Da inconstitucionalidade da nova redação do art. 156, I do CPP
Analisa a constitucionalidade do disposto no art. 156, I, do CPP (com redação dada pela Lei 11.690/08), que permite ao juiz, de ofício e antes de iniciada a ação penal, ordenar a produção de provas.
A Lei 11.680/2008 alterou vários dispositivos do Código
de Processo Penal Brasileiro, e introduziu a nova redação
do art. 156, I que permite ao juiz, de ofício e antes de
iniciada a ação penal, ordenar a produção
antecipada de provas. Analisaremos se referida alteração
legislativa conflita com o ordenamento constitucional pátrio,
especialmente com o sistema acusatório imposto pela
Constituição Federal de 1988.
Inicialmente convém tecer breves considerações
sobre os sistemas processuais penais. São basicamente três
os sistemas conhecidos: inquisitório, acusatório ou
misto. No modelo inquisitivo o processo era verbal e sigiloso, sem
contraditório ou direito de defesa, no qual o acusado era
tratado como mero objeto do processo. Já no processo
acusatório o acusado é considerado sujeito de direitos,
tendo asseguradas, entre outras, as seguintes garantias: devido
processo legal, publicidade, estado de inocência, contraditório
e a ampla defesa.
A principal diferença entre o sistema processual acusatório
e inquisitório é que neste as funções de
acusação e defesa estariam reunidas em uma única
pessoa ou órgão, enquanto no primeiro tais atribuições
seriam reservadas a pessoas distintas. No sistema misto, como o nome
indica, há uma combinação entre os dois sistemas
anteriores. Conforme entendimento majoritário, o sistema
processual brasileiro é o acusatório.
O artigo 156, I do CPP, com redação dada pela Lei 11.690/08 assim determina:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de oficio:
I-
ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a
produção antecipada de provas consideradas urgentes e
relevantes, observando a necessidade, adequação e
proporcionalidade da medida;
Para o Professor Luiz Flavio Gomes, é inconstitucional a
interpretação literal do dispositivo supracitado, pois
o juiz não poderia determinar a produção de
provas de ofício, sobretudo antes de iniciada a ação
penal, sob pena de ofensa ao sistema acusatório previsto na
CF/88. [1]
Desse modo, ao determinar a produção de provas sem
prévio requerimento, estaria o juiz atuando como verdadeiro
inquisidor, o que comprometeria o princípio da imparcialidade
e culminaria em violação ao devido processo legal.
Nesse sentido já se manifestou o Supremo Tribunal Federal:
ADI 1570 / DF - DISTRITO FEDERAL
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA
Julgamento: 12/02/2004 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
Publicação DJ 22-10-2004 PP-00004 EMENT VOL-02169-01 PP-00046
RDDP n. 24, 2005, p. 137-146 RTJ VOL-00192-03 PP-00838
Parte(s)
REQTE. : PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
REQDO. : PRESIDENTE DA REPÚBLICA
REQDO. : CONGRESSO NACIONAL
Ementa
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI
9034/95. LEI COMPLEMENTAR 105/01. SUPERVENIENTE. HIERARQUIA SUPERIOR.
REVOGAÇÃO IMPLÍCITA. AÇÃO
PREJUDICADA, EM PARTE. "JUIZ DE INSTRUÇÃO".
REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS PESSOALMENTE.
COMPETÊNCIA PARA INVESTIGAR. INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO
PROCESSO LEGAL. IMPARCIALIDADE DO MAGISTRADO. OFENSA. FUNÇÕES
DE INVESTIGAR E INQUIRIR. MITIGAÇÃO DAS ATRIBUIÇÕES
DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DAS POLÍCIAS FEDERAL E
CIVIL. 1. Lei 9034/95. Superveniência da Lei Complementar
105/01. Revogação da disciplina contida na legislação
antecedente em relação aos sigilos bancário e
financeiro na apuração das ações
praticadas por organizações criminosas. Ação
prejudicada, quanto aos procedimentos que incidem sobre o acesso a
dados, documentos e informações bancárias e
financeiras. 2. Busca e apreensão de documentos
relacionados ao pedido de quebra de sigilo realizadas pessoalmente
pelo magistrado. Comprometimento do princípio da
imparcialidade e conseqüente violação ao devido
processo legal. 3. Funções de investigador e
inquisidor. Atribuições conferidas ao Ministério
Público e às Polícias Federal e Civil (CF,
artigo 129, I e VIII e § 2o; e 144, § 1o, I e IV, e §
4o). A realização de inquérito é função
que a Constituição reserva à polícia.
Precedentes. Ação julgada procedente, em parte.
Decisão
-
O Tribunal, por maioria, julgou procedente, em parte, a ação
para declarar a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº
9.034, de 03 de maio de 1995, no que se refere aos dados "fiscais"
e "eleitorais", vencido o Senhor Ministro Carlos Velloso,
que a julgava improcedente. Ausentes, justificadamente, os Senhores
Ministros Marco Aurélio e Cezar Peluso. Presidiu o julgamento
o Senhor Ministro Maurício Corrêa. Plenário,
12.02.2004. (Grifos nossos).
Ainda sobre o assunto convém citar a brilhante conclusão
de Eugênio Pacelli de Oliveira [2]
acerca da interpretação do art. 156 do CPP:
Residiria aí a iniciativa probatória que se defere ao magistrado.
Parece-nos, contudo, que o sistema acusatório imposto pela Constituição Federal de 1988, onde se delimitam as funções do juiz e as atribuições do Ministério Público, deverá funcionar como um redutor e/ou controlador da aplicação do mencionado dispositivo, em face da imparcialidade que deve nortear a atuação judicial. (...)
Falamos
agora na imparcialidade no que se refere à atuação
concreta do juiz na causa, de modo a impedir que este adote
postura tipicamente acusatória no processo, quando, pó
exemplo, entender deficiente a atividade desenvolvida pelo Ministério
Público. O juiz não poderá desigualar as forças
produtoras da prova no processo, sob pena de violação
dos princípios constitucionais do contraditório e da
ampla defesa, reunidos ambos na
exigência de igualdade e isonomia de oportunidades e faculdades
processuais.
(Grifos acrescidos).
Observa-se que o art. 156, mesmo antes da alteração
conferida pela Lei 11.690/08, sempre foi objeto de divergência.
Parcela considerável da doutrina nacional entendia o disposto
no artigo em questão como totalmente recepcionado pela
constituição brasileira, decorrência natural dos
princípios da verdade real e do impulso oficial.3
Por outro lado, doutrinadores comprometidos com o sistema
acusatório-constitucional sustentavam a ilegitimidade da
atividade probatória exercida ex oficio pela autoridade
judiciária. [4]
Segundo a nova redação do art. 156, I, do CPP o juiz
pode determinar de ofício a realização de provas
inclusive antes de iniciada a ação penal. Tal alteração
legislativa piorou o que já estava ruim. Até os
doutrinadores que entendem admissível a produção
de prova de oficio pelo juiz no curso da instrução
criminal criticam a posição adotada na redação
conferida pela Lei 11.690/08:
Aqui
vale registrar nossa discordância com os que sustentam não
caber ao juiz natural da causa qualquer iniciativa probatória,
mesmo no curso da instrução criminal. É preciso
distinguir: se ainda não há imputação,
não há processo e, portanto, são impertinentes e
atentatórias à imparcialidade e ao modelo acusatório
as iniciativas judiciais tendentes a, durante as investigações
inquisitoriais e sem provocação do interessado, buscar
provas (Grifos
nossos). [5]
Portanto, a interpretação literal do art. 156, I, do
CPP (com redação dada pela Lei 11.690/08) é
inconstitucional, uma vez que ofende o sistema acusatório
imposto pela Constituição Federal de 1988.
[1] O juiz pode produzir provas de ofício, conforme o novo texto do art. 156, I do CPP? Disponível em http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20080703115617182&query=156. Acesso em 02 de setembro de 2008.?
[2] Curso de Processo Penal, Ed. Del Rey, 2005, pg. 284.
[3]
NUCCI, Guilherme De Souza. Código de processo penal
comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
[4] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis penais. 3.ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005.
[5] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Com a palavra, as partes. In: Boletim do IBCCRIM, ano 16 - n. 188 – julho de 2008, p. 17-18.