Plantando em terra alheia: as controvérsias jurídicas sobre arrendamento rural
O conceito de arrendamento rural está detalhado no artigo 3º do Decreto 59.566/66, que regulamenta o Estatuto da Terra. Trata-se de um dos temas mais relevantes do direito agrário, diretamente vinculado à propriedade rural e ao cumprimento de sua função social, conforme previsto nos artigos 5º, XXIII, e 186 da Constituição Federal.
No STJ, questões relacionadas ao arrendamento rural e aos contratos de parceria têm sido objeto de diversos julgados. Ambos os institutos ocupam papel importante na economia rural brasileira e são bastante parecidos. A diferença essencial está em que o arrendamento se caracteriza pelo pagamento de um valor a título de aluguel da terra, enquanto, no contrato de parceria rural (artigo 4º do Decreto 59.566/66), o proprietário e o parceiro compartilham as possibilidades de lucro ou prejuízo da atividade econômica.
Ação monitória
Em março de 2016, a Terceira Turma negou provimento a recurso especial que analisava a possibilidade de ser considerado como prova escrita sem eficácia de título executivo o contrato de arrendamento rural que determinava a entrega de produtos agrícolas como forma de pagamento, o que possibilitaria a propositura de ação monitória.
O REsp 1.266.975, de relatoria do ministro Villas Bôas Cueva, tratava de caso em que o contrato de arrendamento rural estabeleceu o pagamento em 1.060 sacas de soja de 60 quilos. A ação monitória teria sido proposta porque o ocupante da área permaneceu nela por dois anos, sem cumprir sua obrigação.
Com base nos artigos 2º e 18, parágrafo único, do Decreto 59.566/66, o ocupante da área alegou que o contrato não poderia servir como prova escrita por ter sido ajustado em quantidade de produtos agrícolas, o que o tornaria nulo.
Em relação à possibilidade de considerar como prova escrita sem eficácia de título executivo os contratos nessa situação, o relator ressaltou que “o Superior Tribunal de Justiça, atento à referida disposição legal, orienta-se no sentido de ser nula cláusula de contrato de arrendamento rural que assim dispõe. Todavia, tem entendido, igualmente, que essa nulidade não obsta que o credor proponha ação visando à cobrança de dívida por descumprimento do contrato, hipótese em que o valor devido deve ser apurado, por arbitramento, em liquidação de sentença”, explicou Villas Bôas Cueva.
Prazos do contrato
Outra questão importante, no que se refere aos contratos de arrendamento rural, trata dos prazos mínimos. Com o objetivo de promover a conservação dos recursos naturais, os contratos agrários devem obedecer aos prazos estabelecidos no artigo 13 do Decreto 59.566/66. Os prazos mínimos variam de três anos (nos casos de arrendamento em que ocorra atividade de exploração de lavoura temporária e/ou atividade de pequeno porte) a sete anos (quando há atividade de exploração florestal).
No REsp 1.336.293, a criação de gado bovino havia sido reconhecida como pecuária de pequeno ou médio porte, portanto, o contrato deveria ter validade de, no mínimo, três anos. No entanto, o recorrente alegou que o contrato deveria ser de, pelo menos, cinco anos, por se tratar de criação de grande porte, “seja em virtude do total da área dos contratos, de 86,7 hectares, seja em virtude da criação de animais de grande porte, como bovinos, equinos e ovinos, devendo-se levar em consideração, principalmente, aspectos relativos ao tempo necessário para a cria, recria e engorda”.
Ao decidir pela aplicação do prazo de cinco anos ao contrato, o relator, ministro João Otávio de Noronha, mencionou os ensinamentos de Helena Maria Bezerra Ramos, para quem a pecuária de médio porte refere-se à criação de suínos, caprinos e ovinos, excluindo a criação de gado bovino.
“Mesmo ciente de que existe doutrina em sentido contrário, alinho-me à orientação doutrinária de que a criação de gado bovino é suficiente para caracterizar a pecuária como de grande porte, sendo necessário maior prazo do contrato de arrendamento rural em razão dos ciclos exigidos de criação, reprodução, engorda ou abate”, definiu João Otávio de Noronha.
Preferência
O direito de preferência do arrendatário em caso de alienação do imóvel arrendado está previsto no artigo 92, parágrafo 3º, do Estatuto da Terra.No REsp 1.447.082, a Terceira Turma analisou a aplicação desse direito quando o arrendatário é empresa rural de grande porte.
No caso em análise, as partes pactuaram expressamente que o contrato seria regido pelo Código Civil e que, na hipótese de alienação da propriedade, o locatário desocuparia o imóvel no prazo de 30 dias. A alienação ocorreu antes do término do contrato, e a empresa que ocupava a propriedade fez uma proposta, que foi recusada diante da oferta de maior valor de outro interessado. Com a recusa da oferta, a arrendatária pediu o reconhecimento do direito de preferência para a aquisição da propriedade.
O Tribunal de Justiça de Tocantins (TJTO) concluiu que “o Estatuto da Terra não impôs nenhuma restrição quanto à pessoa do arrendatário, para o exercício do direito de preferência, de modo que, ao menos numa interpretação literal, nada obstaria a que uma grande empresa rural viesse a exercer o direito de preempção”.
Segundo o TJTO, a previsão de que os benefícios do Estatuto da Terra estariam restritos aos que exploram atividade rural direta e pessoalmente está no Decreto 59.566/66. Portanto, para o tribunal, “o decreto não poderia ter restringido onde a lei não restringiu”.
Ao julgar o recurso especial, o relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, ressaltou que “o princípio da justiça social preconiza a desconcentração da propriedade das mãos dos grandes grupos econômicos e dos grandes proprietários, para que seja dado acesso à terra ao homem do campo e à sua família. Preconiza, também, a proteção do homem do campo nas relações jurídicas de direito agrário”, afirmou.
Ao dar provimento ao recurso especial, o relator concluiu que “o direito de preferência no Estatuto da Terra atende ao princípio da justiça social quando o arrendatário é um homem do campo, pois possibilita que este permaneça na terra, passando à condição de proprietário”, esclareceu.
Renovação automática
Em razão da inexistência de notificação prévia exigida pelo Estatuto da Terra, a Terceira Turma do STJ julgou improcedente pedido de imissão na posse feito por um grupo de herdeiras contra dois arrendatários que teriam permanecido no imóvel por prazo superior ao estabelecido em contrato.
As autoras alegaram, na ação de imissão de posse, que a mãe delas havia firmado contrato de arrendamento rural com os arrendatários pelo prazo de oito anos. No entanto, eles teriam permanecido no imóvel após o término do período de arrendamento de forma indevida. Após análise do caso, o juiz determinou a saída dos arrendatários do imóvel, sentença confirmada pelo Tribunal de Justiça de Alagoas.
No REsp 1.277.085, os arrendatários alegaram que o contrato teria sido renovado verbalmente com a mãe das autoras antes de seu falecimento e que a prorrogação havia sido presenciada por terceiros. Também afirmaram que, de acordo com o Estatuto da Terra, o arrendador deve expedir notificação com as propostas de novo arrendamento recebidas de terceiros em até seis meses antes do vencimento do contrato. Em caso da falta de notificação, o contrato é automaticamente renovado.
Ao dar provimento ao recurso especial, o relator, ministro Villas Bôas Cueva, afirmou que, “independentemente da existência de ajuste verbal com a falecida arrendante, com a ausência de notificação dos arrendatários no prazo previsto em lei, o contrato foi prorrogado automaticamente, conforme com o disposto no artigo 95, IV e V, do Estatuto da Terra, o que determina a improcedência do pedido de imissão na posse”.
Falecimento
E o que acontece no caso de morte de quem firmou contrato de parceria agrícola? Em recurso especial julgado em dezembro de 2017, a Terceira Turma concluiu que o falecimento não extingue o pactuado, o que possibilita aos herdeiros exercerem o direito de retomada ao término do contrato se obedecerem ao regramento legal quanto aos prazos para notificação e às causas para retomada.
No caso analisado no REsp 1.459.668, a falecida havia firmado contrato de parceria agrícola, pelo prazo de 16 anos, com os réus, sendo um deles seu neto. Como não tinham interesse em manter o contrato, os herdeiros notificaram extrajudicialmente os réus para que desocupassem a fazenda após a conclusão da colheita.
Como os ocupantes da fazenda permaneceram inertes, os herdeiros buscaram judicialmente o reconhecimento da extinção do contrato pelo exercício do direito de retomada do imóvel. No entanto, os réus alegaram inexistir tal direito e pediram o cumprimento do contrato em todos os seus termos.
Ao dar provimento ao recurso especial, o relator, ministro Villas Bôas Cueva, explicou que “o contrato permanece vigente até o final do prazo estipulado, podendo os herdeiros exercer o direito de retomada com a realização de notificação extrajudicial até seis meses antes do término do ajuste, indicando uma das hipóteses legais para o seu exercício”.
Benfeitorias
Em junho de 2015, a Quarta Turma analisou recurso especial referente a ação de cobrança de valores devidos e de perdas e danos contra ocupante de propriedade que teria prestado contas da colheita, mas não teria entregado as sacas de arroz nem depositado os valores estabelecidos em contrato de parceria agrícola.
Diante da ação, o ocupante da fazenda afirmou ter realizado benfeitorias indispensáveis para a lavoura de arroz e pediu indenização referente ao investimento, no valor de aproximadamente R$ 218 mil. Alegou ainda que a cláusula contratual que repassa benfeitorias sem a devida contraprestação é nula porque o direito à indenização é irrenunciável.
Segundo acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), como forma de compensação por todas as benfeitorias realizadas (à exceção de uma cerca e da rede elétrica, canos e tubos), ficou acordado entre as partes que o arrendatário poderia plantar mais duas safras de arroz. Para o TJRS, como houve prévia composição entre as partes, não caberia indenização.
Ao analisar o REsp 1.182.967, o relator, ministro Luis Felipe Salomão, explicou: “Ficando estabelecido que no contrato agrário deverá constar cláusula alusiva quanto às benfeitorias, e havendo previsão legal no que toca ao direito à sua indenização, a conclusão, a meu juízo, é a de que, nos contratos agrários, é proibida a cláusula de renúncia à indenização pelas benfeitorias necessárias e úteis, sendo nula qualquer disposição em sentido diverso.”
Entretanto, nesse caso, o relator concordou com a decisão do tribunal de origem ao concluir que “não houve renúncia ao direito de reparação; ao revés, ao que se percebe, as partes acordaram forma de composição por meio de extensão do prazo de parceria”.
Esta notícia refere-se aos processos: REsp 1266975, REsp 1336293, REsp 1447082, REsp 1277085, REsp 1459668, REsp 1182967.