Crime eleitoral - Prisão ilegal - Trancamento de inquérito policial

Crime eleitoral - Prisão ilegal - Trancamento de inquérito policial

Aborda um caso prático em que a prisão ilegal acarretou a ilicitude de toda a cadeia probatória e consequentemente, não restando maiores elementos de convicção, trancou-se a ação penal.

O sistema criminal no Brasil é muito amplo, possuindo uma envergadura de normas penais e processuais penais, normas essas que estão esparsas em várias legislações extravagantes.

Diversas leis eleitorais prevêem figuras típicas penais. Por exemplo: Lei n. 4.737/1965 (código eleitoral), Lei n. 6.091/1974 (transporte de eleitores), Lei n. 6.966/1982 (processamento eletrônico de dados nos serviços eleitorais), Lei n. 7.021/1982 (escrutínio), Lei Complementar n. 064.1990 (inelegibilidade), Lei n. 9.504/1997 (lei das eleições).

Conquanto o Direito Eleitoral tenha vários tipos criminais, não conta com uma teoria própria de crime, tampouco detém um arcabouço de regras gerais e princípios que permita dar concretude a tais tipos. Por isso, o próprio Código Eleitoral prescreve em seu art. 287: “aplicam-se aos fatos incriminados nesta lei as regras gerais do Código Penal”. Na verdade, o Direito Penal empresta ao Direito Eleitoral a teoria do crime.

No debate em tela, exploraremos as condutas tipificadas nos artigos 299 da lei 4.737/65, art. 39 § 5, II da lei 9.504/97.

No caso concreto, o investigado foi preso em flagrante por ter supostamente cometido os delitos descritos no art. 299 da lei 4.737/65, art. 39 § 5, II da lei 9.504/97 e art. 2 da lei 12.850/2013, haja vista ter sido detido conduzindo um veículo ostentando a bandeira de um candidato a Deputado Estadual, sendo que durante a busca veicular, foram localizados no interior do veículo santinhos daquele candidato e valores em espécie. Pergunto: tal conduta constitui crime previsto em nosso ordenamento jurídico?

Contudo, antes de entendermos o tipo penal acima demonstrado, precisamos descrever alguns aspectos da teoria geral do crime, buscando compreender primeiramente qual a conceituação de crime para o ordenamento jurídico brasileiro!

Sob o aspecto analítico (estrutural), o crime é concebido como o fato típico, antijurídico (ou ilícito) e culpável. Nela, a culpabilidade figura como requisito do crime, e não pressuposto de aplicação da pena.

Para analisar se uma conduta no ordenamento jurídico é criminosa, não basta verificar do ponto de vista do fato típico, ilícito e culpável, mas deve ser analisado se aquela conduta, dentro do conjunto de fases que se sucedem cronologicamente no desenvolvimento do delito doloso, enseja a atração da norma penal.

Para melhor compreensão do caso em tela é necessário realizarmos um breve resumo do iter criminis, a fim de entender se a conduta do investigado passou da fase de preparação.

Antes de mais nada, iter criminis é uma expressão em latim que pode ser traduzida para “itinerário do crime” ou “caminho do crime”. Da mesma forma, a expressão serve para se referir às várias etapas que se sucedem cronologicamente no desenvolvimento do delito. Entende-se que o iter criminis é composto por algumas etapas, sendo elas:

A cogitação significa dizer, ideação do crime, não implicando necessariamente na sua premeditação (cogitar a prática de um crime não significa premeditar o delito). Cuida-se de fase interna, é dizer, que pertence única e exclusivamente na mente do indivíduo.  Por esse motivo, a cogitação é sempre impunível.

Os atos preparatórios, segundo o ilustre Fernando Capez (2008, p.241), significa dizer que a preparação é a prática dos atos imprescindíveis à execução do crime. Nesta fase ainda não se iniciou a agressão ao bem jurídico, o agente não começou a realizar o verbo constante da definição legal (núcleo do tipo), logo o crime ainda não pode ser punido.

Por sua vez, o início dos atos de execução, para o autor Cezar Roberto Bitencourt (2012, p.523), os atos preparatórios passa-se, naturalmente, aos atos executórios. Atos de execução são aqueles que se dirigem diretamente à prática do crime, isto é, a realização concreta dos elementos constitutivos do tipo penal.

Nos dizeres de Cleber Masson (2015, p.357), a fase da execução, é aquela em que se inicia a agressão ao bem jurídico, por meio da realização do núcleo do tipo penal.

A consumação, de acordo com a manifestação do autor Guilherme de Souza Nucci (2008, p.175), é o momento de conclusão do delito, reunindo todos os elementos do tipo penal.

Na análise realizada sobre o caso em concreto, o investigado, ao ser detido, não estava distribuindo santinhos, entregando dinheiro em troca de votos ou prometendo qualquer vantagem a alguém, sendo que estava sozinho em seu veículo automotor, não sendo também conduzida a Delegacia qualquer testemunha que tenha verificado tal ação ou eventual vítima que tenha o investigado tentado interferir na sua livre vontade de voto.

A apreensão dos santinhos, sem a caracterização de sua distribuição, e a localização de valores dentro do veículo do abordado, não são hábeis, por si só, para caracterizar crime de acordo com o ordenamento jurídico.

De outro lado, a conduta de ostentar bandeira, ou ter santinhos, é conduta aceita e protegida pelo Código Eleitoral, pois está dentro da esfera de liberdade individual de expressão e de voto.

Vejamos o que nos ensina o Código Eleitoral em seu art. 39-A: "É permitida, no dia das eleições, a manifestação individual e silenciosa da preferência do eleitor por partido político, coligação ou candidato, revelada exclusivamente pelo uso de bandeiras, broches, dísticos e adesivos."

O que está vedado no dia das eleições é visar promover e pedir votos para seu candidato ou partido, buscando aliciar os eleitores e quaisquer outras que tenham o objetivo de convencer o cidadão.

Daí se constatou pelo Tribunal Regional Eleitoral de Goiás durante o julgamento que, à míngua de prova da imputação criminal na presente, a conduta do investigado foi atípica em nosso ordenamento jurídico e, em remota hipótese de futura prática de crime de boca de urna, não poderia ser punida na fase em foi abordado, pois se trata de atos preparatório não punível no ordenamento jurídico como crime autônomo.

Sendo assim, não houve indícios mínimos de tipicidade formal para realização da detenção do paciente pelos delitos imputados no art. 299 da lei 4.737/65 e art. 39 § 5, II da lei 9.504/97 (crimes eleitorais), uma vez sendo os fatos atípicos desde o seu nascedouro, e de outro lado, também os atos podem ser considerados em uma eventual progressão do iter criminis de atos preparatórios, impunível no ordenamento jurídico, não havendo que se falar em consumação da conduta ilícita.

Assim, conforme entendimento do Tribunal Superior Eleitoral, a prisão bem como a utilização das provas ilícitas, sem respeitar as garantias fundamentais, gera a ilicitude das provas por tal meio obtidas, bem como de todas as que delas decorreram, permitindo o trancamento da ação penal.

Em decorrência da prisão ilegal, em atendimento ao artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal e artigo 157, parágrafo 1º, do Código de Processo Penal que testifica a inadmissibilidade de provas ilícitas bem como as derivadas, o TRE/GO reconheceu que as condutas narradas não se adequam ao tipo penal previsto no artigo 39, § 5º, II, da Lei 9.504/1997, ensejando, portanto, o trancamento do inquérito policial instaurado, reconhecendo a inexistência de justa causa apta a autorizar a continuidade do Inquérito Policial determinando, de consequência, o seu trancamento, com fundamento no artigo 648, I, do Código de Processo Penal.

Sobre o(a) autor(a)
Lucas Morais Souza
Lucas Morais Souza é advogado especialista na área criminal, pós graduado em direito público com ênfase em gestão pública, pós graduado em direito penal e processual penal, presidente da Comissão de Direito Criminal Subseção de...
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