A lavagem de dinheiro através de paraísos fiscais

A lavagem de dinheiro através de paraísos fiscais

Muito falada atualmente em decorrência de operações policiais, a incidência da utilização dos paraísos fiscais com a finalidade de branquear o capital obtido através de crime antecedente é uma prática complexa e que envolve conhecimentos técnicos específicos.

1. Conceito

A lavagem de dinheiro pode utilizar de vários caminhos para ser efetivada e uma das maneiras mais utilizadas e, de fato, mais técnica, é através do chamado paraíso fiscal. A Receita Federal do Brasil entende como paraíso fiscal países ou dependências que tributam a renda com alíquota inferior a 20%. O Brasil também entende como paraísos fiscais países cuja legislação permite manter em sigilo a composição societária das empresas. 

O que se denomina paraíso fiscal é um pequeno país ou região com alíquotas de impostos especialmente baixas. Isso costuma levar cidadãos e empresas dos países com impostos altos a transferir sua residência ou sede para esses lugares e, na maioria dos casos, trata-se de centros financeiros offshore.  Com baixos impostos, aliado a um sigilo bancário especialmente rigoroso e um controle mínimo do mercado financeiro, os paraísos fiscais são o destino principal de bens e capitais de origem ilícita.

Os países que adotam o regime de práticas fiscais favorecidas ou preferenciais (preferential tax system), o fazem como forma de atrair atividades produtivas de comércio, serviços e investimentos, muitas vezes sendo única opção para arrecadação. A forma de atração de investimento estrangeiro e, por conseguinte, atração de capital outrora de origem ilícita, se dá através dos incentivos fiscais, isenções totais ou parciais (como exemplo: redução na base de cálculo, concessão de crédito, etc.).

Com propriedade, Heleno Tôrres (2001, p. 75/76) discorda da terminologia “paraíso fiscal”, versando que tal jargão, incorporada na doutrina do Common Law, e, adotada coloquialmente pelo Direito Tributário, para identificar países com concorrência fiscal prejudicial, torna-se ultrapassada, haja vista a positivação da Lei 9.430/96, em seu art. 24, onde passa a utilizar a expressão “países com tributação favorecida”.

De grande valia é a definição trazida por Heleno Tôrres para os países de tributação favorecida, para coroar o entendimento acerca de paraísos fiscais:

A definição de “países com tributação favorecida”, como vem sendo apresentada pela doutrina, designa aqueles países que, para o tratamento fiscal dos rendimentos de não residentes ou equiparados a residentes, aplicam “reduzida” ou “nula” tributação sobre os rendimentos e que contam ainda com segredo bancário, falta de controle de câmbios e mantêm uma grande flexibilidade para a constituição e administração de sociedades locais. Mas suas manifestações variam caso a caso. Mister, pois, separar os países com tributação favorecida (“paraísos fiscais’” dos países com regime societário favorecido (“paraísos societários”), daqueles com regime penal favorecido (“paraísos penais”), mesmo sendo impossível encontrar uma forma exclusiva de um ou de outro, prevalecendo sempre as formas híbridas, segundo a vocação preponderante de cada uma deles.

Paraíso Fiscal, na acepção do termo, não significa e não nos remete à prática criminosa. Eles servem ainda como “condutos” em operações financeiras internacionais e na montagem do planejamento tributário internacional para o treaty shopping - que ocorre quando o contribuinte-empresário organiza seus negócios visando se beneficiar de um tratado de dupla tributação que, em princípio, não o beneficiaria, para eliminar ou reduzir a tributação sobre a renda - como base para intermediar este tipo de operação.

Um país soberano, admitido na ordem jurídica internacional, dispõe de liberdade para gerir seu ordenamento jurídico interno, constituindo seu sistema tributário a fim de exigir os tributos que criar e a carga tributária que entenda adequada. Portanto, não há de, preliminarmente, se atribuir ao paraíso fiscal um tipo criminoso.

O fato extremo da não obtenção e a não disponibilização de dados de empresas, sociedades e informações fiscais e bancárias torna-se o meio hábil para criminosos, sejam estes do sistema financeiro, criminosos do colarinho branco, traficantes de arma e drogas ou dinheiro oriundo da corrupção de agentes públicos ou privados, esconderem o dinheiro de forma a branqueá-lo, visando à incorporação deste na economia.

Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) quatro fatores-chave são usadas para determinar se uma jurisdição é um paraíso fiscal:

1. Se a jurisdição não impõe impostos ou estes são nominais. A OCDE reconhece que cada jurisdição tem o direito de determinar se a impor impostos diretos. Se não houver impostos diretos, mas indiretos, utilizando os outros três fatores para determinar se uma jurisdição é um paraíso fiscal.

2. Se houver uma falta de transparência.

3. Se as leis ou práticas administrativas não permitem a troca de informações para efeitos fiscais com outros países em relação aos contribuintes que se beneficiam de baixos impostos.

4. Se for permitido a não-residentes beneficiam de reduções de impostos, enquanto na verdade não desenvolver uma atividade no país.

A concessão de vantagens fiscais “anormais”, além dos benefícios e facilidades de ordem não tributária, especialmente o sigilo bancário e societário, bem como isenções e tratamento concedido a renda de não residentes ou produzidas transnacionalmente, é o grande atrativo para a utilização dos países de tributação favorecida (paraísos fiscais) como instrumento para a prática da lavagem do dinheiro ilícito.

2. Classificação: Espécies de favorecimento

É necessária a delimitação de das vantagens concedidas, pois existem tipos de favorecimentos no tocante aos paraísos fiscais que devem ser objeto de apreciação. Em geral, as manifestações de favorecimentos e vantagem ocorrem sempre em conjunto.

Além do já elencado paraíso fiscal, pode ser objeto de apreço outras situações de benefícios entendidos como “paraísos”: Paraísos Societários, Paraísos Penais e Paraísos Bancários/Financeiros.

Paraísos societários são aqueles que oferecem regimes societários com ampla flexibilidade e com a exigência mínima de formalidade na sua constituição, não havendo o estabelecimento de limites de capital social mínimo e limites para endividamento. Como exemplo, são mais freqüentes as holding companies e trading companies.

Os Paraísos penais são entendidos como Estados que acumulam vantagens em demasia na esfera tributária, aliada com a falta de tipificação rigorosa em legislação penal, principalmente em matéria de lavagem de dinheiro, corrupção, receptação de bens provenientes de atividade ilícita, evasão fiscal, fraudes contábeis e, que ainda aceita a prática de ocultar ou dissimular a origem, natureza, circulação e movimentação de bens.

Por fim, os Paraísos Bancários/Financeiros são aqueles os quais operam sem a exigência de comprovação patrimonial ou fiduciária, ocorrendo a ausência de transparência jurídica e administrativa e de controle cambial. Ainda, dispõem de segredos rígidos quanto a informações bancárias, fiscais e societárias, além de não compartilhas tais informações com a comunidade internacional. Ilhas Cayman, Bahamas e Panamá são exemplos deste tipo de favorecimento.

3. Tratamento brasileiro aos Paraísos Fiscais

No ordenamento jurídico nacional, o primeiro diploma legal que veio a tratar da matéria foi a Lei Federal nº 9.430 de 27 de dezembro de 1.996. A norma em questão trouxe regras até então inexistentes, normatizando as noções preços de transferência, pessoa vinculada, além da previsão dos caracteres dos países com tributação favorecida, denominação legal dos paraísos fiscais.

No lastro lei 9.613/98, em seu art. 24-A, no seu parágrafo único, fixa com precisão as características entendidas pelo estado brasileiro como características de um país com tributação favorecida.

O Brasil, normalmente, considera paraísos fiscais todos os países com tributação da renda inferior a 20%. A Secretaria da Receita Federal publica periodicamente uma lista dos países considerados "paraísos fiscais", sendo a mais recente a Instrução Normativa nº 1.037, de 2011.

Ressalte-se também, que o art. 4º da Lei Federal nº 10.451/2002, conferiu o mesmo tratamento dado aos preços de transferência, para as operações realizadas com países ou dependências cuja legislação interna garanta sigilo à composição societária de pessoas jurídicas. Esta alteração legal vem no mesmo sentido das atuais discussões travadas internacionalmente acerca dos paraísos fiscais, combatendo-os não apenas pelo reduzido nível de tributação.

4. Utilização dos Paraísos Fiscais para a Lavagem de Dinheiro

O modus operandi da lavagem de dinheiro tem, distintamente, três etapas, sendo, primeiramente o distanciamento dos fundos de sua origem, evitando uma associação direta deles com o crime; segundo, o disfarce de suas várias movimentações para dificultar o rastreamento desses recursos; e terceiro, a disponibilização do dinheiro novamentepara os criminosos depois de ter sido suficientemente movimentado no ciclo de lavagem e poder ser considerado "limpo".

4.1 Fases ou etapas da lavagem de dinheiro

Os mecanismos mais utilizados no processo de lavagem de dinheiro envolvem, teoricamente, essas três etapas independentes que, com freqüência, ocorrem simultaneamente.

a) Colocação ou Placement– a primeira etapa do processo é a colocação do dinheiro no sistema econômico. Objetivando ocultar sua origem, o agente visa movimentar o dinheiro em países com regras mais permissivas e naqueles que possuem um sistema financeiro liberal. A colocação se efetua por meio de depósitos, compra de instrumentos negociáveis ou compra de bens. Para dificultar a identificação da procedência do dinheiro, os criminosos aplicam técnicas sofisticadas e cada vez mais dinâmicas, tais como o fracionamento dos valoresque transitam pelo sistema financeiro e a utilização de estabelecimentos comerciais que usualmente trabalham com dinheiro em espécie.

b) Ocultação ou Layering– a segunda etapa do processo consiste em dificultar o rastreamento contábil dos recursos ilícitos. O objetivo é quebrar a cadeia de evidências ante a possibilidade da realização de investigações sobre a origem do dinheiro. Os criminosos buscam movimentá-lo de forma eletrônica, transferindo os ativos para contas anônimas – preferencialmente, em países amparados por lei de sigilo bancário – ou realizando depósitos em contas “fantasmas”.

c) Integração ou Integration– nesta última etapa, os ativos são incorporados formalmente ao sistema econômico, seja em investimentos, bens de alto valor e, recentemente, até em transações entre atletas, em especial no futebol.

Nesta ultima etapa, uma vez integralizado o capital na economia local, com extrema dificuldade se dará prisão em flagrante ou até mesmo a imputação responsabilidades penais.

Há diversas outras operações comerciais realizadas internacionalmente que facilitam a lavagem de dinheiro e, por essa razão, merecem exame permanente detalhado. Entre essas operações estão, por exemplo, a compra e venda de jóias, pedras e metais preciosos e objetos de arte e antigüidades. Esse comércio mostra-se muito atraente para as organizações criminosas, principalmente por envolverem bens de alto valor, que são comercializados com relativa facilidade. Além disso, essas operações podem ser realizadas utilizando-se uma ampla gama de instrumentos financeiros, muitos dos quais garantem inclusive o anonimato.

4.2 Operações em Centros Financeiros Offshore

Os Centros Financeiros Offshore – CFO (Offshore Financial Center – OFC) constituem sistemas financeiros cujos bancos têm ativos e passivos externos desproporcionais às transações em conta corrente das economias domésticas dos países onde estão instalados, já que, especialmente, servem para a realização de operações transnacionais e, desta maneira, recebem pouca atenção local. Tais centros offshore oferecem abrigo sofisticado aos capitais que procuram “proteção”, isto é baixa fiscalização e mínima exigência documental.

Nos Centros Financeiros Offshore – CFO, as empresas não recebem fiscalização contábil e, desta feita, permitem a possibilidade de significativas movimentações monetárias e operações de transferência de dinheiro obtido em atividades ilegais.

Com a existência dos Centros Financeiros Offshore – CFO, não é possível afirmar que se a completa extinção dos paraísos fiscais faria diminuir o volume de capital lavado. Por mais que haja ações no intuito de combater a lavagem de dinheiro ilícito através dos paraísos fiscais, o fato dos CFO´s não sofrerem qualquer restrição ou atuação de fiscalização, os eleva à condição de grandes centros da lavragem de dinheiro.

4.3 Outros instrumentos financeiros

Não obstante à utilização dos paraísos fiscais, bem como dos centros offshore para utilização na pratica da lavagem de dinheiro, vale destacar alguns instrumentos financeiros que são objeto de uso por parte de agentes lavadores de capital ilícito.

Instrumento utilizado com o intuito de mascarar transações de capital ilícito, o Smurffing consiste na fragmentação de grande quantia monetária, oriunda na sua totalidade de crime antecedente à lavagem de dinheiro, com o objetivo de fugir do controle de autoridades administrativas. No Brasil, o Banco Central é o órgão competente para fiscalizar estas transações. O limite pra transações é R$ 10.000,00 (dez mil reais), segundo Carta Circular 2.852/98, Art. 4, inc. I.

Desta forma, o agente utiliza movimentações ou transferências abaixo o valor fiscalizado, dividindo-o em tantas quantias que forem suficientes para não levantar desconfiança e, assim, macula a origem e afastando a possibilidade de fiscalização.

Outro instrumento financeiro utilizado é o Commingling. Trata-se da conjunção entre o capital lícito e o ilícito com o intuito de branquear/ regularizar a quantia monetária ilícita advinda de algum crime antecedente.  De forma a exemplificar, entende-se quando da utilização de recursos provenientes de crime antecedente são incorporados em empresa lícita, utilizando deste capital maculado para realizar pagamentos, aquisições para a própria empresa e, desta maneira, inviabilizando o seguimento do capital e seu rastreamento, tendo como objetivo misturar os capitais lícitos e ilícitos.

Verifica-se que estes mecanismos financeiros são utilizados para dificultar o rastreamento do capital oriundo de atividade ilícita e, mais, dificultar a responsabilização do agente causador do ilícito.

Sobre o(a) autor(a)
Samuel Ebel Braga Ramos
Sócio no escritório Ebel & Battu Sociedade de Advogados. Mestrando em Direito. Pós Graduação em Gestão e Legislação Tributária. Extensão em Direito Penal e Processual Penal Transnacional pela Universidade de Göttingen - Alemanha...
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