Uma breve análise ao princípio da boa-fé objetiva no Brasil

Uma breve análise ao princípio da boa-fé objetiva no Brasil

Abordagem a respeito do princípio da boa-fé objetiva e suas influências dentro da nova Teoria Contratual.

1 - Introdução

Para que seja harmoniosa, a vida do homem em sociedade exige de todos, formas de conduta leais e honestas. No direito romano, a origem do conceito de boa-fé aparece da seguinte forma: “ no campo religioso, com a clientela e garantia e com os deveres ligado à garantia”1; estes pontos evoluem com o tempo até se tornar uma cláusula geral no sistema romano.

Nos tempos modernos a boa-fé objetiva foi desenvolvida pelo Direito germânico, que a identificou com a expressão Treue und Glauben. “Treue significava comportamento autêntico de alguém em conseqüência de um contrato”, [1] e nos últimos tempos como ponto basilar de bons valores; já a palavra Glauben tinha o significado de confiança.

Observa-se que a cláusula geral da boa-fé objetiva existe desde os primórdios em ordenamentos jurídicos pelo mundo, bem como em nosso país, mas foi com o Código de Defesa do Consumidor e com o Novo Código Civil que esta foi expressamente posta em texto legislativo nacional.

Este artigo pretende fazer uma breve análise da cláusula geral da boa-fé objetiva, identificando quais são os fatos violadores deste princípio e qual o grau de sua incidência e funções.

Caberá à jurisprudência definir o alcance da norma dita aberta do novo código civil, como aliás, já vinha fazendo como regra, ainda que não fosse mencionado expressamente o princípio da boa-fé nos julgados. É possível observar nas decisões as funções deste princípio. São elas: função interpretativa (art.113 NCC); função de controle dos limites do exercício de um direito (art. 187 NCC) e função de integração do negócio jurídico (art. 422 NCC).


2 - A cláusula geral da Boa-Fé no Brasil.

O legislador brasileiro no Código Comercial de 1850, em seu art. 131, I, colocou a Boa-Fé como ponto basilar para qualquer interpretação dos contratos, se estes contivessem alguma lacuna. Pode-se observar que as cláusulas contratuais tinham força equivalente a uma lei.

Em 1916, o Brasil assistiu o surgimento no ordenamento jurídico pátrio, do primeiro Código Civil nacional. O Código Civil de Clóvis Beviláqua, não possui qualquer menção a Boa-Fé objetiva, levando em conta o contexto histórico em que o país se encontrava, pode-se concluir que os interesses econômicos (agrário e mercantil) e políticos (liberalismo), se sobrepuseram-se ao social.

O Estado liberal deveria se manter-se a margem da dinâmica social e das relações econômicas da vida privada de seus cidadãos, para facilitar a contratação e o crescimento da indústria.

Nas relações de trabalho e nas relações de direito real, aconteceu o início de uma intervenção estatal, em parte por uma grande influência de tratados internacionais, que buscavam um maior equilíbrio entre as partes.

Na Constituição da República de 1988, ocorreu uma divergência com a política liberalista do passado, estabelecendo o Estado como garantidor do direito da igualdade e do progresso da sociedade, definindo limites e protegendo os mais desfavorecidos. Esta Carta Magna, previu a criação de um Código de Defesa do Consumidor que defendesse o cidadão comum.

A positivação da Boa-Fé objetiva ocorreu, assim, no Código de Defesa do Consumidor, sendo colocada como parâmetro hábil para proporcionar a harmonia das relações de consumo (art. 4, III) e permitindo a invalidação de cláusulas que estabelecessem obrigações incompatíveis com a Boa-Fé (art.51, IV).

A última positivação no ordenamento jurídico pátrio ocorreu no Novo Código Civil, em seus artigos 113; 187 e 422, que contém as funções básicas do princípio da Boa-Fé objetiva.

O direito Civil nacional, viu-se influenciado pelo sistema de cláusulas abertas do Código de Defesa do Consumidor, que estava e ainda está sendo aplicado de uma forma maximalizada, abrangendo muitas relações que não são de consumo. Isto ocorreu, pelo grande avanço do Direito do Consumidor e pela falta deste no Direito Civil. Acredita-se que com as modificações feitas na legislação civil, as relações estritamente civis se limitar-se-ão às normas próprias, enquanto que a doutrina finalista do direito do Consumidor ganhará espaço.


3 - Distinção entre Boa-fé objetiva e a subjetiva

Quando se pensa em Boa-Fé, a primeira associação que se faz está relacionada com a má-fé; no Código Civil de 1916, quando era mencionado o termo Boa-Fé o legislador queria passar a idéia de erro de fato. Como exemplo desta idéia, cita-se o portador de boa-fé de título de crédito, que não tendo conhecimento da relação que originou o documento, viu-se em dificuldades para sacá-lo.

Conforme exposto acima, a Boa-fé que é tratada, passa, de acordo com Antônio Menezes, “por um estado de ignorância desculpável, que constituiria o núcleo conceitual da Boa-fé subjetiva” [2]. Sendo assim, os vícios do negócio jurídico da relação original não poderiam interferir no Terceiro de Boa-fé.

Entendido o significado da Boa-fé subjetiva, deve-se buscar entender a idéia de Boa-Fé objetiva. A Boa-Fé objetiva fez-se necessária para as novas situações que surgiram na sociedade moderna, que exigem relações harmônicas e leais para que seja mantida ou conquistada uma estabilidade.

Pode-se falar que a Boa-Fé objetiva compõe-se de regras gerais de conduta impostas pela sociedade como um todo, levando transparência entre as relações, caracterizada como “um dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, lisura e honestidade” [3]. Não se faz necessário para a validade de um negócio jurídico a mera inexistência de vícios do consentimento ou vícios sociais. Devem estes estar de acordo com a cláusula geral da Boa-fé objetiva.


4 - As funções básicas da Boa-fé objetiva

Compreendido o significado do princípio da cláusula geral da Boa-Fé objetiva, que expõe a obrigação de cada um de respeitar os interesses, vontades e objetivos do próximo, evitando desta forma dano e desvantagem excessiva, deve-se verificar suas funções básicas, que são: função limitadora; função interpretativa e fonte de novos deveres.

Pode-se analisar como primeira função básica a Boa-Fé objetiva como fonte de novos deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, criando-se desta forma os deveres anexos aos da prestação contratual. Como exemplo destes deveres anexos, deve ser citado o dever de informar, no qual a informação deve ser clara e minuciosa para um bom entendimento do contexto, do contrário o princípio da Boa-Fé objetiva fica violado.

Na concreção das relações e na interpretação dos contratos é observado a função interpretadora, pois a única forma cabível de análise de qualquer relação negocial segue a ótica da Boa-fé objetiva, possibilitando observar o todo, ou seja o negócio jurídico, da forma como foi acertado pelas partes envolvidas.

A terceira função básica do princípio da Boa-fé objetiva é ser limitadora do exercício, antes lícito, hoje não mais aceito, reduzindo desta forma a liberdade das partes contratantes no momento de elaborar as cláusulas contratuais.

Um caso julgado pela 7ª Câmara Civil do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, [4] dizia respeito a um contrato de plano de saúde, sem a ocorrência de vícios do negócio jurídico, porém com uma cláusula que, livremente pactuada, não previa uma determinada intervenção cirúrgica, se a contratante viesse necessitar.

O contrato entre as partes foi celebrado em 1995, portanto, antes da Lei n.º 9.656 de 03 de junho de 1998, que regulamentou Planos de Saúde, que ampliou os direitos dos contratantes.

Prepostos do Plano de Saúde prometeram à consumidora contratante preservar-lhe de todos os males, por ocasião da assinatura do contrato. Neste caso, deve ser ressaltado que o vendedor que faz uma oferta está automaticamente vinculando seu patrão o contrato; ficando caracterizada a responsabilidade solidária entre as pessoas “empregado – patrão”.

O presente caso será descrito e discutido sob a ótica do princípio da Boa-Fé objetiva:

A cliente sofreu uma fratura do fêmur direito, sendo submetida a uma cirurgia. Como complicação pós-cirúrgica, a paciente ficou impossibilitada de andar. Deste modo, uma nova cirurgia foi-lhe indicada (artroplastia total do quadril).

Consequentemente, o Plano de Saúde negou-se a fornecer o serviço, sob o argumento de o segundo procedimento cirúrgico estava excluído expressamente do contrato original; e como este tinha sido celebrado antes da vigência da Lei n.º 9.656 de 03 de junho de 1.998, deveria ser interpretado estritamente com base em suas cláusulas específicas.

Com base nestes argumentos, não se observa a presença de vícios, entretanto a cláusula limitadora do tratamento do paciente está relacionada no rol das cláusulas abusivas, de acordo com o Art. 51 do Código de Defesa do Consumidor.

Deve ser lembrado, que cláusula incompatível com a boa-fé e eqüidade é toda aquela que frustra as expectativas do contratante acerca da efetiva contraprestação do serviço. O magistrado, neste caso, deve não só verificar a sua validade diante da lei como se atente o princípio da equidade no contrato.

Sendo assim, não se pode utilizar o argumento de que o contrato era anterior à lei que definiu a cláusula contratual como abusiva, pois não foi a lei que transformou a cláusula em abusiva, mas sim os princípios que fundamentaram a lei, no caso, o princípio da cláusula geral da Boa-fé objetiva.

Observa-se, no ordenamento jurídico brasileiro, a positivação destas funções da Boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078 de 1990 e também no Novo Código Civil Brasileiro.

 
5 - A Boa-fé objetiva e a nova Teoria Contratual

Com a mundialização (termo que não só se observa sob a ótica econômica, mas também sob uma sistematização cultural) ou para quem preferir, com a globalização, a sociedade vive em um contexto de extremo consumo, caracterizado por contratos já formulados e de adesão.

O Direito como ciência social aplicada deve estar sempre em transformação para acompanhar as mudanças do mundo moderno, desta forma observa-se o “surgimento de uma nova realidade contratual” [5], que possa garantir um certo controle sobre os conteúdos dos contratos em geral.

Os contratos regidos apenas pelo princípio do pacta sunt servanda, que tem como idéia principal a tradicional sentença, “os contratos fazem leis entre as partes” e fundamentado pela autonomia da vontade, não estão em sintonia ao momento em que vivemos.

A nova Teoria Contratual, nos está levando “de um espaço reservado e protegido pelo direito da livre e soberana manifestação da vontade das partes, para um espaço onde somos um instrumento jurídico mais social, controlado e submetido a uma série de imposições cogentes, mas equitativas” [6].

De acordo com esta nova Teoria Contratual, o contrato busca uma função social onde deve ser avaliado à luz do princípio da cláusula geral da Boa-Fé. A função social dos contratos, acompanhada do princípio da Boa fé estão presentes na feitura do negócio, bem como no momento que são produzidos seus efeitos.

A igualdade idealizada pela Revolução Francesa é mera utopia, pois na prática o que se observa é a desigualdade. Para que ocorra uma certa paridade e a justiça seja alcançada, deve-se ter como paradigma a Boa-fé objetiva.

O princípio da Boa-fé objetiva transformou a idéia tradicional das fontes de direitos e obrigações subjetivas, desta forma, deve ser aplicada como princípio jurídico norteador de todas as relações obrigacionais, dominando e tutelando todo o ordenamento” [7].

Limitando-se a autonomia da vontade das partes, evita-se que o mais forte se sobreponha ao mais fraco. A autonomia da vontade em um contexto desigual, sem harmonia e sem informação não é exercida de fato.


6 - Conclusão

A cláusula geral da Boa-fé, é um dos fundamentos da proibição de cláusula abusiva em negócios jurídicos e desta forma constitui meio para intervenção direta nos contratos em geral.

A Boa-fé objetiva está atualmente positivada no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil, mas não restam dúvidas da presença deste princípio no ordenamento jurídico anterior.

Nas relações de consumo, aumentaram os casos submetidos ao poder judiciário com fundamento no princípio da Boa-Fé objetiva, principalmente pelos seguintes motivos: a) o Código de Defesa do Consumidor positivou esta cláusula 12 anos antes do Novo Código Civil; b) o jurista brasileiro muitas vezes teme aplicar o que não está expresso na lei; c) na relação de consumo existe a presença do hipossuficiente, que provavelmente influencia psicologicamente todos os articuladores para uma interpretação mais maleável e menos tradicional.

Desta forma, afirma-se sem ressalvas que o princípio da boa fé não é apenas do direito do Consumidor, mas sim, uma cláusula geral do Direito, que objetiva sempre lealdade, liberdade de informação, dever de cuidado e harmonia dentro da sociedade moderna.

Os valores agrupados pela Boa-Fé objetiva devem sempre buscar a efetivação dos preceitos constitucionais, para uma nova compreensão das matérias relacionadas às obrigações e responsabilidades, visando uma função social dos negócios jurídicos.


Bibliografia:

AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos. RT 775/11.

COUTO E SILVA, Clóvis do. O Princípio da boa-fé no Direito Brasileiro e Português, in Estudos de Direito Civil Brasileiro e Português (I Jornada luso-brasileira de Direito Civil), Ed. Revista dos Tribunais, 1980.

GONDINHO, André Osório. Codificação e cláusulas gerais.

MARTINS, Flávio Alves. A Boa-fé objetiva e sua formalização no Direito das Obrigações Brasileiro, Ed. Lumen Juris, 2000.

MENEZES CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e. Da Boa-fé no Direito Civil. Ed. Almedina, Coleção Teses, 1997.

NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-fé, Ed. Renovar, Biblioteca de Teses.

CAVALCANTI, Bruno Navaes. O Princípio da boa-fé e os Contratos de Seguro. Recife: Nossa Livraria, 2000.

COSTA, Judith Martins. Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: RT., 2000, p. 382.
CORDEIRO, Antônio. A boa-fé nos finais do século XX. In: Revista da Ordem dos Advogados Portugueses, Lisboa: ano 56, III, dez. 1996, p. 887, citado por Bruno Novaes B. Cavalcanti, In O Princípio da Boa-fé e os Contratos de Seguros.

GOMES, Orlando. O Princípio da boa-fé no Código Civil Português. Revista do IAA, p.177.

MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado, Ed. Revista dos Tribunais, 1999.

[1] MENEZES CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e. Da Boa-fé no Direito Civil. Ed. Almedina, Coleção Teses, 1997.

[2] MENEZES CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e. Da Boa-fé no Direito Civil. Ed. Almedina, Coleção Teses, 1997.

[3] NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1994.

[4] Tribunal de Alçada de Minas Gerais. 7ª Câmara Cível.

Apelação. Processo n.º 357.436-9

[5] Marque, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: RT, 2002.

[6] Marque, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: RT, 2002.

[7] MARTINS-COSTA, Judith. A incidência do princípio da Boa-fé no período pré-negocial: reflexões em torno de uma notícia jornalística. Revista de Direito do Consumidor, n.º 4. São Paulo: RT, 1992.

Sobre o(a) autor(a)
Alexandre de Lima e Silva
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Belo Horizonte, com especialização em Direito Civil pela Universidade Gama Filho e atualmente mestrando pela FUMEC de Belo Horizonte. Com passagens pelo Ministério Publico de Minas...
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