Os limites ao uso da teoria da cegueira deliberada nos crimes de lavagem de dinheiro no Brasil

Os limites ao uso da teoria da cegueira deliberada nos crimes de lavagem de dinheiro no Brasil

Aborda o instituto da cegueira deliberada e sua aplicação nos crimes de lavagem de dinheiro no direito brasileiro. Para tanto, estuda o conceito da teoria, bem como o conceito da lavagem de dinheiro, para por fim, constatar a desnecessidade do uso.

INTRODUÇÃO

Busca-se com o referido artigo contextualizar e indicar quais os limites são impostos à utilização da teoria da cegueira deliberada nos crimes de lavagem de dinheiro no Brasil, estudando para tanto  qual o elemento subjetivo previsto legalmente no crime de lavagem de dinheiro em âmbito brasileiro, bem como quais são os limites legais impostos pelo próprio ordenamento jurídico pátrio, que vedam em partes a utilização da referida teoria.

Para tanto, necessário se faz uma análise acerca da teoria da cegueira delibera, dentro do seu contexto de surgimento no direito norte americano, bem como o que se busca com a utilização desta teoria no ordenamento jurídico brasileiro, entendendo qual aspecto ela assumiria no atual contexto.

Com a estruturação da teoria da cegueira deliberada bem como após o entendimento de qual papel assumiria no ordenamento jurídico brasileiro, importante análise deve ser feita a cerca do crime de lavagem de dinheiro, buscando remontar sua origem e principais mudanças legislativas, tendo em vista que tais alterações, excepcionalmente a advinda com a Lei 12.863/2003, que alterou significativamente o entendimento quanto ao elemento subjetivo exigido no crime de lavagem de dinheiro, que antes só poderia ser entendido como dolo direito, passando após essa mudança a assumir também a sua imputação a título de dolo eventual. Tal mudança é fundante e explica, ao menos em parte o surgimento e ganho de força da teoria da cegueira deliberada dentro do ordenamento jurídico brasileiro, ao menos no que tange aos crimes de lavagem de dinheiro, uma vez que passou a prever e não limitar o conhecimento do agente quanto a origem dos bens e/ou valores.

Após o estudo e entendimento das mudanças quanto a aceitação do elemento subjetivo no crime de lavagem de dinheiro, pode-se entender em que contexto se busca a utilização da teoria da cegueira deliberada para imputação dos crimes de lavagem de dinheiro no Brasil, de modo que se buscar atribuir a título de dolo eventual, condutas tipicamente desconhecida deliberadamente pelo autor desta, que escolheu se manter ignorante a este fato para se livrar de uma responsabilidade futura.

Ocorre que muito embora a alteração legislativa de 2003 tenha autorizado a imputação a título de dolo eventual, a teoria da cegueira delibera segue sendo barrada quando da sua utilização nos crimes de lavagem de dinheiro, muito pela existência de outros dispositivos infraconstitucionais que acabam por vedar a sua utilização, sendo o principal deles a figura do erro, previsto dentro do Código Penal.

Desta forma, importante se faz por fim o estudo acerca destes impedimentos legais, quanto a utilização da teoria da cegueira deliberada dentro do direito penal brasileiro no que concerne aos crimes lavagem de dinheiro, vez que esbarram na questão de não possuir a lavagem de dinheiro culposa, bem como não há como reconhecer o conhecimento onde conhecimento não há, tratando de retirar o dolo dos casos onde o indivíduo age com cegueira deliberada, entendendo nesta medida a figura do conhecimento como elemento essencial para a configuração do dolo, através do estudo do dispositivo do erro.  

1 A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA

A teoria da cegueira deliberada ou willful blindness encontra precedentes na Inglaterra em casos da corte daquele país, mais precisamente no caso R. v. Sleep onde, embora a corte desse país não tenha enfrentado de fato essa questão, abriu margem para precedentes posteriores acerca do tema. Neste momento importante contextualizar que embora seja denominada como “teoria”, a cegueira deliberada não possuí qualquer pesquisa fundada e aprofundada, mas sim atua como verdadeiro precedente dos tribunais ingleses e norte-americanos. Denota-se ainda que a origem de teoria da cegueira se faz presente na Inglaterra, tendo uma grande difusão no direito norte americano, não como uma teoria em si, mas sim como precedentes do tribunal desses países, valendo-se lembrar que são países de origem common law, assim, tendo bases jurídicas totalmente distintas da conhecida no Brasil.

Acerca da teoria da cegueira deliberada pode-se apontar que essa teoria surge para criminalizar a conduta de se manter ignorante, deliberadamente, acerca do ato anterior ilícito, a fim de se beneficiar disso posteriormente em um processo criminal, alegando o desconhecimento da origem ilícita. Urge salientar ainda que a teoria da cegueira deliberada é difundida dentro do direito criminal norte americano, que é muito peculiar por possuir um sistema típico federalista. Assim o direito criminal norte americano possui basicamente um “código penal” para cada federação, não tendo uma parte geral, como ocorre no Brasil. Por este motivo fundante que em algumas federações determinada conduta é criminalizada enquanto em outras não, possuindo as federações competência para legislar sobre essas matérias. Nesse sentido, existe o Model Penal Code – MPC, que é usado como uma diretriz de base, um modelo para que as federações usem em conceitos objetivos, como o da “Mens Rea”, que é tido como o elemento subjetivo do crime dentro desse sistema penal. Nesse sentido não é possível que se faça um comparativo entre os elementos subjetivos do crime no direito norte americano e brasileiro, vide que o direito americano sequer reconhece a figura do dolo, como é tido no direito brasileiro (LUCCHESI, 2018).

No direito penal brasileiro a teoria da cegueira deliberada aparece com enfoque em casos emblemáticos na jurisprudência pátria, como o furto ao banco central e o caso do mensalão, sendo o foco principal acerca da utilização da teoria da cegueira deliberada dentro do direito brasileiro se dá pela problemática, igualmente do direito norte americano, acerca do elemento subjetivo do crime, pois no direito brasileiro, não há uma teoria, tanto da culpa como do dolo, que é capaz de recepcionar ou abarcar o uso da concepção de cegueira deliberada no sistema penal brasileiro. Nesse sentido, entende Lucchesi que não é possível simplesmente transplantar a teoria da cegueira deliberada para países de matrizes penais completamente distintas sem que antes seja efetuado um esforço moderado com um método para análise do direito comparado sem qualquer contaminação ao longo do processo (LUCCHESI, 2018, p. 125).  

Ao buscar-se uma condenação correta em sede criminal ou sancionatória em geral, é preciso que as bases que fundamentam as decisões sejam adequadamente utilizadas sob pena de se prejudicar o Estado Democrático de Direito e o devido processo legal. É preciso regras para tal aplicação uma vez que atribuir normativamente a alguém a figura do dolo exige certos requisitos (NAISSER, 2017).

Dessa forma, vê-se que devem ser tomados alguns cuidados quando se é importada uma teoria de outro ordenamento jurídico, sobretudo quando de sistemas completamente antagônicos, vez que não podem ser simplesmente sobrepostos determinados conceitos, sem que se faça o estudo acerca do impacto causado.

Em que pese seja apontada como dificultosa a prova nos crimes de lavagens de capitais no Brasil, não se pode admitir que a falha decorrente desta lei, que não abarca determinados casos, possa ensejar na importação de uma teoria que busca uma verdadeira responsabilização penal objetiva, sob a ótica de estar se incorrendo em verdadeira usurpação de competência do poder judiciário, que estará inovando no mundo jurídico, tarefa que é atribuída essencialmente ao poder legislativo.

Desta feita, o que há na jurisprudência brasileira são casos onde se utiliza da teoria da cegueira deliberada, para então adequar uma conduta ao dolo eventual, e assim imputar o crime ao acusado, tal qual foi feito em primeira instancia no caso do furto a sede do Banco Central em Fortaleza, bem como nos autos de Apelação Criminal n° 5009722-81.2011.4.04.7002/ TRF4.

Trata aqui de esclarecer, portanto, que, caso o juiz, entenda que o acusado de determinado ilícito tenha agido de forma a deliberadamente fechar os olhos para a conduta anterior, a fim de se beneficiar disso posteriormente, poderá sentencia-lo como culpado a título de dolo eventual. Por outro lado, caso o juiz não entenda que o sujeito agiu de forma a fechar deliberadamente os olhos para a conduta anterior, e que de fato, não sabia a existência, poderá absolve-lo com base no art. 386, VII do CPP.  Resta evidente nesta medida, que em se pensando em cegueira deliberada, estar-se-ia entregando uma carta branca na mão dos magistrados, para poderem aplicar de forma indistinta, quando acharem que é cabível tal teoria, não tendo qualquer requisito objetivo para aplicação deste instrumento, já analisado, a decisão de entender pelo conhecimento, ou pelo não conhecimento motivado do agente, fica a cargo da persuasão racional do juiz.

2. CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO

O crime de lavagem de dinheiro existe há muito tempo, porém, nos últimos anos ganhou relevante destaque nas políticas internacionais, devido aos seus efeitos colaterais, vide que a impunidade desses crimes acaba desencadeando uma série de outros crimes de menor potencial ofensivo, ou até mesmo de maior potencial ofensivo.

A expressão lavagem de dinheiro surgiu por volta de 1920, nos Estados Unidos, sendo lá o delito chamado de money laundering. A teoria predominante acerca da origem da locução remonta à época em que os gangsteres norte-americanos utilizavam-se de lavanderias para ocultar o dinheiro provindo da atividade ilícita, como a venda de bebidas alcóolicas ilegais. Embora a expressão tenha sua origem recente, sua prática parece ser muito mais antiga, uma vez que existem evidências de que os piratas na Idade Média já buscavam desvincular os recursos provenientes do crime das atividades criminosas que os geraram (CALLEGARI, WEBER, 2017, p. 7).

Nesta medida, se tem que o crime, embora tenha ganhado grande destaque atualmente, já possuí incidência desde de a idade média, porém, nunca foi combatido como atualmente é, vide que os esforços para se evitar a e punir os agentes que praticam esse ilícito se dá de forma muito mais voluptuosa. Em suma, se aponta que a criminalidade em geral se dá em grande medida pelas desigualdades sociais presentes nos países, em especial no Brasil, onde sabemos ter uma desigualdade gritante, este cenário acaba por eclodir graves consequências para o meio social. “A lavagem de dinheiro procedente dos crimes serve, portanto, para gerar desigualdade social e com ela o incremento da criminalidade, da qual ninguém escapa [...]” (MENDRONI, 2018, p. 2).

Dentro do contexto brasileiro tem-se o crime de lavagem de dinheiro como a conduta de mascarar a origem ilícita do dinheiro, proveniente de qualquer crime, recolocando o dinheiro no mercado de maneira lícita, a fim de que esse dinheiro seja novamente tido como de origem lícita. Isso pode se dar de várias formas, um exemplo a ser citado é a compra de bens móveis e imóveis.

Desvinculação ou afastamento do dinheiro da sua origem ilícita para que possa ser aproveitado. O que fundamentou a criação desse tipo penal é que o sujeito que comete esse tipo de crime, que se traduz num proveito econômico, tem que disfarçar a origem desse dinheiro, ou seja, desvincular o dinheiro da sua origem criminosa e conferir-lhe uma aparência licita a fim de poder aproveitar os ganhos ilícitos, considerando que o móvel de tais crimes é justamente a acumulação material (JR. BALTAZAR, 2006, p. 405-406).

Resta assim, que o crime de lavagem de dinheiro é a conduta de colocar dinheiro de origem ilícita, para circular no mercado como se lícito fosse, comprando bens e fazendo investimentos, para que o dinheiro que fora conseguido de forma ilícita ganhe um visual de lícito, e o agente usufruindo dos bens que adquiriu com esses bens. Antes da significativa mudança trazida pela lei 12.863/2012 à redação original da lei 9.613/1998, o rol de crimes que poderiam ensejar em posterior lavagem de dinheiro era limitado, o que dificultava bastante a aplicação da norma, com a edição da nova lei, esse rol foi extinto, bastando agora a simples inocorrência de qualquer conduta típica como crime para que possa ensejar o crime de lavagem de dinheiro. Muito embora a higidez conferida com a alteração, o que se vê na pratica ainda é uma dificuldade para condenar os agentes, vide o problema apresentado no capitulo anterior, pois, com a divisão da doutrina, o entendimento no tribunal acaba sendo diverso, e não há uma segurança ou parâmetro objetivo que possa ser seguido. Ao se entender que qualquer pessoa pode ser punível pelo crime de lavagem de dinheiro, cabe fazer a explanação a respeito do sujeito que praticou o ilícito anterior, levando em consideração que não seja a mesma pessoa. Assim, só seria possível a imputação do agente que cometeu o crime antecedente de responder também pelo crime de lavagem de dinheiro, além de responder pelo ilícito anteriormente praticado. 

Ao examinarmos, portanto, o art. 1º da Lei 9.613/98, chega-se à conclusão de que qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo do delito de lavagem de dinheiro, já que o legislador brasileiro não estabeleceu nenhuma restrição nesse ponto. Por essa razão, pode-se concluir que o legislador não excluiu do círculo de possíveis sujeitos ativos aquelas pessoas que tenham participado como autores ou partícipes no delito prévio que deu origem aos bens jurídicos objetos de lavagem. Entretanto, ainda que a doutrina brasileira não tenha se manifestado sobre o tema, não nos parece aplicável aos casos de lavagem as considerações doutrinárias referentes à receptação.

Entendemos que são aplicáveis as conclusões a que chegam alguns autores espanhóis a respeito do delito de lavagem de bens previsto no art. 301 do Código Penal espanhol. Uma parte da doutrina espanhola utiliza, como um dos fundamentos para excluir os autores e partícipes que intervieram no delito prévio do círculo de possíveis sujeitos ativos do delito de lavagem, o do fato posterior “copenado” ou impune. O fato posterior seria impune em consequência da aplicação do princípio da consunção a determinados casos de concursos de leis, e, ao aplicar-se este princípio ao delito de lavagem de dinheiro, pode-se afirmar que as posteriores condutas realizadas pelo sujeito ativo do delito prévio, para se aproveitar de seus efeitos, ficariam consumidas por este. Assim, ao sujeito só se aplicaria a pena do delito prévio, pois nessa já se inclui o castigo pelas condutas posteriores (CALLEGARI, WEBER, 2017, p. 60).

Ainda, se depreende dos casos concretos vistos nos tribunais, que, via de regra o agente que cometeu a primeira conduta evita praticar a conduta de lavagem de dinheiro, vide que conforme foi exposto, atualmente ˜lavar” acabou por ser tornar algo comum com os verdadeiros “lavadores profissionais”, que são pessoas que trabalham justamente com a colocação do dinheiro de origem ilícita para circular no mercado de maneira lícita. Por outro lado, há a doutrina que defende que o participe ou autor do crime antecedente deve responder por ambos, vide que não haveria concurso de. Crimes entre os dois, uma vez que novo bem jurídico seria lesado quando da prática do segundo crime, bem como um bem jurídico foi lesado quando da conduta do primeiro ilícito.

2.1 ELEMENTOS SUBJETIVO NO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO NO BRASIL

No sistema penal brasileiro, se admite a caracterização do crime de lavagem de dinheiro quando presente o elemento subjetivo dolo, seja o dolo direito ou dolo eventual. O debate acerca do elemento subjetivo no crime de lavagem de dinheiro se remonta, pois, parte da doutrina entende não ser cabível o dolo eventual para o crime de lavagem de dinheiro, sendo possível apenas imputar este a título de dolo direto. Neste sentido, o problema residual se dá na forma de interpretação do artigo, bem como de sua redação, vez que não deixa isso claro.

De acordo com Bottini, seria imprescindível a consciência completa acerca da ilicitude, pois caso fosse admitido o dolo eventual no crime, teria de ser feito de maneira expressa (BOTTINI, BADARÓ, 2016, p. 138). Em sentido contrário, Baltazar Junior assevera ser “suficiente que o dolo atinja a existência do crime antecedente, não se exigindo que o lavador conheça especificamente como se deu a conduta anterior” (JR. BALTAZAR, 2006, 405-406).

Neste sentido, cabe asseverar que o crime de lavagem de dinheiro não comporta a forma culposa, nesta medida, restaria a imputação do crime a título de dolo, seja direto ou eventual. A crítica de parte da doutrina que não admite a imputação do crime a título de dolo eventual se faz principalmente por está previsão não estar expressamente contida no tipo penal, sendo qualquer interpretação feita nesse sentido uma forma de ampliação do tipo. Por outro lado, a doutrina que entende se cabível a imputação a título de dolo eventual, usa como base principal a exposição de motivos da lei, bem como a análise de que se o crime não admite a forma culposa, na prática fica deveras difícil fazer a imputação deste a título de dolo direto, pois a prova do dolo é dificultosa.

Aduz o professor Sérgio Fernando Moro que “de todas as dificuldades probatórias, nada se compara à prova do elemento subjetivo. Prová-lo é algo difícil em todo crime.” (MORO, 2010, p. 70). Embora o reconhecimento de que o elemento subjetivo seja de difícil prova no caso concreto, os elementos objetivos podem servir de base para que o julgador se encontrar o elemento subjetivo, contudo, fazendo a ressalva que este elemento objetivo nunca poderá substituir o elemento subjetivo do crime. O professor Sérgio Fernando Moro aponta duas saídas possível para se enfrentar o problema da prova do dolo, quais sejam “a) a criação de regras probatória compatíveis com as dificuldades; e/ou b) o incremento dos meios de investigação disponíveis às autoridades públicas.” (MORO, 2010, p. 70). Neste ponto, Moro destaca que em alguns casos o elemento objetivo pode acabar inferindo no elemento subjetivo, de forma que poderia se subtrair a intenção criminosa do agente. (MORO, 2010, p. 71). Ademais, aponta que isso pode ser dar pela recomendação de órgãos que tratam do assunto, tal como FATF, Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção de 2003, de acordo com Moro, essas convenções apontam no sentido de que o elemento objetivo poderia ser usado a fim de qualificar o elemento subjetivo no crime de lavagem. A segunda solução apontada por Moro seria o incremento do aparato de meios investigativos do poder público:

Os métodos de investigação modernos, quebra de sigilo bancário, interceptação telefônica, delação premiada, infiltração de agentes, são especialmente importantes para crimes complexos como o de lavagem de dinheiro. O motivo é evidente, pois, quanto maior a complexidade do crime, mais difícil será compreendê-lo e prova-lo. A obtenção e “informação de dentro” da organização criminosa é, usualmente, essencial para provar o crime (MORO, 2010, p. 73).

O ponto mais relevante acerca dos dispositivos a serem incrementados é justamente se encontrar um meio termo onde não se lese a esfera de direitos individuais, porém, que seja medida mais efetiva no auxílio das autoridades públicas.

Entende-se neste momento, que a crítica é válida para os dois lados, porém, neste trabalho irá se prezar por uma análise mais garantidora, de forma que, respeite os princípios inerentes ao direito processual penal, porquanto não há algo objetivo a se seguir.

O que se tem visto na prática, é a absolvição dos réus acusados de lavagem de dinheiro, onde o juízo não possui provas suficientes para se convencer que os acusados saberiam da origem ilícita do dinheiro, é o caso do própria Ação Penal 470/MG, onde muitos acusados foram absolvidos por este viés, veja-se: [...]

ITEM VII DA DENÚNCIA. LAVAGEM DE DINHEIRO (ART. 1º, V, VI E VII, DA LEI 9.613/1998). INEXISTÊNCIA DE PROVA SUFICIENTE DE QUE OS RÉUS TINHAM CONHECIMENTO DOS CRIMES ANTECEDENTES. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. A dissimulação da origem, localização e movimentação de valores sacados em espécie, com ocultação dos verdadeiros proprietários ou beneficiários dessas quantias, não caracteriza o delito previsto no art. 1º, V e VI, da Lei 9.613/1998 (na redação anterior à Lei 12.683/2012), se não há prova suficiente, como no caso, de que os acusados tinham conhecimento dos crimes antecedentes à lavagem do dinheiro. Absolvição de ANITA LEOCÁDIA PEREIRA DA COSTA, LUIZ CARLOS DA SILVA (PROFESSOR LUIZINHO) e JOSÉ LUIZ ALVES (art. 386, VII, do Código de Processo Penal). Absolvição, contra o voto do relator e dos demais ministros que o acompanharam, de PAULO ROBERTO GALVÃO DA ROCHA, JOÃO MAGNO DE MOURA e ANDERSON ADAUTO PEREIRA, ante o empate na votação, conforme decidido em questão de ordem. [...]

(AP 470, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-074 DIVULG 19-04-2013 PUBLIC 22-04-2013 RTJ VOL-00225-01 PP-00011)

Nota-se que, embora seja dividido, a posição majoritariamente adotada é pela absolvição dos réus, justamente pelo fato de que, em se admitindo a imputação do crime, este teria de ser feito na modalidade do dolo eventual, vide que a ação dos indivíduos não é comportada pela teoria do dolo direto, e o crime em comento não admite a forma culposa.

Não aceitamos a imputação penal subjetiva, em sede aplicativa de dolo eventual, porque, em qualquer das modalidades do crime de lavagem, compreendendo não só. A figura principal descrita no caput do art. 1º, mas também em todas as demais condutas paralelas evidenciadas nos seus dois parágrafos e incisos, cujas redações já explicitamos no item 2 deste trabalho, necessariamente, deve-se vincular a configuração do desrespeito à norma proibitiva de conduta (crime de lavagem) com obrigatória comprovação do elemento do seguinte “elemento normativo do tipo”: ciência previa ou a ocorrência de ação consciente por parte do agente, no sentido de que os bens procedem de uma infração penal anterior.

Dizendo em outras palavras, caracteriza-se o crime de lavagem de dinheiro quando o sujeito ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimento ou propriedade de bens, direitos ou valores, “sabendo” que estes são provenientes de uma infração penal primária (crime ou contravenção penal antecedente). E também nas condutas alternativas se verifica a inviolável vinculação do tipo penal à previa ciência da origem ilícita dos bens, direitos e valores.

Dessa forma, se assenta que é necessário o prévio conhecimento da conduta ilícita anterior, para que dessa forma possa se atribuir o crime de lavagem de dinheiro a título de dolo direito, não restando dúvidas que a figura do dolo eventual não é admitida para o tipo em questão. Essa conclusão se dá pela obrigatoriedade de, no crime de lavagem de dinheiro, de haver a conduta ilícita anterior, assim, sendo impossível atribuir a título de dolo a conduta a um agente que sequer conhecia a existência de uma conduta ilícito anterior

3 OS LIMITES AO USO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA NOS CRIMES DE LAVAGEM DE DINHEIRO NO BRASIL

Através desse panorama fornecido pelos estudos acerca do crime de lavagem de dinheiro, bem como da teoria da cegueira deliberada, irá se passar a análise dos elementos que vedam a aplicação da teoria da cegueira deliberada dentro do ordenamento jurídico brasileiro.

Conforme abordado anteriormente, o crime em comento possuí grande carga de complexidade, nesta medida, resta evidente que a comprovação dos fatos, bem como todas as provas são de extrema dificuldade, tanto de serem adquiridas, quanto de fornecer um parâmetro para imputação objetiva. Isso ocorre pelo fato de, no crime de lavagem de dinheiro, parte da doutrina entender que é imprescindível, para atribuição ao agente do crime de lavagem de dinheiro, que esse tenha o pleno conhecimento de que o dinheiro provém de origem ilícita.

Ocorre que, conforme fora apontado, atualmente se tem a figura do lavador profissional, que é justamente o individuo que apenas trabalha com lavagem de dinheiro, nesta medida, se tem que o “bom lavador” é justamente aquele que evita fazer quaisquer tipo de perguntas, ficando deveras complicado atribuir a esse agente um conhecimento pleno da origem ilícita, pois, via de regra o “lavador profissional” não procura saber essa verdade.

Diante da grande dificuldade de atribuir o elemento subjetivo do dolo direto ao agente que praticou a conduta, bem como a prova ser deveras onerosa, vez que parte de um subconsciente do agente que a praticou, surge a teoria da cegueira deliberada, importada da Suprema Corte dos Estados Unidos, que em linhas gerais busca atribuir ao individuo uma responsabilização quando este, age deliberadamente a fim de não conhecer a origem ilícita de um objetivo ou valores, a fim de se beneficiar disso posteriormente.

Ocorre que, dentro do direito brasileiro, reconhecemos como elemento subjetivo do crime a culpa e o dolo. O importante neste momento é analisar que na teoria do dolo temos a divisão deste em dois principais, que seriam o dolo direito, quando o sujeito age a fim de praticar um resultado final, prevendo e esperando que isso ocorra; e o dolo eventual, que é quando o indivíduo age querendo praticar a conduta, porém que não deseja que o resultado ocorra.

Como a lei de lavagem de dinheiro não prevê a forma culposa para o tipo, a teoria da cegueira deliberada atuaria de forma a atribuir ao agente a conduta a título de dolo eventual, vez que não poderia fazer isso a título de dolo direto.

Entretanto, não se pode admitir em primeiro lugar, que uma conduta que pacificamente seria tida como culpa, ser caracterizada e imputada ao agente a título de dolo eventual, por mera liberalidade dos magistrados, por exemplo.

Outro ponto importante para se destacar é que a há de se fazer distinções e tomar muito cuidado com as análises feitas com base em direito comparado, isso porque, os elementos subjetivos do crime previsto no sistema penal norte americano não são os mesmos que no brasil, não cabendo sequer equivalência entre eles.

Não é correto, portanto, afirmar levianamente que purpose, tal como definida no Código Penal Modelo dos Estados Unidos, corresponde ao dolo direto de primeiro grau, e que knowledge corresponde a dolo direito de segundo grau. Da mesma forma, recklessness não é dolo eventual ou culpa consciente, tampouco uma categoria intermediária entre ambos. O direito penal americano não conhece o dolo eventual ou culpa consciente, não havendo como desenvolver categoria intermediária entre tais conceitos, que possa ser simplesmente transplantada ao direito penal continental [...] (LUCCHESI, 2018, p. 124-125).

Assim, encontra-se equivocada a premissa que poderia, de maneira simples que tal teoria pudesse vir a complementar o direito penal a fim de resolver o problema da prova do elemento subjetivo no crime de lavagem de dinheiro no Brasil. Ainda, asseverou a desnecessidade da utilização da teoria da cegueira deliberada, tendo em vista o alto processamento de dados e tecnologias, que atualmente dão grande respaldo para as investigações criminais e auxiliam demasiadamente no cruzamento de dados financeiros, fazendo com que seja mais fácil se chegar ao lavadores de dinheiro.

Importante ainda, mencionar que não há um impedimento objetivo quanto a utilização da teoria da cegueira deliberada dentro do direito penal brasileiro, na realidade o que se vê é meramente uma sobreposição, de uma teoria que já encontra-se respaldada em nosso ordenamento jurídico pela figura do dolo eventual, não tendo espaço ou uma lacuna que necessite de preenchimento. Por assim dizer, se importou uma teoria que na realidade buscaria punir condutas essencialmente culposas como se dolosas fossem, porém, como se vê no ordenamento jurídico pátrio a figura da culpa como excepcionalíssima, tem-se que na maioria dos casos, que são passivelmente punidas a titulo de dolo, tal teoria não poderia ser utilizada, criando ainda uma espécie de extensão penal, tendo como subjetividade do juiz, entender quando achasse viável apreciar que o indivíduo agiu com cegueira deliberada.

Assim, conclui-se que: i) não há qualquer impedimento legal para utilização da teoria da cegueira deliberada no ordenamento jurídico pátrio, na realidade há erros de sobreposição de uma teoria sob um ordenamento jurídico que já comporta uma teoria acerca do elemento subjetivo do crime; ii) a teoria da cegueira deliberada perde seu objeto quando analisada frente aos crimes que necessitam a figura do dolo, pois ela regularia justamente aquilo que atualmente é regulado pelo dolo eventual, criando verdadeira duplicidade de teorias para abarcar a mesma conduta, e iii) teria aplicação somente para os casos onde se admite o crime culposo, gerando completa insegurança jurídica, tendo em vista que seria uma subjetividade do juiz entender quando um individuo agiu com cegueira deliberada ou não.

Dessa maneira, tem-se que embora a teoria da cegueira deliberada já tenha sido utilizada no ordenamento jurídico pátrio, não encontra respaldo que a justifique, de modo que sua utilização traria mais malefícios, se adotada de maneira positivada.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das considerações expostas ao longo do trabalho, se tem que a utilização do instituto da cegueira deliberada dentro do direito penal pátrio não é regular, em que pese tenha sido utilizada em alguns casos, merecendo ser apreciada pela doutrina, e regulada de acordo com os ditames do direito penal pátrio.

Isso ocorre pois não houve por parte da doutrina um estudo mais aprofundada acerca dessa teoria, tendo sido tão somente introduzida pela jurisprudência em uma decisão de primeiro grau, no emblemático caso do furto ao Banco Central. Após analisar o estudo desse caso, foi possível perceber que a decisão que imputou aos sócios da empresa o crime de lavagem de dinheiro com base na cegueira deliberada usou como base de fundamento poucas doutrinas e estudos, se limitando a reproduzir alguns trechos de artigos e se remeter à alguns casos norte americanos. Justamente, essa introdução pela jurisprudência que remeteu a uma maior utilização e disseminação dessa teoria no ordenamento pátrio, vide que a partir dessa primeira citação a teoria da cegueira deliberada, foi que se deu o estopim dessa teoria, e vários magistrados se utilizaram daquela sentença proferida no caso do furto ao Banco Central para embasar suas sentenças, porém utilizando os mesmos argumentos daquela, sem ter qualquer argumento crítico a respeito, inclusive, tendo sido utilizada em outro caso emblemático, qual seja a Ação Penal n° 470, ou caso Mensalão, onde novamente a teoria da cegueira deliberada foi utilizada citada em um voto no referido caso, para o fim de condenar os partícipes em lavagem de dinheiro, imputando-lhes esse fato com base na teoria da cegueira deliberada.

A partir da análise desses casos foi possível estabelecer que a teoria da cegueira deliberada, estaria sendo usado como maneira subsidiária de imputação penal, para os casos onde a teoria do dolo não alcança, criando verdadeira imputação penal objetiva, vez que só seria utilizada nos casos onde seria demasiadamente complicado provar o elemento subjetivo dos crimes. Importante salientar que, a teoria da cegueira deliberada surgiu em um espaço de tempo completamente apropriado a sua utilização dentro do direito penal brasileiro, isso porque surge no momento em que os ditos “crimes do colarinho branco” ou simplesmente os crimes contra o sistema econômico começam a eclodir dentro do cenário mundial. Nesse contexto, importante retomar a lei de lavagem e capitais, positivada em 1998, através da Lei 9.613, que nesse momento estabeleceu que um rol taxativo de crimes que poderiam ser crimes antecedentes do crime de lavagem. Em 2012 a Lei 12.683 introduziu importantes mudanças na referida lei de lavagem de capitais, dentre as quais revogou o rol taxativo de crimes que poderiam anteceder a lavagem de dinheiro, deixando sua redação de modo que qualquer crime atualmente pode ser antecedente a lavagem de capitais.

Nesse contexto, e, levando em consideração que em regra, o “lavador profissional” é justamente aquele indivíduo que evita fazer perguntas e conhecer a origem do capital, se mostrava extremamente complicado que, na prática, fosse reconhecido que individuo teria ciência da origem ilícita do dinheiro, e como não se admite o crime de lavagem de dinheiro na forma culposa, seria imprescindível que se demonstrasse nesses casos o dolo, que conforme analisado se forma pela vontade e consciência do indivíduo. Assim, a teoria da cegueira deliberada poderia ser facilmente utilizada para que se alcançasse a punição a título de dolo nesses casos, vez que imputaria a título de conhecimento, uma conduta que na sua essência é tida como culposa. Porém, conforme estudo no capítulo 2.3, o qual remonta o dolo como consciência e vontade, nesta medida não sendo possível atribuir a cegueira deliberada a título de dolo, vide que não há um dos cernes desse elemento, que é o conhecimento por parte do indivíduo.

Por fim, necessária análise acerca de que a cegueira deliberada seria uma forma de imputação na qual, fosse possível reconhecer a aplicação de imputação penal a título de dolo eventual, vez que o instituto do dolo eventual é tido por aquele onde o indivíduo embora tenha conhecimento do possível resultado de sua conduta, embora não desejando-a diretamente, é indiferente quanto ao seu resultado. E nessa análise, é possível se ver que a cegueira deliberada quando confrontada nos crimes de lavagem de dinheiro acabará por assumir o mesmo papel o qual é desempenhado atualmente pelo elemento subjetivo do dolo eventual, vide não existir a lavagem de dinheiro na forma culposa.

Por assim, pode-se concluir que nos crimes de lavagem de dinheiro não restam lacunas a serem preenchidas, na medida que se tem meios efetivos para aplicação da reprimenda penal, qual seja o dolo direto e o dolo eventual, que sozinhos cominados aos demais elementos probantes de cada caso podem sustentar um édito condenatório efetivo por parte do Estado.

Demais disso, restou devidamente demonstrado que o conhecimento é elemento essencial para a configuração do dolo, a partir da análise do instituto do erro, previsto no art. 20 do Código Penal Brasileiro, pelo o que não há que se falar em conhecimento quando conhecimento não há conforme prega a teoria da cegueira deliberada. De outro forma, sequer a que se falar em lavagem de dinheiro de forma culposa, uma vez que o instituto da culpa como modalidade excepcionalíssima não encontra respaldo neste tipo penal.

REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. Aspectos penais e processuais penais. Comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 138.

BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes Federais: contra a administração publica, a previdência social, a ordem tributária, o sistema financeiro nacional, as telecomunicações e as licitações, estelionato, moeda falsa, abuso de autoridade, tráfico internacional de drogas, lavagem de dinheiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017.

LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da teoria da cegueira deliberada no Brasil. 1 ed. São Paulo: Marcial Pons. 2018.

MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de lavagem de dinheiro. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018.

MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010.

NAISSER, Fernando. Conjur, Teoria Importada: Cegueira deliberada só pode ser aplicada se preencher oito requisitos. Jun. 2017, Disponível em: < www.conjur.com.br/2017-jun-14/opiniao-aplicacao-cegueira-deliberada-requer-oito-requisitos>.

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Jeferson Callegarim Della Giacomo
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