Lei de improbidade administrativa: a jurisprudência sobre a perda da função pública
Entre 1995 e julho de 2016, foram proferidas 11.607 condenações definitivas por improbidade administrativa no curso de 6.806 processos em tramitação no Judiciário brasileiro, uma média de 903 decisões condenatórias por ano. Os números fazem parte de pesquisa realizada pelo Instituto Não Aceito Corrupção em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria.
A imposição da perda da função pública – uma das sanções previstas pela Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) – esteve presente em 25,4% do total de condenações analisadas no levantamento.
Ao longo de quase três décadas de vigência da lei, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem firmando teses sobre a decretação da perda da função pública – penalidade com "alta carga de severidade", nas palavras do ministro aposentado Gilson Dipp.
Em artigo na revista Doutrina sobre a aplicação das penas em ações de improbidade, Gilson Dipp defende que a perda da função pública seja determinada somente em casos graves. Ele menciona precedente do STJ (AREsp 1.013.434) segundo o qual a perda do cargo ou da função pública e a suspensão dos direitos políticos "constituem as mais drásticas das penalidades estabelecidas na Lei de Improbidade Administrativa".
Casos graves
Está consolidado na jurisprudência do tribunal o posicionamento de que a perda da função pública deve se limitar às situações de maior gravidade, levando em conta a extensão do dano, o proveito obtido e a intenção do agente. Foi como decidiu a Primeira Turma ao afastar a pena de perda da função pública aplicada, em primeira e segunda instâncias, contra uma servidora da prefeitura de Delfim Moreira (MG) condenada por envolvimento em suposto esquema de fraude licitatória no município. Ela foi obrigada ainda a pagar multa e a ressarcir os cofres públicos.
Autor do voto vencedor no julgamento do recurso especial (REsp 1.788.833) interposto pela servidora, o ministro aposentado Napoleão Nunes Maia Filho avaliou que o caso se enquadrava nas hipóteses de incidência do juízo de excepcionalidade para a revisão, no âmbito de controle de legalidade, da dosimetria das sanções impostas em matéria de improbidade.
Segundo Napoleão Nunes Maia Filho, a decretação da perda da função pública foi desproporcional, pois o próprio acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) reconheceu que a servidora, integrante da comissão de licitação da prefeitura, não agiu com dolo, mas foi negligente.
"A perda de função pública é sanção por demais acentuada, que deve ser reservada a casos graves, nos quais se demonstrar que a conduta é revestida de má-fé e direcionada ao locupletamento ilícito ou malbaratamento da coisa pública, o que não é a prática imputada à agravante", concluiu.
Direitos políticos
No tocante à imposição da perda da função pública, o STJ também tem se manifestado sobre a sua cumulação ou não com as demais penalidades estabelecidas na Lei de Improbidade Administrativa. A corte desenvolveu jurisprudência na perspectiva de que as penas da Lei 8.429/1992 têm aplicação autônoma, sendo a cumulação facultativa e condicionada à análise da situação particular.
Quanto à eventual cumulação com a suspensão dos direitos políticos, o tribunal já foi provocado a se pronunciar a respeito da hipótese específica de agentes políticos. Em recente julgado da Primeira Turma, os ministros compreenderam que o ocupante de cargo eletivo não perde o posto automaticamente após condenação à suspensão dos direitos políticos; antes, é necessária a formalização da inelegibilidade pela Justiça Eleitoral.
No caso, o colegiado rejeitou o recurso especial (REsp 1.618.000) do Ministério Público contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN) que afastou a pena de perda da função pública fixada contra ex-prefeito de Rafael Godeiro (RN). Em primeira instância, ele havia sido condenado somente à suspensão dos direitos políticos, à proibição de contratar com o poder público e ao pagamento de multa civil.
O político foi sentenciado em ação de improbidade por deixar de empregar na educação municipal o percentual mínimo de 60% dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), em 1998.
Apenas na fase de cumprimento da sentença, o juízo de primeiro grau decretou a perda do cargo de prefeito e ordenou que fosse empossado na vaga o vice-prefeito. Ao apreciar o recurso do então chefe do Executivo municipal, o TJRN reverteu a perda da função, decidindo que o político só poderia ser retirado do cargo após o devido procedimento de cancelamento da sua inscrição eleitoral, em razão da suspensão dos direitos políticos imposta na sentença condenatória.
Essa decisão foi mantida pela Primeira Turma ao examinar o recurso relatado pelo ministro aposentado Napoleão Nunes Maia Filho. Em seu voto, ele destacou precedente (REsp 993.658) em que a corte entendeu que a validade dos efeitos da suspensão dos direitos políticos determinada no curso de ação de improbidade depende da instauração de procedimento administrativo-eleitoral, para fins de cancelamento de registro no cadastro de eleitores.
O relator citou trecho do acórdão recorrido segundo o qual a suspensão dos direitos políticos implica inelegibilidade posterior, após procedimento específico no âmbito da Justiça Eleitoral, mas não gera imediatamente a perda da função pública.
Aposentadoria
A jurisprudência do STJ entende que as penas descritas na Lei de Improbidade configuram um rol taxativo, que não pode sofrer interpretação extensiva.
A partir dessa premissa, a Primeira Seção pacificou divergência entre as turmas de direito público em torno da possibilidade de conversão da penalidade de perda da função pública em cassação da aposentadoria de servidor inativo condenado judicialmente por improbidade.
Na origem, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) reformou a sentença condenatória para excluir a pena de cassação da aposentadoria imposta a um perito criminal inativo que teria se valido do cargo com o objetivo de angariar clientes para uma funerária de sua propriedade.
Ao julgar embargos de divergência (EREsp 1.496.347), a seção de direito público do STJ definiu que, nessas situações, apenas a autoridade administrativa dispõe de poderes para decidir sobre a cassação dos proventos da inatividade.
Por maioria, o colegiado acompanhou o voto do ministro Benedito Gonçalves e manteve o afastamento da cassação da aposentadoria. O magistrado lembrou que as sanções de cassação da aposentadoria e de perda da função pública pertencem a esferas distintas do direito – administrativa e cível, respectivamente –, cada uma com tratamento legal específico.
"Especificamente no que diz respeito às penalidades de demissão e de cassação de aposentadoria, estas serão aplicadas, privativamente, pela autoridade máxima da administração pública no nível federativo do respectivo ramo do poder ou Ministério Público, conforme dispõe o artigo 141, I, da Lei 8.112/1990", explicou o ministro.
Ainda segundo Benedito Gonçalves, há precedentes no STJ reconhecendo o princípio da incomunicabilidade entre as esferas cível e administrativa, de modo que as condenações e penas fixadas em uma não interferem na tomada de decisão em outra.
PAD
Com base no princípio da independência das instâncias, a jurisprudência do STJ assevera que a demissão em Processo Administrativo Disciplinar (PAD) não impede posterior condenação judicial à perda da função pública em ação de improbidade.
Esse entendimento levou a Segunda Turma, no REsp 1.364.075, a determinar que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) apreciasse o mérito do pedido do Ministério Público para decretar a perda da função pública contra ex-policial demitido por decisão no âmbito administrativo.
Na situação dos autos, o ex-servidor da Polícia Civil do DF foi condenado nas esferas judicial e disciplinar, pois, no exercício da função, teria disparado sua arma em via pública, após uma briga de trânsito, e atingido uma pessoa alheia à discussão, que se encontrava dentro de um carro.
O TJDFT manteve o entendimento da sentença de que não seria possível aplicar ao ex-policial a penalidade de perda da função pública, pois a questão já havia sido resolvida no campo administrativo, com a demissão.
No entanto, a Segunda Turma, por unanimidade, entendeu que é cabível eventual imposição da perda da função pública contra servidor demitido. Em seu voto, o relator do recurso especial, ministro Mauro Campbell Marques, afirmou que a apuração de falta disciplinar não se confunde com a ação de improbidade devido à independência entre as instâncias civil, penal e administrativa.
"Esse fundamento, inclusive, autoriza a conclusão no sentido de que as penalidades aplicadas, embora possam incidir na restrição de um mesmo direito, são distintas entre si, tendo em vista que se assentam em distintos planos", explicou.
O ministro Campbell observou também que as sanções de demissão e de perda da função pública são distintas entre si quanto ao escopo de incidência. Ele ressaltou que, conforme a Lei de Improbidade Administrativa, a perda da função pode incidir sobre todos os tipos de ato ímprobo, enquanto a Lei 8.112/1990 reserva a demissão somente às faltas mais nocivas aos deveres funcionais do agente público.
Alcance
Recentemente, o STJ uniformizou o entendimento das suas turmas de direito público em torno do alcance da penalidade de perda da função no tocante aos vínculos do infrator com a administração pública. Para a Primeira Seção, a perda da função imposta em ação de improbidade atinge tanto o cargo que o agente público ocupava quando praticou a conduta ímproba quanto qualquer outro em que esteja ao tempo do trânsito em julgado da condenação.
Por maioria, a seção de direito público desproveu os embargos de divergência (EREsp 1.701.967) de um defensor público da União condenado por improbidade no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), em razão de ilícitos praticados quando era policial federal.
À época dos fatos, ele e um colega utilizaram indevidamente veículo oficial da Polícia Federal, armas e munições do órgão em atividades desvinculadas do exercício profissional. Além disso, os então policiais federais efetuaram vários disparos que atingiram uma residência e mataram uma criança.
Autor do voto vencedor, o ministro Francisco Falcão considerou que a sanção de perda da função visa afetar o vínculo jurídico que o agente mantém com a administração estatal, seja qual for sua natureza, uma vez que a improbidade não está ligada ao cargo, mas à atuação funcional nas atividades públicas.
Falcão mencionou o acórdão do REsp 924.439, no qual a ministra aposentada Eliana Calmon afirmou que a perda da função pública tem o propósito de expurgar da administração o indivíduo cujo comportamento revela falta de sintonia com o interesse coletivo, "abrangendo qualquer atividade que o agente esteja exercendo ao tempo da condenação irrecorrível".
"O artigo 12 da Lei 8.429/1992 deve ser compreendido semanticamente, no que diz respeito à sanção de perda da função pública, como integrante de um sistema que repele a inserção no serviço público de pessoas cujo comportamento passado já sinalizou a pouca afeição aos valores entoados pelo artigo 37 da Constituição Federal de 1988", destacou o ministro.
Promotores
Em relação a quem pode ser condenado, o entendimento jurisprudencial do STJ assentou-se na linha de que as penalidades da Lei de Improbidade são aplicáveis a qualquer agente público, independentemente da natureza do seu vínculo funcional.
Adotando tal fundamento em decisão unânime, a Primeira Turma deu provimento a recurso especial (REsp 1.191.613) apresentado pelo Ministério Público de Minas Gerais para declarar a possibilidade de, em ação civil pública por ato de improbidade, ser aplicada a pena de perda do cargo a membros da instituição. A ação foi ajuizada contra dois promotores substitutos que, durante recesso forense, forjaram o plantão em que deveriam ter trabalhado juntos.
O juízo de primeiro grau admitiu o processamento da ação de improbidade, mas ressalvou a impossibilidade de decretação da perda da função. Conforme decisão interlocutória, as hipóteses de perda do cargo para integrantes do MP e da magistratura estão expressamente delineadas na Lei Orgânica do Ministério Público (Lei 8.625/1993) e na Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar 35/1979). A decisão, contestada em agravo de instrumento, foi mantida pelo TJMG.
Ao determinar a cassação do acórdão, a Primeira Turma compreendeu não existir uma única via processual adequada para a fixação da pena de perda da função pública contra membro do Ministério Público.
"O fato de a Lei Complementar 75/1993 e a Lei 8.625/1993 preverem a garantia da vitaliciedade aos membros do Ministério Público e a necessidade de ação judicial para a aplicação da pena de demissão não induz à conclusão de que estes não podem perder o cargo em razão de sentença proferida na ação civil pública por ato de improbidade administrativa", ressaltou o ministro Benedito Gonçalves em seu voto.
Para o relator, a conclusão é uma decorrência lógica do que está inscrito no caput do artigo 12 da Lei de Improbidade Administrativa. De acordo com o dispositivo, "independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato".
Esta notícia refere-se aos processos: AREsp 1013434; REsp 1788833; REsp 1618000; REsp 993658; EREsp 1496347; REsp 1364075; EREsp 1701967; REsp 924439 e REsp 1191613.