico, pois a ciência médica não tem precisão matemática. Devemos considerar a diligência médica realizada na busca pela indicação do diagnóstico, procurando observar se o profissional da saúde observou os procedimentos indigitados pelos livros médicos e buscou todo conhecimento disponível para a investigação do mal.
O Médico deve empregar as melhores técnicas disponíveis no diagnóstico e no tratamento do paciente. Precisa estar sempre investigando novos conhecimentos e técnicas para colocar a disposição de seus pacientes. Podemos considerar como o dever de tutela do melhor interesse do paciente.
A boa-fé objetiva, pilar da ética de qualquer profissão lícita, é imposta pelo Código de Defesa do Consumidor nas relações de prestação de serviços e não podia ser diferente na realização de serviços médicos. Na fase pré-contratual, a boa-fé objetiva consiste no dever de informação ao cliente. O paciente tem o direito de conhecer os riscos periféricos ao seu estado de saúde, o tratamento indicado e os custos do mesmo.
Na mesma via, a fase pós-contratual também requer a existência da boa-fé objetiva. Mesmo após a recuperação do enfermo, o Médico tem a obrigação de conservar o prontuário e o dever ético de manter sigilo quanto ao diagnóstico e tratamento.
O artigo 102 do Código de Ética Médica proíbe o Médico de “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente”. Podemos exemplificar como justa causa para quebra do sigilo, em analogia ao artigo 25 do Código de Ética e Disciplina da OAB, o fato do Médico ser afrontado pelo cliente e, em defesa própria, tenha que quebrar o sigilo, contudo, restrito a sua defesa. O dever legal consiste na obrigatoriedade que tem o Médico de comunicar às autoridades o diagnóstico de determinadas doenças, como a AIDS. O Médico precisa da autorização expressa do paciente para publicar seu quadro clínico para fins de estudos médicos.
3. Espécies de relações jurídicas
Podemos vislumbrar três espécies de relações jurídicas na identificação da responsabilidade civil no atendimento médico: entre o paciente e o hospital; entre o paciente e o Médico; entre o Médico e o hospital.
Necessitando o paciente de internação para submeter-se a determinado tratamento médico, este realiza contrato de hospedagem com o hospital, que deverá colocar toda sua estrutura a serviço da recuperação do paciente. Caso ocorra dano à saúde do enfermo por defeito dos aparelhos, incorreção nos resultados de exames, infecções hospitalares ou até mesmo falha de preposto, o hospital ou clínica responderá objetivamente, podendo exercer o seu direito de regresso em desfavor do seu funcionário que causou o dano culposamente, conforme a inteligência do artigo 13, parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor.
Já no dano causado por ato médico, mister a presença de negligência, imperícia ou imprudência. Aqui, a responsabilidade recai sobre o Médico de forma subjetiva. A Casa de Saúde só terá responsabilidade solidária se o profissional fizer parte do seu plantel de funcionários ou prestadores de serviços. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou nesse sentido, entendendo que, em muitos casos, o paciente procura a Instituição prestadora de serviços médicos e não o profissional com intuitu personae.
O entendimento doutrinário mais abalizado sustenta que a Clínica ou Hospital não responde objetivamente pelo dano causado por Médico integrante de seus quadros. Responde solidariamente mediante a prova de culpa por parte do Médico. Seria forçoso aplicar a responsabilidade objetiva à pessoa jurídica se o ato lesivo não tem nenhuma relação com os seus serviços e acomodações. A responsabilidade por ato lesivo praticado por Médico que somente utiliza as instalações e recursos de Hospital, não existindo qualquer relação trabalhista ou de prestação de serviços, será subjetiva, não cabendo responsabilidade à pessoa jurídica.
Essa responsabilidade subjetiva do Médico estende-se aos profissionais de sua equipe por culpa in eligendo e in vigilando de sua parte, consoante os artigos 932, III, 933 e 942 do Código Civil. A Súmula 341 do Supremo Tribunal Federal diz: “É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto”.
Controvertem os doutos em relação ao Anestesista. Uns entendem que a responsabilidade é do Cirurgião-chefe, ao contrário de outros que concluem que a responsabilidade deve ser indigitada ao Anestesista. Fato é que essa especialidade atua de forma independente dos deveres dos demais profissionais que atuam na intervenção cirúrgica.
O Médico poderá responder pelo dano causado por ato do Anestesista quando recrutar profissional sem muita competência. Entretanto, não recaíra qualquer responsabilidade se escolheu profissional de notória capacitação profissional.
4. Responsabilidade do Estado por Ato da rede pública de saúde
A Constituição da República assegura a todos o direito à saúde. Por essa razão, o atendimento na rede pública de saúde não é encarado como uma relação contratual e sim uma garantia constitucional, configurando, assim, responsabilidade extracontratual por eventual dano causado.
O artigo 37, §6º da Constituição aduz que: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadores de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. Dessa maneira, incide a teoria do risco administrativo.
Como quase tudo em Direito é controvertido, existe entendimento de que só incidirá responsabilidade extracontratual, independente de culpa ou dolo, nos danos causados por atos comissivos, ou seja, ações dos servidores públicos. Os atos omissivos devem estar eivados de culpa e, por isso, responsabilizados subjetivamente.
Os críticos dessa teoria aduzem que não é dado o direito ao intérprete de restringir onde o legislador não restringiu, ainda mais em se tratando de norma constitucional.
Com o advento do novo Código Civil foi elidida a controvérsia, pois o artigo 43 adotou a responsabilidade objetiva. Contudo, a responsabilidade objetiva extracontratual do Estado não é configurada diante de certas causas excludentes: culpa exclusiva ou concorrente da vítima, fato de terceiro e o caso fortuito ou força maior. Essas excludentes interferem no nexo causal entre o ato lesivo e o dano, resultando na necessidade de verificação da responsabilidade subjetiva. O Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido do não acolhimento da teoria do risco integral, dando margem à exclusão da responsabilidade estatal diante de comportamento doloso ou culposo da vítima do dano.
Depreende-se do artigo 196 da Carta Constitucional que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 3º, assevera que as pessoas jurídicas de direito público podem ser consideradas fornecedoras de serviços, estando afetas às normas de defesa do consumidor, quando prestam serviços públicos, inclusive os de saúde.
Então, sendo a saúde dever do Estado, que ao prestá-la deve observar os preceitos esculpidos no Código de Defesa do Consumidor; eventual ação ou omissão danosa ao usuário do serviço público de saúde deve ser responsabilizada de forma objetiva, tendo o Poder Público direito de regresso contra o responsável pelo erro médico, conforme o artigo 37, §6º da Lei Maior.
Questão que gera muita polêmica é saber se o direito de regresso do Poder Público pode ser exercitado na mesma ação em que a vítima requer indenização ou em ação autônoma.
Parcela da Doutrina e Jurisprudência ensina que o direito de regresso deve ser obrigatoriamente colocado em prática na mesma ação movida pela vítima, por intermédio do instituto da denunciação da lide, à luz do artigo 70, III do Código de Processo Civil. O referido artigo afirma que deverá vim ao processo “àquele que estiver obrigado por lei ou pelo contrato a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda”.
Por outro lado, temos os algozes desta posição que argumentam não ser possível a denunciação da lide, pois as ações devem possuir identidade entre seus fundamentos, o que não ocorre, já que uma se fundamenta na responsabilidade objetiva (ação de indenização) e a outra na subjetiva (ação de regresso). Além do mais, a efetivação da denunciação da lide resultaria na obrigatoriedade de demonstração da culpa do agente, o que obstacularia a pretensão de reparação da vítima calcada nos alicerces da responsabilidade objetiva.
5. Excludentes de responsabilidade civil
Existem determinadas situações que agem sobre o nexo causal do evento danoso, de forma a atenuar ou extinguir a relação de causalidade, ato contínuo, o dever de indenizar. Percebemos, assim, que a responsabilidade subjetiva do Médico ou a objetiva das Clínicas e Hospitais não é absoluta e sim relativa, pois pode ser relativizada ou elidida.
Então, temos como excludentes da responsabilidade civil: Culpa exclusiva ou concorrente da vítima, fato de terceiro e o caso fortuito ou força maior.
Salienta Silvio Rodrigues que “o evento danoso pode derivar de culpa exclusiva ou concorrente da vítima; no primeiro caso desaparece a relação de causa e efeito entre o ato do agente causador do dano e o prejuízo experimentado pela vítima; no segundo, sua responsabilidade se atenua, pois o evento danoso deflui tanto de sua culpa, quanto da culpa da vítima”.
Continua seu magistério dizendo: “Com efeito, se a culpa é exclusiva, inexiste, por definição, culpa do agente causador do dano, e obviamente não há relação de causa e efeito entre o ato culposo deste e o prejuízo, pois, repetindo, de acordo com a própria hipótese e por definição, a culpa foi da vítima e não do agente que deu causa ao prejuízo”.
Se pudermos atribuir culpa tanto ao paciente quanto ao Médico, concluímos que o evento danoso decorreu da junção de culpas concorrentes, e por este motivo, a responsabilidade deve ser mitigada, relativizada, de modo que o resultado prático da indenização seja rateado entre os responsáveis, na medida em que for justa, não necessariamente na metade. Entendemos que a divisão do prejuízo, invariavelmente, em partes iguais só deve ocorrer se não pudermos identificar o grau de culpabilidade dos envolvidos no infortúnio.
O fato de terceiro é a omissão ou ato perpetrado por pessoa estranha à relação, no caso, entre Médico e paciente. O fato de terceiro pode ser o causador exclusivo ou concorrente do dano sofrido pela vítima.
Mesmo não existindo previsão expressa por parte do Código de Defesa do Consumidor em relação ao caso fortuito e a força maior como causas excludente de responsabilidade, não podemos olvidar que a ocorrência destes rompe o nexo de causalidade entre o evento e o dano.
Acontece que, em sede de responsabilidade objetiva, tanto o fortuito quanto o fato de terceiro só poderão ser vistos como excludentes de responsabilidade se forem estranhos, externos à relação hospitalar. Caso contrário, permanece a responsabilidade objetiva do Hospital ou Clínica.
6. O risco do desenvolvimento
Em virtude da falta de regulamentação legislativa específica no Brasil, inevitavelmente surgiu ferrenha discussão entre os doutos acerca do chamado “risco de desenvolvimento”.
A doutrina dominante aponta o risco de desenvolvimento como excludente de responsabilidade, mesmo inexistindo previsão normativa expressa sobre o assunto. Os adeptos desse segmento doutrinário advogam a tese de que o seu não acolhimento geraria um sentimento de insegurança em certos segmentos produtivos da sociedade, sendo desencorajador a colocação no mercado de certos produtos. Ademais, temos o anseio legítimo da sociedade em ter a disposição medicamentos mais eficazes.
Para demonstrar que o ordenamento jurídico não afasta tal excludente, colacionam artigos do Código de Defesa do Consumidor: O artigo 6º, I, revela ser direito básico do consumidor a proteção contra os riscos e serviços ‘considerados perigosos ou nocivos’; Desta feita, o perigo ou a nocividade precisam ser conhecidos e não ignorados pelo atual conhecimento médico-científico. Adiante, o artigo 10 determina que o fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber que apresenta alto grau de nocividade, ou periculosidade à saúde ou à segurança dos consumidores. Por derradeiro, o artigo 12, §1º estabelece que o produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, e no caso do inciso III, a época em que foi colocado em circulação.
Concluem, por meio de uma interpretação a contrario sensu, que deve ser encarado como um ato lícito do fornecedor colocar à disposição do mercado de consumo produto que não saiba, nem deveria saber passível de gerar risco ao consumidor, apoiado no grau de desenvolvimento científico da época de sua inserção no mercado, pois era imprevisível a possibilidade de ocorrência do acidente de consumo.
A União Européia, no artigo 7º, e da Diretiva 85/374, indigita o risco de desenvolvimento como excludente de responsabilidade: “o produtor não é responsável nos termos da presente Diretiva se provar (...) que o estado dos conhecimentos científicos e técnicos no momento da colocação em circulação do produto não lhe permitiu detectar a existência do defeito”.
Por esses motivos, entendem que, muito embora o Código de Defesa do Consumidor não vislumbre expressamente tal hipótese, declina a não considerar defeito os vícios de insegurança que os conhecimentos técnicos e práticos (experimentação) da ciência ignoram no instante em que é colocado o produto ou é prestado o serviço ao mercado consumidor.
Diametralmente opostos existem os que compreendem não ser possível o acolhimento da tese do risco de desenvolvimento, uma vez que não existe previsão expressa no Código de Defesa do Consumidor. Para colocarmos uma pá de cal sobre o problema é crucial o surgimento de previsão legal específica sobre assunto em análise.
7. Teoria da perda de uma chance
A teoria La perte d’ une chance surgiu em 1965 na jurisprudência francesa. A Corte de Cassação Francesa acolheu a teoria, em sede recursal, num processo em que se perquiria a responsabilidade de um Médico que supostamente teria proferido diagnóstico errôneo, impossibilitando qualquer chance de cura da doença que infligia o enfermo. Houveram inúmeras outras decisões proferidas por essa Egrégia Corte nesse sentido, consolidando a teoria em tela. Alguns informam que a teoria da perda de uma chance é mais prestigiada no meio acadêmico do que no Judiciário francês.
Fernanda Schaefer escreveu o seguinte a respeito da perte d’ une chance: "É uma teoria desenvolvida na França que caracteriza a perda de uma chance como um tipo especial de dano. Surge quando pela intervenção médica o paciente perde a possibilidade de se curar ou de se ver livre de determinada enfermidade. Admite-se, porém, a culpa do médico sempre que sua ação ou omissão comprometa as chances de vida ou de integridade do paciente. (...) Esta teoria afirma não ser necessário demonstrar o nexo de causalidade entre a culpa e o dano, pois a culpa já estaria configurada no simples fato de não ter dado a chance ao paciente".
No Brasil, o primeiro Tribunal a efetivamente abordar a teoria da perda de uma chance foi o do Rio Grande do Sul. O Desembargador Araken de Assis relata que após uma cirurgia, o médico deu alta prematuramente ao paciente, que algum tempo depois, queixando-se de febre alta, foi orientado pelo médico a utilizar-se de antipirético. Com a saúde já seriamente comprometida, o paciente foi internado na Unidade de Terapia Intensiva vindo a falecer. "Liberando o paciente e retardando seu reingresso na instituição hospitalar, o apelante fê-lo perder chance razoável de sobreviver" (RJTJRS 158/214). Destarte, esse entendimento ainda é pouco difundido em nosso país e de difícil utilização pelos Magistrados em suas sentenças.
8. Cláusula de não indenizar
A cláusula de não indenizar é vista por Venosa como aquela pela qual “uma das partes contrates declara que não será responsável por danos emergentes do contrato, seu inadimplemento total ou parcial. Trata-se de exoneração convencional do dever de reparar o dano”.
A cláusula de não indenizar não indenizar não é prevista em nosso Código Civil. Os artigos 186, 187 e 927 deixam clara a obrigação de reparar o dano causado a outrem. Contudo o artigo 946 deu azo a interpretações que admitem a cláusula de não indenizar ou pelo menos limitação contratual da indenização.
Assim dispõe o artigo 946 do Código Civil: “Se a obrigação for indeterminada, e não houver na lei ou no contrato disposição fixando a indenização devida pelo inadimplente, apurar-se-á o valor das perdas e danos na forma que a lei processual determinar (grifo nosso). Até o presente momento não temos notícia de interpretação jurisprudencial a respeito desse dispositivo.
Os defensores da admissão da cláusula de não indenizar preconizam o princípio da autonomia da vontade. Desde que os participantes do negócio jurídico sejam capazes e o objeto seja lícito não há porque impedi-los de transigirem da maneira que melhor lhes aprouver. A cláusula diminui os riscos do negócio, resultando em diminuição de custos e otimização dos serviços.
Os críticos argumentam que não deve ser considerada a cláusula de não indenizar em respeito ao interesse social, a ordem pública e o dever moral de indenizar. Aduzem que sua aplicação poderia estimular um sentimento de não comprometimento com a boa execução do negócio, em razão de uma das partes estar escudada pela cláusula.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em julgado proferido pelo Desembargador Jurandyr Nilsson em 1983, reconheceu a legitimidade de uma cláusula de isenção de responsabilidade de uma casa psiquiátrica, onde um dos internos se enforcou. Os Desembargadores não vislumbraram culpa dos médicos e enfermeiros (RJTJSP-Lex 85/147).
O mesmo Tribunal, em acórdão da lavra do então Desembargador Cézar Peluso em 1989, julgou ineficaz a cláusula de não indenizar avençada numa internação gratuita de paciente em sanatório psiquiátrico. Relata o Desembargador que, "assume, de modo automático, claro dever jurídico de vigilância dos pacientes que, acometidos de distúrbio psíquico ou psicossomático, careçam de vigilância alheia todo estabelecimento que, destinado à sua internação, os acolha, ainda que a título gratuito" (RT 652/51).
9. Inversão do ônus da prova
Dessume-se do artigo 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor que o Juiz pode ao seu talante inverter o ônus probatório em favor do consumidor, desde que considere verossímeis as alegações cariadas aos autos ou reconheça-o como hipossuficiente. Por essa razão, tanto na responsabilidade subjetiva do Médico como na responsabilidade objetiva das Clínicas e Hospitais públicos e privados, deferida a inversão do ônus da prova, caberá ao réu demonstrar a inocorrência do fato culposo (nos casos de responsabilidade subjetiva), ou nas outras hipóteses, a inexistência do defeito do produto ou do serviço, do dano ou do nexo de causalidade entre um e outro.
Tal construção legiferante mitigou a regra transcrita no artigo 333 do Código de Processo Civil pátrio que determina que o ônus da prova incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; e ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Na prática, cabe ao Magistrado, com base em sua experiência judicante, ex officio ou a requerimento da parte, inverter o ônus da prova. Para tanto, basta a ocorrência de uma das causas, verossimilhança ou hipossuficiência, não sendo necessária a ocorrência simultânea.
A verossimilhança é a plausibilidade das alegações trazidas pelo autor, de modo que, sejam provavelmente verdadeiras diante das circunstâncias concretas e demais fatos alocados nos autos.
No que tange a hipossuficiência do consumidor, não podemos somente levar em consideração a situação econômica. Também deve ser aquilatado o desequilíbrio processual resultante da carência de informação técnicas por parte do consumidor, fruto de fatores econômicos, sociais e/ou culturais, hábeis a interferir na produção das provas pertinentes.
10. Seguro contra erros médicos
Ao contrário de países como os Estados Unidos onde a contratação de seguro contra erro médico é uma prática amplamente difundida e utilizada, no Brasil a demanda ainda é pífia. Atribui-se a sua não proliferação em nosso país, talvez, pelo montante ínfimo das indenizações estabelecidas pelo Poder Judiciário por erro médico, não representando, ainda, um risco à lucratividade da atividade profissional.
Apesar disso, já encontramos, em especial em alguns grandes centros como São Paulo, a difusão de contratos de seguro profissional na área de saúde, existindo apólices securatórias para a cobertura de eventuais danos causados pela atividade profissional médica, sem limites legais.
11. Referências bibliográficas
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RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – responsabilidade civil. 18ª Ed, 2ª tiragem. São Paulo: Editora Saraiva, 2001.
SCHAEFER, Fernanda. Responsabilidade Civil do Médico & erro de diagnóstico. Curitiba: Juruá Editora, 2006.
TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade médica na experiência brasileira contemporânea. Porto Alegre: Revista Jurídica, Vol. 311. 2003.
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