Direito real de habitação do companheiro sobrevivente

Direito real de habitação do companheiro sobrevivente

Nas questões inerentes à pretensão do direto real de habitação do companheiro sobrevivente, o mesmo encontrará amparo legal expresso, apenas nas disposições do parágrafo único do artigo 7º, da Lei nº 9.278 de 10/05/1996.

Ao tratar da sucessão do companheiro sobrevivente, destaca-se que foi com a edição da Lei n.º 8.971, de 29 de dezembro de 1994 (adiante denominada de Lei nº 8.971/94) que os direitos sucessórios do convivente foram reconhecidos. Ocorre que, foi apenas em 1996, com a vigência do parágrafo único do artigo 7º, da Lei n.º 9.278, de 10 de maio de 1996 (adiante denominada de Lei 9.278/96), que ficou assegurado o direito real de habitação em favor do companheiro sobrevivente, denominado de convivente sobrevivente, no referido diploma legal. Hinoraka explica o porquê que essa garantia não foi prevista anteriormente no Código Civil de 1916: Tendo se esquecido, o legislador infraconstitucional – sempre no que se refere ao direito sucessório – de garantir o direito real de habitação relativo ao imóvel que servia de residência para a família, sendo o único imóvel desta natureza, editou a Lei 9.278/96 que em seu art. 7º, parágrafo único, assim redigido, o previu: ‘Dissolvida a união estável por morte de um dos coniventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família’”.

Assim, quando a lei entrou em vigor, sofreu várias críticas, porque o direito real de habitação foi conferido ao companheiro sobrevivente sem restrições, diferente do que ocorria ao cônjuge sobrevivente, visto que na união estável não existe distinção de regime de bens, como ocorre no casamento. Oliveira, ao focar sobre a Lei nº 9.278/96, deixou bem claro que houve uma conquista dos conviventes em termos sucessórios e destaca que perante a referida Lei: “...o direito sucessório do convivente sobrevivente é igual ao direito sucessório do cônjuge sobrevivente”; não tendo qualquer alusão de ter que ser o imóvel o único bem a inventariar, gerando contradição legal, pois garantiu ao convivente mais direitos do que ao cônjuge.

Todavia, na Lei nº 10.402 de 2002, não existe qualquer regra disciplinando o direito real de habitação em favor do companheiro sobrevivente, sendo esta omissão uma desvantagem, inclusive pelo conflito de opiniões doutrinárias que surgiram, afirmando alguns que o companheiro sobrevivente perdeu o direito real de habitação e outros sustentando a permanência desse direito através da Lei nº 9.278/96. Surgiu então, na doutrina, dois posicionamentos referentes ao direito real de habitação dos companheiros sobreviventes. O primeiro entendimento sustenta a tese de que permanece o direito real de habitação em favor do companheiro sobrevivente, em face da não revogação da Lei nº 9.278/96. Já para o segundo entendimento, existe a negação da existência do referido direito em favor do companheiro sobrevivente, ocasionada pela incompatibilidade normativa entre a Lei nº 9.278/96 e o silêncio proposital da Lei nº 10.406/2002.

Para um melhor entendimento das duas correntes, destaca-se a manifestação de Rodrigues:

[...] o direito real de habitação, relativamente ao imóvel destinado à residência da família, foi previsto em lei especial (Lei n. 9.278/96, art. 7º, parágrafo único), e como esse benefício não é incompatível com qualquer artigo do novo Código Civil, uma corrente poderá argumentar que ele não foi revogado, e subsiste. Em contrapartida, poderá surgir opinião afirmando que o aludido art. 7º, parágrafo único, da Lei n. 9.278/96 foi revogado pelo Código Civil, por ter este, no art. 1790, regulado inteiramente a sucessão entre companheiros, e, portanto, não houve omissão quanto ao aludido direito real de habitação, mas silêncio eloqüente do legislador.

Já o doutrinador Gama entende que apesar do novo diploma legal referir-se apenas ao direito real de habitação do cônjuge sobrevivente, tem como posição a Lei nº 9.278/96 continua em vigor, prevalecendo assim o direito real de habitação do companheiro sobrevivente, caso contrário a revogação da Lei, acarretaria a violação do preceito constitucional que protege a união estável. Relata que: “...deve-se considerar a aplicação do dispositivo no art. 226, caput, da Constituição Federal, a fim de considerar que a família fundada em companheirismo é merecedora de especial proteção do Estado”, posição defendida também por Dantas Júnior que entende que permanece o direito de habitação ao companheiro sobrevivente, frente à Lei nº 9.278/96: “ ...foi mantida a disposição da Lei nº 9.278/96, que previa o direito real de habitação em favor do supérstite”.

Não se pode esquecer que o direito real de habitação tem cunho assistencial, e por isso algumas decisões tem assegurado a proteção dos conviventes, como é o caso do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao manifestar-se em julgados:

O art. 7º, Parágrafo Único, da Lei nº 9.278/96 assegura ao convivente sobrevivente da relação estável direito real de habitação no imóvel em que residia com o falecido, não importando que o bem tenha sido adquirido antes do relacionamento, mesmo porque o direito real de habitação está calcado nos princípios da solidariedade e mútua assistência, ínsitos a união estável. Apelação desprovida. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70009713736, OITAVA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: JOSÉ ATAÍDES SIQUEIRA TRINDADE, JULGADO EM 21/10/2004).

Da mesma forma, entende o mesmo Tribunal, que se o falecido, antes da sua morte, não mais residia no imóvel comum dos conviventes, o companheiro sobrevivente não perde o direito real de habitação, conforme jurisprudência abaixo:

SUCESSÕES. UNIÃO ESTÁVEL. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. Os postulados constitucionais da dignidade da pessoa humana, solidariedade e mútua assistência, normas inspiradoras do direito real de habitação conferido no art. 7º, parágrafo único, da Lei n.º 9.278/96, garantem à companheira supérstite o direito de continuar a residir no imóvel comum, mesmo que, seja por motivos de saúde, seja por razões outras não evidenciadas nos autos, o falecido ali não mais residisse. Negaram provimento. Unânime. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70009478322, SÉTIMA CÂMARA CÍVEL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS. RELATOR: MARIA BERENICE DIAS, JULGADO EM 27/10/2004).

Como bem se observa, a própria jurisprudência, evidencia diversos princípios jurídicos no sentido da necessidade do deferimento do direito real de habitação em favor do companheiro sobrevivente, enfraquecendo a tese já mencionada, que afirma inexistir o referido direito depois da edição da Lei nº 10.406/2002. A corrente predominante é a do entendimento doutrinário no sentido do reconhecimento do direito real de habitação em favor do companheiro sobrevivente, com base na Lei nº 9.278/1996, mesmo depois da vigência da lei nº 10.406/2002. O doutrinador Leite sustenta que a Constituição Federal de 1988 a união estável ampara e na Lei nº 9.278/96 e seria um retrocesso negar o direito ao companheiro sobrevivente:

[...] deve ser reconhecido ao companheiro sobrevivente, não em decorrência da união...mas pura e simplesmente, em razão da proteção aos membros da família. São estes, os membros da entidade familiar (no caso) e não a ocorrência (ou não) de formalismo, que resgatam a necessidade de se estender o benefício também ao companheiro, e que redundaria em alargamento do artigo.

Apesar do diploma legal não prever o direito real de habitação, Hironaka consigna que o mesmo deve ser considerado por analogia, frente às garantias constitucionais à união estável, mesmo porque a Lei nº 9.278/96, não foi revogada no seu parágrafo 7º, prevalecendo assim o benefício ao companheiro sobrevivente. Manifesta-se a doutrinadora de que seria de melhor valia para o ordenamento jurídico se ocorresse a supressão do artigo 1.790, alocando-se o companheiro junto ao cônjuge sobrevivente no artigo 1.829, inciso III, além de acrescentar no artigo 1.831, o companheiro garantindo assim o direito real de habitação.

É de conhecimento de todos, que muitas das uniões estáveis que prevalecem na sociedade brasileira tem um cunho particular: a não ruptura legalizada das uniões matrimoniais anteriores à convivência do casal, ou seja, muitos conviventes ainda estão casados com seus antigos cônjuges, gerando, assim, ao companheiro sobrevivente, mais uma concorrência, que é com o cônjuge sobrevivente.

Para elucidar o tema, destaca-se as palavras de Gonçalves: “Assim, o novo diploma, além de restringir o direito hereditário aos bens adquiridos onerosamente na constância da união, ainda impôs a concorrência do cônjuge sobrevivente com descendentes, ascendentes e até colaterais do falecido, retirando-lhe o direito real de habitação e o usufruto vidual, previstos nas leis que anteriormente regulavam a convivência extramatrimonial”.

Com a explanação de Gonçalves, adentra-se em mais um ponto polêmico: O que ocorrerá quando o falecido, em vida, tiver ainda casado legalmente e constituir união estável com outra pessoa? Como vai se caracterizar a temporalidade da união estável? E se ambos, o cônjuge e o companheiro, pleitearem o benefício da habitação? A quem será dado? E quais critérios serão utilizados para o julgamento? E se houver menores envolvidos na relação jurídica por ambas as partes? Elucida-se que os questionamentos acima tem como foco a união estável, e não o concubinato impuro, em que o falecido, além da esposa, tinha uma relação extraconjugal de muitos anos.

Quanto aos casos do concubinato impuro, destaca-se a decisão abaixo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em que a concubina pleiteou e foi atendida (em caráter excepcional), no seu direito real de habitação versus a posse do cônjuge sobrevivente:

APELAÇÃO CÍVEL DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. IMISSÃO DE POSSE. DIREITO À POSSE DA VIÚVA [MEEIRA] VERSUS DIREITO REAL DE HABITAÇÃO DA CONCUBINA. PECULIARIDADE DO CASO CONCRETO: ART. 227, § 6º, DA CF/88. I – A ação de imissão de posse tem natureza jurídica petitória, pela qual o direito à posse decorre do direito de seqüela conferido ao proprietário.II – O reconhecimento judicial da união estável depende da presença de três requisitos fundamentais: fidelidade, notoriedade e affectio maritallis [art. 1º da Lei n. 9.278/96 c/c art. 1.723 do novo Código Civil].III – O direito real de habitação é reconhecido na união estável [Lei n. 9.278/96, art. 7º, parágrafo único]. A ele não faz jus a concubina de homem casado que durante vinte e nove anos manteve duas famílias, com ela [concubina] e com a esposa. IV – Excepcionalmente, pela peculiaridade do caso concreto, mantêm-se a concubina e os filhos do de cujus no imóvel do qual é meeira a viúva em homenagem ao disposto no art. 227, § 6º, da Carta Política de 1988, que consagra a proteção à família e aos filhos havidos fora do casamento. [APELAÇÃO CÍVEL Nº 20020310161859, SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DF, RELATOR: WALDIR LEÔNCIO JUNIOR, JULGADO EM 19/08/2004].

Não se pode negar que delicado é tratar sobre o direito real de habitação do companheiro sobrevivente, a partir da vigência da Lei nº 10.406/2002, diante da existência de divergências de opiniões doutrinárias, conforme demonstrado anteriormente. Porém, não é prudente deixar de reconhecer os direitos sucessórios daqueles que viveram muitos anos juntos e estabeleceram uma inegável união estável, apesar de não existir divergência sobre a inexistência de tal direito, quando a convivência caracteriza apenas um concubinato impuro e não forma uma união estável.

A polêmica sobre a existência do referido direito é reduzida quando os argumentos ficam fundamentados nos princípios contidos na Constituição Federal de 1988 e nas disposições da Lei 9.278/96, uma vez que o legislador omitiu o companheiro na nova regulamentação do direito real de habitação. O convivente sobrevivente, atualmente, depara-se com as referidas discussões doutrinárias, que questionam a existência ou não do direito real de habitação. O tema é delicado perante a complexidade da matéria. Normalmente é difícil o reconhecimento do referido direito pelo herdeiro que não é descendente do companheiro sobrevivente, porque descende de uma convivência anterior mantida pelo autor da herança. Quando o direito real de habitação é pleiteado pelo companheiro sobrevivente, que é ascendente do herdeiro detentor da nu propriedade, a possibilidade de conflito diminui, diante do vínculo de parentesco.

Antes da vigência da Lei nº 10.406/2002 já existiam dúvidas sobre direitos concorrentes entre o cônjuge sobrevivente e a companheira sobrevivente, conforme demonstra o acórdão abaixo destacado:

CONCUBINATO E CASAMENTO. DUPLICIDADE DE UNIÃO AFETIVA. EFEITOS. Caso em que se reconhece que o 'de cujus' vivia concomitantemente em estado de união estável com a apelante (inclusive com filiação) e casamento com a apelada. Caso concreto em que, em face da realidade das vidas, se reconhece direito à concubina a 25% dos bens adquiridos na constância do concubinato. DERAM PARCIAL PROVIMENTO. [SEGREDO DE JUSTICA] [APELAÇÃO CÍVEL Nº 70004306197, OITAVA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: RUI PORTANOVA, JULGADO EM 27/02/2003.

Com o presente artigo, chega-se à conclusão que não está elucidado o esclarecimento de todas as questões envolvendo o tema. Seria justo, perante o caso especificado anterormente, além de ter direito a uma porcentagem dos bens adquiridos durante a constância do concubinato, ainda pleitear o direito real de habitação? Não deveria o legislador especificar os casos em que se tem o direito de solicitar o direito de habitação? A Constituição Federal de 1988 acolheu a união estável como entidade familiar, mas o artigo 1.723 da Lei nº 10.406/2002 relaciona os requisitos essenciais para o seu reconhecimento. A pesquisa também demonstrou que existe a necessidade do legislador suprir a omissão normativa sobre o direito real de habitação, no âmbito do Código Civil vigente.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito das sucessões passou por profundas modificações com a edição da Lei nº 10.406/2002, sendo que nas questões inerentes à pretensão do direto real de habitação do companheiro sobrevivente, o mesmo encontrará amparo legal expresso, apenas nas disposições do parágrafo único do artigo 7º, da Lei nº 9.278 de 10/05/1996. Contudo, poderá encontrar obstáculos no deferimento do seu pedido, uma vez que existe corrente doutrinária sustentando que este dispositivo legal foi revogado tacitamente pelo Código Civil vigente. Cabe aqui ao legislador suprir a omissão normativa sobre o direito real de habitação, no âmbito do Código Civil em vigor, pois de acordo com as manifestações doutrinárias e as conclusões extraídas das normas jurídicas contidas no Código Civil revogado com as do Código Civil vigente, houve um retrocesso substancial nos direitos relativos ao companheiro sobrevivente e um avanço expressivo nos direitos do cônjuge sobrevivente, entre outras alterações promovidas pelo legislador, através da Lei n° 10.406/2002. Apenas para exemplificar, o direito real de habitação em favor do companheiro sobrevivente foi omitido no contexto desta lei; enquanto que, o mesmo direito restou facilitado em favor do cônjuge sobrevivente. O direito por ser uma ciência viva, é gerador de conflitos doutrinários, e quando se trata da existência ou não do direito real de habitação em favor do companheiro sobrevivente, os questionamentos são muitos, cabendo ao operadores do direito, buscar sempre o melhor entendimento para a elucidação desses conflitos.



REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS

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BRASIL. Lei n.º 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil. Disponível em: <http//www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 11 abr. 2005.

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ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Civel Nº 70009478322. Sétima Câmara Cível. Relatora: Maria Berenice Dias. Julgado em 27/10/2004. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 11 abr. 2005.

DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Apelação Cível Nº 20020310161859. Segunda Câmara Cível. Relator: Waldir Leoncio Júnior. Julgado em 19/08/2004. Disponível em: <http://www.tj.df.gov.br>. Acesso em: 11 abr. 2005.

ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Civel Nº 70004306197. Oitava Câmara Cível. Relator: Rui Portanova. Julgado em 27/02/2003. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 11 abr. 2005.

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Sobre o(a) autor(a)
Adriana Espezim Schlogl
Advogada, atuando no Escritório Modelo de Advocacia da Univali -Itajaí/SC
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