Direito sem fronteiras: a homologação de decisões estrangeiras e a competência do STJ

Direito sem fronteiras: a homologação de decisões estrangeiras e a competência do STJ

Anulação eclesiástica de matrimônio no Vaticano, confisco de bens por lavagem de dinheiro na Finlândia, condenação bilionária por atividade petrolífera no Equador: casos judiciais tão distintos como esses três, julgados em diferentes países ao redor do planeta, tiveram em comum a apresentação de pedidos de homologação ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), como forma de obter eficácia para as sentenças em território brasileiro. 

Entre a decisão proferida no exterior e seu efetivo cumprimento no país em que o julgamento deva ter efeito, há uma série de trâmites que englobam, de forma concomitante, normas de direito internacional, tratados assinados pelos países envolvidos e os ordenamentos jurídicos de cada nação.

Como regra, para que uma decisão do Judiciário de outro país tenha validade dentro das fronteiras brasileiras, é necessário o ato judicial de homologação. De acordo com o artigo 961 do novo Código de Processo Civil, a decisão estrangeira somente terá eficácia no Brasil após sua homologação – ou concessão do exequatur (“execute-se”), no caso de cartas rogatórias –, salvo disposição em sentido contrário de lei ou tratado.

A legislação também prevê a possibilidade de execução, no Brasil, de decisões interlocutórias emitidas no exterior, medidas de urgência e julgamentos da Justiça arbitral de outro país. Por outro lado, o próprio CPC dispõe sobre hipóteses de exceção à regra homologatória, a exemplo de sentenças estrangeiras de divórcio consensual, que produzem efeitos no Brasil independentemente de homologação.

A competência do STJ para a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão deexequatur às cartas rogatórias não advém da lei, mas da própria Constituição Federal, em seu artigo 105. Essa competência, que anteriormente pertencia ao Supremo Tribunal Federal, foi atribuída ao STJ pela Emenda Constitucional 45/2004.

Com modificações introduzidas pela Emenda Regimental 18/2014, o regimento do STJ atribui ao presidente a competência para homologar sentença estrangeira e conceder exequatur às cartas rogatórias, ressalvadas as hipóteses de contestação ou impugnação, casos em que haverá distribuição dos autos para julgamento pela Corte Especial.

Apenas em 2017, mais de 2.300 decisões emitidas no exterior foram analisadas no STJ. São, principalmente, cartas rogatórias, pedidos de homologação de decisões estrangeiras e ações em que há contestação da sentença proferida fora do país. No julgamento desses processos, o tribunal analisa aspectos legais e formais dos pedidos de execução e, especialmente ao examinar sentenças estrangeiras contestadas, constrói a sua jurisprudência.

Eficácia

Ao analisar pedido de homologação de sentença proferida pelo Poder Judiciário da Bulgária, a Corte Especial firmou o entendimento de que, com a entrada em vigor do CPC/2015, também se tornou necessário que a sentença estrangeira esteja eficaz no país de origem para sua homologação no Brasil.

A sentença búlgara disciplinava assuntos relativos à guarda e às visitas a menores, e a mãe das crianças buscava a sua homologação no Brasil como forma de permitir o exercício de alguns direitos, como a obtenção de passaportes brasileiros para os filhos. Todavia, de acordo com os autos, uma decisão judicial do Tribunal Regional de Kostinbrod – localizado a 20 km da capital búlgara, Sófia – suspendeu os efeitos da sentença sob fundamentos como a possibilidade de alienação parental pela genitora e indícios de que as mudanças de domicílio da mãe poderiam impedir o convívio entre os menores e o pai.

A ministra Nancy Andrighi destacou que o CPC/2015 passou a disciplinar, de forma mais detalhada, uma série de questões relacionadas ao procedimento de homologação e, em seuartigo 963, estabeleceu como requisito indispensável à homologação da decisão sua eficácia no país em que foi proferida. O mesmo artigo também prevê como requisitos que a decisão não ofenda a coisa julgada brasileira e não contenha manifesta ofensa à ordem pública.

“Em síntese, considerando que o Tribunal Regional de Kostinbrod expressamente suspendeu a sentença estrangeira que se pretende homologar, tornando-a, ainda que momentaneamente, ineficaz na própria Bulgária, não há que se falar em possibilidade de homologação da referida sentença no Brasil”, concluiu a ministra ao julgar improcedente o pedido de homologação.

Decisão eclesiástica

Em 2015, o STJ recebeu pedido de homologação de sentença de anulação de matrimônio inicialmente proferida pelo Tribunal Interdiocesano de Sorocaba (SP) e depois confirmada pelo Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, no Vaticano. Ao ser intimada sobre o processo de homologação, uma das partes alegou a impossibilidade jurídica do pedido, pois, segundo ela, não caberia ao Poder Judiciário brasileiro homologar decisão eclesiástica – seja do Brasil, seja do Vaticano –, por não se tratar de ato jurisdicional.

Ainda de acordo com a parte, como o Estado brasileiro é laico, não haveria relação jurídica com a Igreja Católica, de forma que a homologação representaria ato atentatório à soberania nacional.

O ministro Felix Fischer destacou que, de acordo o Decreto 7.107/10 (que homologou acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé sobre o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil), a homologação de sentenças eclesiásticas em matéria matrimonial, confirmadas pelo órgão superior da Santa Sé, será efetuada nos termos da legislação brasileira sobre homologação de sentenças estrangeiras.

Ainda segundo o ministro, o artigo 216-A do Regimento Interno do STJ prevê a possibilidade de que sejam homologados os provimentos não judiciais que, pela lei brasileira, tiverem natureza de sentença.  

Ao deferir o pedido de homologação, o ministro Felix Fischer também lembrou que “o caráter laico do Estado brasileiro não impede a homologação de sentenças eclesiásticas, tanto que nosso país reconhece a personalidade jurídica das instituições eclesiásticas, nos termos do artigo 3º do Decreto Legislativo 698/2009”.

Imparcialidade do árbitro

Meio de solução de litígios que dispensa o pronunciamento judicial, a arbitragem internacional também tem suas decisões submetidas ao procedimento de homologação para que sejam válidas no Brasil. Também nesses casos, são observados aspectos como o respeito à ordem pública e à legislação nacional.

Por considerar que não foram cumpridos esses dois requisitos, em 2017, a Corte Especial decidiunão homologar duas sentenças estrangeiras da Justiça arbitral dos Estados Unidos que haviam condenado empresário brasileiro a pagar mais de US$ 100 milhões à empresa Abengoa Bioenergia devido ao descumprimento de contrato sucroalcooleiro.

Segundo alegado nos autos, no período da arbitragem, o escritório de advocacia em que atuava o árbitro presidente teria recebido do grupo Abengoa cerca de US$ 6,5 milhões a título de honorários em outra ação.

Responsável pelo voto que prevaleceu no colegiado, o ministro João Otávio de Noronha destacou que a imparcialidade do julgador é uma das garantias do devido processo legal aplicável à arbitragem, e, por consequência, a inobservância dessa prerrogativa ofende diretamente a ordem pública nacional.

De acordo com o ministro, o artigo 14 da Lei de Arbitragem prevê o impedimento para atuar como árbitro das pessoas que tenham com as partes ou com o litígio a elas submetido relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes.

“O recebimento, pelo escritório de advocacia do árbitro presidente, de vultosa quantia paga por uma das partes no curso da arbitragem, ainda que não decorrente do patrocínio direto de seus interesses, mas com eles relacionada, configura hipótese objetiva passível de comprometer a isenção do árbitro presidente, podendo ser enquadrada no inciso II do artigo 135 do CPC”, apontou o ministro Noronha ao rejeitar os pedidos de homologação.

Também no âmbito das sentenças arbitrais estrangeiras, o STJ firmou em 2017 o entendimento de que a existência de recuperação judicial de empresa não impede a homologação de decisão judicial de outro país contra ela.

Lavagem de dinheiro

Nos casos desentençapenalestrangeiraque determine a perda de imóvel situado no Brasil em virtude de o bem ser fruto do crime de lavagem de dinheiro, o STJ possui o entendimento de que é possível a homologação. Foi o que decidiu a Corte Especial ao deferir a homologação de sentença proferida pelo Supremo Tribunal Federal da Finlândia, a pedido do Ministério Público Federal.

Segundo descrito nos autos, a corte finlandesa condenou dois réus pela prática de crimes como evasão, fraude fiscal e branqueamento de capitais. Em consequência, ambos foram condenados à perda de bens, entre eles casas situadas no Brasil.

A ministra Laurita Vaz apontou que a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), da qual são signatários o Brasil e a Finlândia, especifica que os estados-partes adotarão, na medida em que for permitido pelo ordenamento jurídico interno, as medidas necessárias para possibilitar o confisco de produtos das infrações previstas pela convenção, a exemplo do delito de lavagem de dinheiro.

Em relação à alegação da Defensoria Pública de que competiria à autoridade judiciária brasileira conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil, a ministra afirmou que a sentença finlandesa não tratou especificamente da situação dos imóveis, mas sim dos efeitos civis de uma condenação penal, determinando o perdimento de bens que foram objeto do crime de lavagem de capitais.

“É importante destacar que os bens imóveis em questão não serão transferidos para a titularidade do país interessado, mas serão levados a hasta pública, nos termos do artigo 133 do Código de Processo Penal”, concluiu Laurita Vaz ao deferir o pedido de homologação.

Meio ambiente

Em virtude da ausência de conexão entre a decisão estrangeira e o Estado brasileiro, além de indícios de corrupção no julgamento, a Corte Especial negou pedido para homologar sentença da Justiça do Equador que condenou a Chevron Corporation a pagar aproximadamente R$ 10 bilhões a título de indenização à população equatoriana por danos causados ao meio ambiente.

No pedido, os autores alegaram que a exploração petrolífera promovida por empresa incorporada pela Chevron no Equador causou a contaminação de lençóis freáticos, cursos d’água e áreas de mata, fatos que motivaram o Poder Judiciário equatoriano a fixar a indenização. Os requerentes também alegaram que, apesar de a corporação estar sediada nos Estados Unidos, ela também exercia suas atividades em território brasileiro.

O ministro Luis Felipe Salomão destacou que não foram localizados endereços válidos para a citação da Chevron Corporation no Brasil e, por isso, o ato citatório foi realizado por meio de carta rogatória, nos Estados Unidos.

“Ressoa, pois, inequívoco que a Chevron Corporation não se encontra localizada no Brasil e que a pretensão veiculada obliquamente neste feito é o redirecionamento da execução para a Chevron Brasil Petróleo Ltda., que se apresenta como mera sociedade subsidiária indireta da ora requerida, alegadamente em sétimo grau”, apontou Salomão.

Ao negar o pedido de homologação, Salomão também apontou que, conforme manifestação do Ministério Público Federal, existem decisões do Judiciário dos Estados Unidos que evidenciam a ocorrência de corrupção no julgamento da Justiça equatoriana, entre outras graves imputações criminais.

“A homologação ora pleiteada colocaria em risco os bons costumes e a ordem pública, seja porque reverenciaria processo judicial sobre o qual pesam fundadas suspeitas de ilegalidade, seja porque colocaria o Poder Judiciário brasileiro em rota de colisão com convenções internacionais de que é signatária a nossa República”, concluiu o ministro.

Esta notícia refere-se aos processos: SEC 9412; SEC 14408; SEC 10612 e SEC 8542.

Esta notícia foi publicada originalmente em um site oficial (STJ - Superior Tribunal de Justiça) e não reflete, necessariamente, a opinião do DireitoNet. Permitida a reprodução total ou parcial, desde que citada a fonte. Consulte sempre um advogado.
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