A prisão civil do menor emancipado
A nossa Constituição possibilita a prisão civil devido débito alimentar e por infidelidade depositária. O Novo Código Civil por sua vez diminuiu, em alguns casos, a idade de emancipação.
INTRODUÇÃO
No Direito Civil, as sanções aos atos ilícitos incidem predominantemente sobre o patrimônio daquele que o realizou. No entanto, há casos em que as sanções civis incidem sobre a liberdade do devedor. Segundo nossa Constituição, são tais as possibilidades:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LXVII. Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
Dessa forma, responderá com a privação de sua liberdade aquele que, na posição de depositário, não empregar o devido zelo à manutenção do bem e aquele que se eximir de cumprir voluntariamente e inescusavelmente dever seu de prestar alimentos.
De acordo com o art. 1.920 do Novo Código Civil, entende-se por alimentos como “o sustento, a cura, o vestuário e a casa, enquanto o legatário viver, além da educação, se ele for menor”, ou seja, “prestações periódicas fornecidas a alguém para suprir essas necessidades e assegurar a sua subsistência” [1]. Dessa forma, tal prestação é de extrema importância para o alimentando, o que, infelizmente, não tem impedido o corriqueiro e imperdoável inadimplemento. Logo, foi louvável a iniciativa de extender a punição desse ilícito civil à privação da liberdade desses insensíveis inadimplentes.
Sobre a legitimidade dos sujeitos das relação obrigacionais alimentícias, estabelece o art. 1696 do CC-02 que “O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos ao ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta do outro.”
Voltando à a possibilidade de prisão do depositário infiel, cumpre destacar que, embora a Convenção Interamericana de Direitos Humanos incorporada em nosso ordenamento jurídico pelo Decreto n. 678/92 apenas tenha admitido a prisão civil em caso de débito alimentar, o Supremo Tribunal Federal, utilizando-se de suas prerrogativas, ratificou a nossa Carta Magna e autorizou, de uma vez por todas, a utilização de tal sanção.
“O depositário tem por obrigação legal guardar e conservar o bem penhorado e, no desempenho natural desta atividade, deverá empregar o maior dos zelos. Ele não possui disponibilidade jurídica da coisa, pois o domínio pertence ao executado, assim, deve sempre aguardar as determinações do Juízo.” [2] Mas, como então surgiria essa figura jurídica? São três as origens do depositário: do contrato (depósito voluntário ), previsto nos arts. 627 a 646 do CC-02; da lei (depósito necessário), regido nos arts.627 a 652 do CC-02 e do Decreto 911/67; ou de ato judicial em que o Poder Judiciário encarrega o depositário de zelar por certo bem até que lhe seja solicitada a devolução. Dessa forma, aquele que, em posição de depositário, não restituir o bem que lhe fora confiado e/ou opuser-se a ressarcir dano que porventura tenha causado, poderá ser preso. Vale observar que tal prisão tem a função de compeli-lo realizar a devida conduta de quem se apresente na sua posição e que ela não pode ser excedente a um ano.
A EMANCIPAÇÃO NO NOVO CÓDIGO CIVIL
De acordo com o art. 5º do nosso Novo Código Civil, adquire-se a maioridade aos dezoito anos, só então ficando o indivíduo apto à realização de todos os atos da vida civil. No entanto, o próprio art. 5º em seu parágrafo único estabelece algumas exceções à essa regra e admite a emancipação, a antecipação da capacidade plena. Destarte, cessará a incapacidade: voluntariamente, pela concessão dos pais devidamente registrada, ou de um na falta do outro desde que o menor tenha idade mínima de dezesseis anos; judicialmente, pela sentença, autorizando-o à emancipação; e legalmente pelo exercício de emprego público efetivo; pela colação de grau em curso de ensino superior; pelo estabelecimento civil ou comercial ou pela existência de relação de emprego desde que o menor tenha economia própria e idade mínima de dezesseis anos; e ainda pelo casamento
Devido a simplicidade dos pressupostos de algumas e à improvabilidade de ocorrência das outras, nos direcionaremos ao estudo da emancipação legal pelo casamento.
“Não faria sentido que permanecessem os conjuges sob o poder familiar (expressão consagrada em substituição ao “pátrio poder”), se passam a formar um novo núcleo familiar.” [3] O legislador então, a fim de dar independência aos nubentes, estabeleceu a emancipação legal decorrente do casamento. Mas, a quem estaria facultado? Além dos possuidores de capacidade plena, de acordo com o art. 1517 do CC-02 “O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil”. Permite-se ainda, excepcionalmente, o casamento de quem não tenha dezesseis anos para evitar imposição de pena criminal ou em caso de gravidez (art. 1520).”Interessante notar que, mesmo havendo a dissolução da sociedade conjugal (pelo divórcio, separação judicial ou morte), o emancipado não retorna à anterior situação de incapacidade civil” [4]
A PRISÃO CIVIL DO MENOR
Realizados tais esclarecimentos, vamos ao ponto chave deste trabalho. Emancipado, o menor torna-se apto a realizar qualquer ato da vida civil, podendo celebrar contratos, ser réu em ações civis, etc. Logo, nada impede que tal menor estabeleça uma relação jurídica em que ocupe a posição de depositário ou se separe do seu conjuge, caso seja casado. Poderia então o menor emancipado ser preso civilmente por débito alimentar ou por ser depositário infiel ? Ao meu ver, deve-se decidir baseando-se na existência ou não da autorização à emancipação por parte dos responsáveis pelo menor. Se esta fora dada, deve o concedente responder solidariamente pelo dano causado pelo menor [5] e, se for o caso, ser preso em lugar dele. O problema surge da possível emancipação sem autorização alguma. É o que ocorre naquelas já citadas situações de improvável ocorrência (pelo exercício de emprego público efetivo; pela colação de grau em curso de ensino superior; pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego desde que o menor tenha e economia própria e idade mínima de dezesseis anos), e ainda em uma o ocasião mais realista, a emancipação por casamento sem autorização dos pais quando a denegação não se apresentar justa (art.1519). Nessa hipótese, quem deve ser responsabilizado pelos atos do menor emancipado? Não vejo outra solução a não ser a responsabilização exclusiva do menor. Eis aí outro saliente problema. Como prender um menor sem ferir os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)? Segundo o ECA, os adolescentes são seres em formação que requerem cuidados especiais em cada fase da vida e é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária (direitos também assegurados prioritariamente aos adolescentes pela Constituição nos seus arts. 226 e 227). O ECA ainda dispõe em seu art. 185 que “a internação, decretada ou mantida pela autoridade judiciária, não poderá ser cumprida em estabelecimento prisional." Por outro lado, como deixar de cumprir dispositivo constitucionalmente estabelecido?
Se simplesmente prendermos os adolescentes e os colocar num ambiente extremamente degradado, sem um local distinto dos adultos, privá-los de todas aqueles direitos prioritários, mesmo que as prisões em voga sejam relativamente de pouca duração, não vejo hipótese de conciliação e respeito ao ECA e à Constituição. O que se deve fazer é cominar ao adolescente infrator a internação em um centro de detenção, unidade diferenciada, construída exclusivamente para adolescentes, segundo os critérios necessários ao processo sócio-educativo individual, diferente do sistema punitivo das execuções das penas privativas de liberdade para adultos. Interessante seria que se introduzisse no nosso ordenamento tal procedimento, ou qualquer outro de razoabilidade, a fim de que os direitos dos adolescentes emancipados não fiquem sem a devida disposição legal dependendo assim da “qualidade” e da sensibilidade do juiz de cada caso.
[1] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito de Família. São Paulo: Editora Atlas, 2002, v. VI, p. 358
[2] GALVÃO, Edna Luiza Nobre. Depositário infiel e descumprimento obrigacional . Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 43, jul. 2000. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=601>. Acesso em: 12 jul. 2003.
[3] GAGLIANO, Pablo Stolze. Teoria Geral do Direito Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2002, v. I, p. 113
[4] GAGLIANO, Pablo Stolze. Teoria Geral do Direito Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2002, v. I, p. 113
[5] Posicionamento semelhante tem o STJ ( STJ, 3ª Turma, RESP 122573 / PR, Rel. Min. EDUARDO RIBEIRO, DJ de 18/12/1998, p. 340 )