Covid-19: imunização obrigatória e os reflexos nas relações de trabalho

Covid-19: imunização obrigatória e os reflexos nas relações de trabalho

O artigo aborda a recente decisão do STF acerca da imunização compulsória e compara com jurisprudência estrangeira, procedendo à uma análise do impacto dessa obrigatoriedade nas relações de trabalho.

A pandemia de COVID-19 trouxe grandes desafios aos setores produtivos, impactando drasticamente as economias mais consolidadas do planeta e, notadamente, a dos países em desenvolvimento. A partir de dezembro de 2020, as autoridades sanitárias de países como Inglaterra, Estados Unidos da América, México, Argentina e Chile, entre outras, aprovaram as vacinas disponibilizadas por renomadas indústrias farmacêuticas. Com isso, iniciou-se o processo de imunização. Diante do cenário sucintamente descrito, surgem algumas reflexões que atingem diretamente as relações laborais, quais sejam:

  • A vacinação será obrigatória? 
  • O empregador pode exigir que seus empregados e terceiros se vacinem? 
  • Se sim, que medidas podem ser adotadas em relação àqueles empregados e terceiros que se recusam a submeterem-se ao imunizante?

As questões norteadoras acima se mostram muito relevantes, porque com o início de um programa de imunização capitaneado pelo poder público, é inevitável o enfrentamento desses pontos de atenção, na medida em que impactam nas relações trabalhistas no Brasil.

Inicialmente, há que se diferenciar vacinas distribuídas universalmente pelo Sistema Único de Saúde das vacinas ditas eletivas, isto é, não são asseguradas pelo poder público, mas que podem ser adquiridas em redes privadas. É o Ministério da Saúde quem, em nome da República Federativa do Brasil, define quais serão os imunizantes que farão parte do calendário de vacinação oficial. Para fins conceituais, a essas vacinas, referimos como “obrigatórias”, enquanto designaremos “eletivas” aquelas que não fazem parte do calendário do Programa Nacional de Imunização, definido pela Lei n. 6.259/1975 (Governo Ernesto Geisel):

“Art 3º Cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório. Parágrafo único. As vacinações obrigatórias serão praticadas de modo sistemático e gratuito pelos órgãos e entidades públicas, bem como pelas entidades privadas, subvencionadas pelos Governos Federal, Estaduais e Municipais, em todo o território nacional”.

No Brasil, tão logo o Instituto Butantan (Estado de São Paulo) noticiou convênio firmado com o laboratório Sinovac, houve a deflagração de uma espécie de “politização” da vacina. Por motivo de oposição política, representantes legais do Governo Federal e do Governo do Estado de São Paulo inauguraram uma disputa pública, com grande repercussão midiática. Com isso, o Ministério da Saúde verbalizou, em pronunciamento, que a vacina contra COVID-19 produzida pelo laboratório Sinovac, em princípio, não seria obrigatória. Esse pronunciamento talvez tenha sido um dos motivos pelos quais o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, que já tinha esse tema em sua pauta – constitucionalidade da vacinação obrigatória – se debruçasse sobre o assunto, em 17.12.2020, por meio de acórdão[1] que, por 10 votos a 1, foi taxativo ao estabelecer que:

(a) “É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, 

(i) tenha sido incluída no programa nacional de imunizações; 

(ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei; 

(iii) seja objeto de determinação da União, Estados e Municípios, com base em consenso médico científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar”. 

b) “(I) A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, porquanto facultada sempre a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e 

(i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes,

(ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, 

(iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas, 

(iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade e 

(v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente; 

(II) tais medidas, com as limitações acima expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência”.

À luz da decisão do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, portanto, é constitucional a imunização obrigatória, desde que o imunizante seja autorizado pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e seja considerado obrigatório pela União, Estados ou Municípios, cada qual em sua base competencial. De acordo com a decisão da Suprema Corte brasileira, liberdades individuais, convicções filosóficas ou até mesmo religiosas não legitimam a recusa deliberada a vacinar-se. Cabe à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, nos limites de suas respectivas competências, determinar se a aplicação do imunizante será ou não compulsória.

A decisão judicial de repercussão geral, acima mencionada, ressalva, porém, que vacinação compulsória não significa vacinação forçada. O poder público pode tornar compulsória a aplicação de vacina, apesar de não poder vacinar ninguém à força, ou seja, manu militare. É lícito, todavia, estabelecer medidas indiretas que condicionem o exercício de determinadas atividades ou a frequência a determinados lugares à comprovação de imunização.

Não é primeira vez em que surge, no âmbito jurídico, a discussão sobre a licitude de recusa a vacinar-se, invocando-se a liberdade de consciência, por exemplo. O tema, por isso mesmo, foi debatido na mais alta Corte brasileira. Já há, na legislação nacional, medidas restritivas que condicionam direitos à comprovação de imunização. À título de exemplo, citase a Lei 8.213/1991, que em seu artigo 76, assegura o pagamento do benefício intitulado “salário-família” mediante comprovação de regularidade vacinal, in verbis:

“Art. 67. O pagamento do salário-família é condicionado à apresentação da certidão de nascimento do filho ou da documentação relativa ao equiparado ou ao inválido, e à apresentação anual de atestado de vacinação obrigatória e de comprovação de frequência à escola do filho ou equiparado, nos termos do regulamento”. (Redação dada pela Lei nº 9.876/1999).

Ponto de fundamental relevância está em saber se o empregador pode, a partir do momento em que determinado imunizante ingressa no Programa Nacional de Imunização como obrigatório, exigir que seu empregado ou trabalhador terceirizado apresente a comprovação de imunização. Pois bem. Desde que a União, Estado ou Município classifique o imunizante como obrigatório e o distribua de modo universal e gratuito, parecenos lícito ao empregador condicionar o acesso às suas instalações à comprovação de vacinação. Isto porque, o empregador, ao fazê-lo, está a proteger a saúde coletiva de seus empregados, fornecedores e visitantes.

Com trabalhadores terceiros, a aplicação dessa exigência é ainda mais facilitada, na medida em que pode, a empresa contratante, impor à empresa contratada que só disponibilize trabalhadores que atendam à condição de prévia imunização contra COVID-19.

O precedente judicial do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL evidencia que a tutela da saúde coletiva se sobrepõe a decisões individuais resultantes de convicções pessoais, de cunho filosófico ou religioso.

Atualmente, há indústrias metalúrgicas, por exemplo, que exigem dos trabalhadores – empregados ou terceiros –, que adentram à linha de produção, comprovem imunização antitetânica, por exemplo. Essa exigência é lícita na medida em que a vacina antitetânica é autorizada pela ANVISA e distribuída gratuita e universalmente na rede pública. Não se tem notícia de decisões judiciais assecuratórias do direito de se opor à vacina contra o tétano, nesses casos, por exemplo.

No caso dos imunizantes contra COVID-19, até o dia da elaboração do presente artigo, não há notícia de concessão de autorização por parte da ANVISA, muito embora seja iminente a ocorrência desse fato. Portanto, a partir do momento em que a ANVISA autorizar esse ou aquele imunizante e a União, o Estado ou o Município definir sua aplicação como obrigatória, será lícito ao empregador exigir que, observado determinado prazo, todos os ingressantes em suas dependências comprovem a imunização.

Caso o empregador opte por fornecer o imunizante, mediante a realização de campanha interna de vacinação – se a aquisição do imunizante pelos particulares for, em algum momento, autorizada – deverá assegurar aos empregados e/ou terceiros que optem por se vacinarem nas suas dependências, na rede privada ou na rede pública (Sistema Único de Saúde). 

Contudo, com fundamento na decisão do STF, sendo a vacina aprovada pela ANVISA e considerada obrigatória pela União, Estado ou Município, a decisão de não se imunizar pode trazer consequências restritivas à pessoa que tomar essa decisão individual, como, por exemplo, restrição de acesso às dependências da empresa. 

Mas não é só. É possível se pensar na adoção de medidas indiretas com repercussão econômica para o empregado como, por exemplo, a perda de participação nos lucros e resultados, desde que a imunização esteja prevista no instrumento normativo da categoria como condição para a elegibilidade à referida parcela.

A interpretação histórica do instituto da vacinação obrigatória se faz necessária, porque a exegese jurídica aplicada em tempos de pandemia é substancialmente distinta daquela levada à termo em tempos de normalidade. A decisão proferida pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, sob esse ângulo de análise, se mostra absolutamente alinhada com a jurisprudência de outros países, durante surtos endêmicos de outras épocas, como se passa a ilustrar:

SUPREMA CORTE ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA:

1. Jacobson v. Massachusetts, 197 U.S. 11 (1905). A Corte decidiu, por 7 votos a 2, que a cidade de Cambridge, em Massachusetts, poderia multar os residentes que se recusassem a receber a vacina contra varíola. [On this day, the Supreme Court rules on vaccines and public health] [Landmark Case].

2. Zucht v. King, 260 U.S. 174 (1922). A Corte decidiu ser constitucional que uma escola no Texas impedisse crianças não vacinadas de frequentar a escola. 

3. Compagnie Francaise de Navigation a Vapeur v. Louisiana Board of Health,186 U.S. 380 (1902). A Corte considerou válida leis de quarentena como um exercício razoável do poder de polícia. 

4. Gibbons v. Ogden, 22 U.S. 1 (1824). O Ministro Presidente John Marshall observou que o poder de polícia inclui também leis de quarentena e leis de saúde de todos os tipos. [Police Powers During a Pandemic:Constitutional, but Not Unlimited].

SISTEMA JUDICIÁRIO DO REINO UNIDO:

1. Re SL (Permission to Vaccinate) [2017] EWHC 125 (Fam). (30/01/2017) O Tribunal (High Court of Justice – Seção de Família2) considerou justificada a interferência no direito da mãe de ter respeitada sua vida familiar diante do interesse de proteger a saúde da criança e vaciná-la.

CORTE CONSTITUCIONAL DA ALEMANHA:

1 BvR 469/20 (11.05.2020). Em recentes contestações à Lei de Proteção contra o Sarampo, o Tribunal Constitucional Federal Alemão negou medida provisória contra a obrigatoriedade da vacinação infantil, afirmando que “o objetivo da Lei é, em particular, a proteção da vida e da integridade física, para a qual o Estado, em princípio também tem o dever de proteger sob os direitos fundamentais do art. 2 (2) S. 1 da Grundgesetz. Balanceando as vantagens e os danos potenciais da suspensão da lei, o Bundesfervassungsgericht argumentou que “a vacinação contra o sarampo não apenas protege os afetados, mas também tem o objetivo de evitar que a doença se alastre ainda mais entre a população. Desta forma, as pessoas que não podem ser vacinadas por razões médicas podem ser especialmente protegidas”3 .

A Consolidação das Leis do Trabalho, em seu art. 482, da CLT, estabelece as hipóteses de dispensa do empregado por justa causa. Esse mesmo dispositivo, na alínea “h”, enumera como infração o “ato de indisciplina ou de insubordinação”. A indisciplina se caracteriza pelo descumprimento, por parte do empregado, a regras regulamentares ou ordens gerais impostas pelo empregador. Já a insubordinação ocorre quando o empregado se recusa a cumprir ordens diretas do empregador. 

Seguindo essa linha de raciocínio, é defensável a assertiva de que a recusa deliberada do empregado em cumprir determinação legal e regulamentar da empresa acerca da imunização contra a COVID-19 configura, no limite, ato de indisciplina. Entendemos que essa hipótese seria bastante extrema e só deveria ser utilizada, em último caso, após tentativas de conscientização e aplicação de medidas indiretas e pedagógicas. 

Não recomendamos, neste artigo, a realização de dispensas por justa causa pela recusa deliberada em imunizar-se, face ao risco que uma medida tão extrema prejudicar a estabilidade do ambiente de trabalho, além do elevado potencial de judicialização. Por outro lado, nada obsta, todavia, que dispensa sem justa causa seja realizada por opção da empresa no sentido de evitar pessoas não imunizadas em seus quadros. Trata-se de direito potestativo do empregador.

Há quem defenda que a dispensa sem justa causa, decorrente da recusa do empregado em imunizar-se corresponderia a uma dispensa discriminatória. Com todo o respeito, discordamos dessa posição. Entendemos, ao revés, que é direito do empregador condicionar o acesso às suas instalações físicas à prévia imunização, de modo a garantir um ambiente sanitariamente sadio aos demais empregados, terceiros, fornecedores e visitantes. Em síntese, a clara sinalização, feita pelo STF na decisão aqui mencionada, no sentido da prevalência da saúde coletiva sobre decisões individuais lastreia, a nosso sentir, essa conclusão.

Em síntese, entendemos que:

(i) A partir da decisão do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, em 17.12.2020, tem-se que a vacinação contra a COVID-19 no Brasil será obrigatória, desde que preenchidos seguintes requisitos: (a) aprovação pela ANVISA; (b) inserção da vacina no Programa Nacional de Imunização; e, (c) inclusão no rol de vacinas obrigatórias da União, Estados, Distrito Federal ou Município, nos limites de suas respectivas competências. 

(ii) Cumpridos os requisitos mencionados no item anterior, o empregador poderá, licitamente, impor a imunização contra a COVID-19 como condição necessária ao desempenho da função ou ao ingresso nas dependências da empresa, por empregado ou terceiro. 

(iii) É lícito à empresa adotar, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho, outras medidas indiretas de estímulo à imunização como, por exemplo, condicionar a elegibilidade do recebimento de participação nos lucros e resultados à comprovação de imunização contra a COVID-19, à exemplo do que ocorre atualmente com o benefício do salário-família, nos termos do art. 67, da Lei 8.213/1991.

Notas

1 Decisão proferida nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) n. 6.586 e 6.587 e no Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) n. 1.267.879, em 17.12.2020.

2 https://www.gov.uk/courts-tribunals/family-division-of-the-high-court 

3 Fonte: COVID-19 Walking the Tightrope of Vaccination Obligations.

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Wagner Gusmão Reis Junior
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