Da conversão do flagrante em preventiva de ofício: e o sistema acusatório?

Da conversão do flagrante em preventiva de ofício: e o sistema acusatório?

À luz das recentes modificações orquestradas na legislação processual penal pela promulgação da Lei nº 13.964/19 verificaram-se diversos avanços na prática forense, tornando os ritos procedimentais mais humanizados e alinhados com as garantias constitucionais.

Narrativa lúdica de situação fictícia ocorrida em gabinete de (in)determinado Juiz de Direito: agente detido em flagrante pela prática de delito patrimonial na periferia de metrópole tupiniquim. Audiência de custódia dispensada em razão de situação pandêmica. Decisão publicada: “converto a prisão em flagrante em preventiva, por estarem preenchidos os requisitos do Art. 313 da legislação processual penal, bem como os fundamentos constantes do Art. 312.”

À luz das recentes modificações orquestradas na legislação processual penal pela promulgação da Lei nº 13.964/19 – a qual dispensamos o tratamento de “Pacote anti-crime” -, verificaram-se diversos avanços na prática forense, tornando os ritos procedimentais mais humanizados e alinhados com as garantias constitucionais abarcadas pelo Estado Democrático de Direito.

Dentre as garantias constitucionais que se tentou solidificar com as alterações produzidas pela referenciada norma federal está o sistema acusatório, já patenteado na Constituição Cidadã de 1988 e agora reforçado – como se necessário fosse – pelo Art.3º-A do Código de Processo Penal, vedando a atuação insurgente do magistrado, in verbis: 

Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

Portanto, dispondo o antigo código de processo penal da estrutura acusatória, tornou-se necessária a modificação dos dispositivos que tratavam da prisão preventiva, com vistas a vedar a atuação de ofício pelo Juiz que, na nova normativa, não está mais autorizado a decretar a prisão preventiva sem provocação, a contrário do que se permitia anteriormente.

De acordo com o Art. 311/CPP:

Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial. 

Desta forma, está clara a proibição delineada pela Lei nº 13.964/19 à atuação de ofício direcionada a decretação da privação preventiva de liberdade, fundamentada na negativa do inquisitório que antes preponderava no códex processual – e ainda presente na prática.

Neste sentido, Aury Lopes Jr:

“A imparcialidade do juiz fica evidentemente comprometida quando estamos diante de um juiz-instrutor (poderes investigatórios) ou, pior, quando ele assume uma postura inquisitória decretando – de ofício – a prisão preventiva. É um contraste que se estabelece entre a posição totalmente ativa e atuante do inquisidor, contrastando com a inércia que caracteriza o julgador. Um é sinônimo de atividade e o outro de inércia.

Assim, ao decretar uma prisão preventiva de ofício, assume o juiz uma postura incompatível com aquela exigida pelo sistema acusatório e, principalmente, com a estética de afastamento que garante a imparcialidade.”[i]

Isto posto, a impossibilidade de aplicação da tutela da liberdade preventiva de ofício é tema pacífico, apesar da tenra alteração legislativa, que inovou sobremaneira o trato procedimental.

Doutro lado, percebe-se que a controvérsia se insurreciona na conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva quando, atendendo aos trâmites delineados no Art.310 do Código de Processo Penal, o detido deverá ser apresentado a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas após a prisão.

Indaga-se, destarte, se a mesma vedação à atuação ex offício aplica-se também à mera análise de conversão do flagrante em preventiva, tendo em vista que, apesar dos avanços procedimentais, a norma modificadora foi silente neste sentido, não tecendo qualquer apontamento no dispositivo processual regulamentador.

Entretanto, verifica-se que o Art. 310, inciso II poderia – em uma interpretação inquisitória – deixar margem a conversão do flagrante em preventiva independente de requerimento dos órgãos atribuídos para a atuação acusatória e investigatória, considerando sua omissão quanto a necessidade da provocação do órgão jurisdicional para a supressão da liberdade cautelar, a contrário do disposto no Art. 311.

Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente:

II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão;

Deste modo decidiu o Superior Tribunal de Justiça, em análise de Habeas Corpus impetrado contra decisão de conversão de ofício da prisão em flagrante em prisão preventiva ocorrida no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, a seguir ementada:

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO. NULIDADE DA PREVENTIVA. NÃO OCORRÊNCIA. CONVERSÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE EM PREVENTIVA. ART. 310, II, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – CPP. LEGALIDADE. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. PERICULOSIDADE DO AGENTE. MODUS OPERANDI.DISPAROS DE TIRO EM LOCAL PÚBLICO. NECESSIDADE DE GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E DE ASSEGURAR A APLICAÇÃO DA LEI PENAL. CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. INAPLICABILIDADE DE MEDIDA CAUTELAR ALTERNATIVA. FLAGRANTE ILEGALIDADE NÃO EVIDENCIADA. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. (...) 2. Embora o art. 311 do CPP, aponte a impossibilidade de decretação da prisão preventiva, de ofício, pelo Juízo, é certo que, da leitura do art. 310, II, do CPP, observa-se que cabe ao Magistrado, ao receber o auto de prisão em flagrante, proceder a sua conversão em prisão preventiva, independentemente de provocação do Ministério Público ou da Autoridade Policial, desde que presentes os requisitos do art. 312 do CPP, exatamente como se verificou na hipótese dos autos, não havendo falar em nulidade quanto ao ponto. 3. Considerando a natureza excepcional da prisão preventiva, somente se verifica a possibilidade da sua imposição quando evidenciado, de forma fundamentada e com base em dados concretos, o preenchimento dos pressupostos e requisitos previstos no art.312 do Código de Processo Penal – CPP. Deve, ainda, ser mantida a prisão antecipada apenas quando não for possível a aplicação de medida cautelar diversa, nos termos do previsto no art. 319 do CPP.[ii] 

Todavia, a Corte Cidadã teria ocorrido em diversos equívocos dogmático-processuais. A uma porque faz uma interpretação extensiva in malam partem do Art.310, II, concedendo ao magistrado poderes instrutórios que não estão expressos na norma regente, ao autorizar a iniciativa jurisdicional desde que submetida ao preenchimento dos requisitos do Art.312. 

De outro lado, nota-se o tratamento da prisão em flagrante – naturalmente precária e pré-cautelar – como sólida o bastante para converter-se em preventiva, ignorando qualquer iniciativa acusatória, colocando a liberdade em patamar subsidiário (cabe a liberdade, quando não couber a prisão).

A respeito da precariedade do flagrante e da impossibilidade de sua conversão de ofício, nos cabe trazer o magistério do eminente Professor Aury Lopes Jr, in verbis:

“(...) Mas o ponto mais importante é: não pode haver conversão de ofício da prisão em flagrante em preventiva (ou mesmo em prisão temporária). É imprescindível que exista a representação da autoridade policial ou do representante do Ministério Público. A “conversão” do flagrante em preventiva equivale à decretação da prisão preventiva. Portanto, à luz das regras constitucionais do sistema acusatório (ne procedat iudex et officio) e da imposição de imparcialidade do juiz (juiz ator = parcial), não lhe incumbe “prender de ofício”. “[iii]

Em consequência, o Supremo Tribunal Federal enfrentou o tema, no HC nº 186421/SC, decidindo pela interpretação sistemática do dispositivo processual retro colacionado, concluindo pela inviabilidade da conversão de ofício do flagrante em preventiva.

Segue trecho da decisão: 

“(...) A Lei nº 13.964/2019, ao suprimir a expressão “de ofício” que constava do art. 282, § 2º, e do art. 311, ambos do Código de Processo Penal, vedou , de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem o prévio “requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público”, não mais sendo lícito, portanto, com base no ordenamento jurídico vigente, a atuação “ex officio” do Juízo processante em tema de privação cautelar da liberdade. 

A interpretação do art. 310, II, do CPP deve ser realizada à luz dos arts. 282, § 2º, e311, também do mesmo estatuto processual penal, a significar que se tornou inviável, mesmo no contexto da audiência de custódia , a conversão, de ofício, da prisão em flagrante de qualquer pessoa em prisão preventiva , sendo necessária, por isso mesmo, para tal efeito, anterior e formal provocação do Ministério Público, da autoridade policial ou, quando for o caso, do querelante ou do assistente do MP. Magistério doutrinário. Jurisprudência. (...)” 

Perante o exposto, a ausência de unificação jurisprudencial nas Cortes Superiores quando da análise dos instrumentos que salvaguardam a estrutura acusatória denota grande insegurança jurídica na medida em que, cada vez mais, os tribunais hierarquicamente inferiores na estrutura jurisdicional negam-se a aplicar os entendimentos consolidados das Cortes Superiores, situação que tende a se agravar quando não há a conjuminância de entendimentos nos tribunais pátrios. 

Destarte, a ausência de consolidação jurisprudencial em torno de tema que dispensaria – no mundo ideal – a análise dos tribunais superiores tende a fomentar a perpetuação de arbitrariedades e aberrações interpretativas por parte dos operadores do direito que detém o poder jurisdicional, justificando o volume de impetração de habeas corpus nos tribunais revisores. 

Referências

[i] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva. 2020. Pag. 686.   

[ii] STJ. HC Nº 581.811/MG, Rel. Min. JOEL ILAN PACIORNIK. Segunda Turma. Julgado em 04/08/2020. Dje 10/08/2020.   

[iii] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva. 2020. Pag. 670.

Sobre o(a) autor(a)
Leonardo Tajaribe Jr.
Advogado Criminalista. Especialista em Direito Penal Econômico (COIMBRA/IBCCRIM). Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal (UCAM).
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