Prescrição e decadência em matéria tributária
Análise acerca dos institutos da prescrição e da decadência no âmbito tributário, estabelecendo as especificidades e a diferenciação fundamental entre os institutos na seara tributária.
Prescrição e decadência são institutos da Teoria Geral do Direito previstos, materialmente, nos artigos 189 e ss. do Código Civil (“Título IV – Da prescrição e da decadência”). Ambas, pois, conferem segurança e confiabilidade às relações jurídicas. Na seara tributária, da lição de José Carlos de Souza Costa Neves, “enquanto a decadência interfere na ‘exigibilidade’ do crédito tributário, a prescrição afeta a exequibilidade desse crédito” (NEVES, 1998, p. 190).
No Direito Tributário, a prescrição e a decadência estão como uma das modalidades de extinção do crédito tributário (art. 156, V, do CTN). Nesse sentido, mister a diferenciação entre o crédito e a obrigação tributária. A obrigação tributária origina-se do fato gerador do tributo (fato jurídico tributário), numa fase anterior que, mediante o lançamento, converte-se (a posteriori) no crédito tributário, sendo este, pois, a relação formalizada, acertada, tornada líquida e certa. Entretanto, comenta Luís Eduardo Schoueri que a diferenciação entre a prescrição e a decadência tributárias não é pacífica na doutrina, sendo que há entendimentos no sentido de que a obrigação tributária surgiria com o lançamento e não com o fato jurídico tributário[1].
Realmente, nos termos dos art. 139 e 142 do CTN, o crédito tributário “decorre” da obrigação principal mas constitui-se com o lançamento. O lapso temporal entre esses dois interregnos fundamentais à compreensão da relação jurídica tributária é decadencial (art. 173, CTN), insuscetível, pois, de interrupção e suspensão. A decadência é a extinção, pelo decurso do tempo, de um direito potestativo (direito de lançar), a ser exercido pelo Fisco (“poder-dever”, na expressão de Regina Helena Costa, 2009, p. 268). A decadência tributária só pode ser regulamentada por lei complementar, nos termos do art. 146, III, b, da Carta da República, sendo vedado às entidades tributantes estabelecerem diversamente quanto à matéria, contrariando, pois, o disposto no art. 173 do CTN, assim como o legislador, ao regular novos tributos (vide “Curso de Direito Tributário”, de Hugo de Brito Machado, 2015, p. 224)[2]. Assim, questiona-se o art. 24 da lei n° 11.457, de 16 de março de 2007[3], que dispõe do prazo decadencial de 360 dias para que a Administração Tributária profira decisão no âmbito administrativo. Ora mas, nos termos do art. 146, III, b, da CF, matéria de decadência não deve estar disposta somente por lei complementar? Hugo de Brito Machado (MACHADO, 2015, p. 225) entende que tal dispositivo não é inconstitucional uma vez que regula procedimento administrativo e não constituição do crédito tributário, sendo, ainda, extensível, por analogia (art. 108, I, CTN), aos fiscos estadual/municipal.
O prazo decadencial, para a efetivação do lançamento do tributo (procedimento vinculado e obrigatório – art. 142, § único, CTN) é de cinco anos (art. 173, caput, CTN), sendo que o termo a quo do referido lapso depende da modalidade de lançamento o qual o tributo é submetido.
Nos termos do art. 154, § 4°, do CTN, os tributos sujeitos a lançamento por homologação (IPI, ICMS, ISS, entre outros), que abrange a maior parte dos tributos na atualidade, têm prazo decadencial a contar do fato gerador, “salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação”. Nesse caso, ocorrendo qualquer destas práticas mencionadas na parte final do § 4° do art. 154 do CTN ou ocorrer o não pagamento do tributo devido, o termo a quo do prazo decadencial será o previsto no art. 173, I, CTN, que trata de uma postergação do prazo para a Fazenda Pública lançar, a bem da indisponibilidade do interesse público (“do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado”). A mesma disposição do art. 173, I, do CTN, regula o início do lapso decadencial para os tributos sujeitos a lançamento de ofício e misto e, na hipótese de decisão administrativa/judicial de anulação do lançamento por vício formal, conta-se o quinquênio decadencial da data da decisão anulatória (art. 173, II, CTN). Segundo Regina Helena Costa (COSTA, 2009, p. 269), na hipótese do art. 173, II, do CTN, tem-se uma interrupção do prazo decadencial, o que destoa, pois, do conceito civilista de decadência, insuscetível de suspensão e interrupção (CC, art. 207). Para Hugo de Brito Machado (MACHADO, 2015, p. 224) a previsão do art. 173, II, CTN, é flagrantemente inconstitucional uma vez que concede um “prêmio” à Fazenda Pública (adiamento do termo a quo da decadência) mesmo sendo ela a responsável pelo vício que ensejou na anulação do lançamento.
O § único do art. 173 do CTN prevê a antecipação do prazo decadencial a partir da notificação do sujeito passivo de qualquer medida preparatória fundamental ao lançamento e não do exercício seguinte. Segundo Luís Eduardo Schoueri (SCHOUERI, 2014, p. 663), trata-se de complemento do caput, apesar do mesmo autor apontar que a jurisprudência[4] já entendeu que o previsto no § único do art. 173 contraria a cabeça do dispositivo, constituindo, pois, uma hipótese de interrupção do prazo decadencial. Se tal posição prevalecer, ainda segundo Luís Eduardo Schoueri, a segurança jurídica seria maculada uma vez que “mesmo que não se dê um lançamento com os cinco anos contados do início do exercício financeiro seguinte àquele em que poderia ter sido efetuado, restaria a possibilidade de o lançamento ser efetuado pela mera adoção de medida preparatória anterior à fluência daquele prazo” (SCHOUERI, 2014, p. 664). Ainda para o autor (2014, pp. 657-660), a disposição do art. 150, § 4°, do Código Tributário Nacional, não trata de extinção do crédito tributário por decadência (art. 156, V, CTN) mas por homologação, nos termos do art. 156, VII, do CTN, contando que não haja fraude, dolo, simulação ou o não pagamento do tributo devido pois, nestas situações, tratar-se-á de decadência, mas a regulada no art. 173, I, CTN.
Questão controvérsia atinente à decadência refere-se à sua incidência nos tributos sujeitos a lançamento por homologação. Inexiste dúvida na hipótese destes tributos serem devidamente declarados e pagos pelo contribuinte: o termo a quo do prazo decadencial inicia-se do fato gerador, nos termos do art. 150, § 4°, do CTN. A controvérsia surge quando tais tributos não são pagos ou são parcialmente pagos. Nestes casos, aplicava a jurisprudência a denominada “regra do 5 + 5”, uma equivalência dos prazos decadenciais dos artigos 150, § 4°, e 173, I, ambos do CTN, numa construção que ocasionava em um prazo decadencial de 10 anos[5]. Após duras críticas quanto a regra, principalmente pelo fato da extensão, inconstitucional, do prazo decadencial para o Fisco lançar, tal entendimento foi rechaçado, definitivamente, pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[6]. Ainda para outros autores, sobretudo na lição de Hugo de Brito Machado, citado por Eduardo de Moraes Sabbag (SABBAG, 2008, p. 263), na hipótese de tributo sujeito a lançamento por homologação não pago, ainda assim, aplicar-se-ia o disposto no art. 150, § 4°, do CTN.
Controvérsia também atinente à decadência tributária envolve a súmula n° 436 do STJ[7]. Critica-se a insegurança jurídica que tal enunciado sumular gera uma vez que ele contraria diversos postulados da Legislação Tributária, sobretudo no que diz respeito à competência do Fisco para lançar que, no teor da Súmula, passa a ser do contribuinte. Ainda, comenta-se a impossibilidade, a partir da aplicação do verbete sumular, da denúncia espontânea (art. 138 do CTN) e da expedição de Certidão de Dívida Ativa (CDA) pelo Fisco, além, consequentemente, do privilégio concedido à Fazenda, que, com a mera apresentação, pelo sujeito passivo, da declaração (DCTF/GIA), já constituirá o crédito tributário, com o início, a partir daí (ou do vencimento do crédito, constante na declaração), do prazo prescricional (art. 174, CTN). Nas palavras de Kyoshi Harada[8], comentando o conteúdo do indigitado enunciado, “só a vontade imparcial da lei estável, certa ou errada, pode propiciar segurança jurídica aos contribuintes”. A Súmula n. 436 do Superior Tribunal de Justiça está vigente, tendo sido, inclusive, aplicada em pronunciamentos judiciais[9].
A partir da constituição do crédito tributário, com o procedimento administrativo vinculado do lançamento (arts. 142 e ss. do CTN), inicia-se o prazo para a cobrança do crédito tributário, também pelo Fisco, em 5 anos (a prescrição tributária – art. 174, CTN). A prescrição é a extinção, pelo decurso do tempo, do direito a uma prestação (pretensão – ação que protege o direito)[10]. Diferentemente do previsto na Teoria Geral do Direito, a prescrição tributária atinge também a relação jurídica material tributária e não somente o direito de ação (art. 156, V, CTN). Em termos práticos, significa que, na ocorrência da prescrição, está a Administração Tributária impossibilitada de fornecer certidões negativas aos contribuintes. Portanto, como a decadência, a prescrição extingue a obrigação tributária, mas se inicia, tão somente e diferentemente da primeira, a posteriori, quando o crédito tributário já está constituído[11]. A prescrição tributária sujeita-se também à suspensão (art. 151, CTN) e interrupção (art. 174, § único, CTN).
Para Hugo de Brito Machado (2015, p.227), a causa interruptiva do inciso I do artigo 174 do CTN representa “mais um privilégio da Fazenda Pública relativamente aos credores em geral, que, nos termos do Código de Processo Civil, continuam a ter como causa interruptiva da prescrição a citação válida do devedor (CPC, art. 219)”. Tal observação, contudo, é contrariada por Luís Eduardo Schoueri, para quem “na seara tributária, a prescrição é matéria reservada à lei complementar, por determinação constitucional expressa (art. 146, III, b). Daí que as regulações do Código de Processo Civil não podem alterar a disciplina da prescrição estabelecida pelo Código Tributário Nacional, uma vez que este foi recepcionado como lei complementar. Conforme art. 174, I, do Código Tributário Nacional, a prescrição se interrompe com o despacho ordenador da citação em execução fiscal” (SCHOUERI, 2014, p. 667)[12].
Portanto a prescrição tributária “corresponde à perda do direito do Fisco (poder-dever) de ajuizar a ação de execução do crédito tributário – a execução fiscal, disciplinada pela Lei n. 6.830, de 1980. O prazo prescricional flui a partir da data da ‘constituição definitiva do crédito tributário’, ou seja, do lançamento eficaz, assim entendido aquele regularmente comunicado, pela notificação, ao devedor. A partir daí flui o prazo para o sujeito passivo pagar ou apresentar impugnação. No silêncio deste ou decidida definitivamente a impugnação no sentido da legitimidade da exigência, começa a correr o tempo dentro do qual a Fazenda Pública poderá ingressar com a execução fiscal” (COSTA, 2009, p. 271). Realça-se que no hiato entre o lançamento e o julgamento do recurso administrativo do contribuinte ou da revisão de ofício do procedimento vinculado do lançamento, pela autoridade tributária, o início da prescrição só ocorre quando o sujeito passivo é notificado do resultado do recurso por ele interposto junto à Administração Fiscal ou da revisão do lançamento por esta efetuada[13].
Por fim, observe-se que, para Eliana Calmon, o termo a quo do prazo prescricional para os tributos declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal situa-se em dois momentos distintos, a depender da via eleita para o controle. Se em controle difuso (em sede de recurso extraordinário, portanto) o início do quinquênio prescricional ocorre a partir da resolução do Senado Federal (art. 52, X, CF)[14]. Se em controle concentrado (ação direta), o termo a quo situa-se a partir do trânsito em julgado da ADIN.
Notas
[1] “Deve-se notar que apenas para aqueles que entendem que a obrigação tributária surgiria com o lançamento, não com o fato jurídico, é que haveria espaço para cogitar prazo decadencial. Ou seja: se o vínculo obrigacional depender do lançamento, não sendo este efetuado em seu devido tempo, caducará a possibilidade de surgir a própria obrigação tributária. Se esta, entretanto, já se reputa constituída com o fato jurídico tributário, não há espaço para a decadência, mas apenas para a prescrição” (SCHOUERI, 2014, p. 657).
[2] Nesse sentido, também a Súmula Vinculante n° 8 do Supremo Tribunal Federal, ante a inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/1991, que estabeleciam o prazo de 10 anos para o lançamento/cobrança das contribuições para a seguridade social.
[3]In verbis:
“art.24. Éobrigatórioquesejaproferidadecisãoadministrativanoprazomáximode360(trezentosesessenta)diasacontardoprotocolodepetições,defesasou recursosadministrativosdocontribuinte”.
[4] Resp n. 766.050/PR, 1ª Seção, Rel. Ministro Luiz Fux, j. 28.11.2007, DJ 25.02.2008.
[5] Resp n. 434.329/PR, 2ª Turma, Rel. Ministra Eliana Calmon, j. 19/04/2005.
[6] Resp‘s n° 973.733/SC e 923.805/SC.
[7] In verbis: “Súmula 436/STJ: A entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco”.
[8] HARADA, Kiyoshi.Tributos de lançamento por homologação e decadência. A oscilação do prazo causa insegurança jurídica. Disponível em:<http://www.haradaadvogados.com.br/publicacoes/Artigos/868.pdf>. Acesso em: 27/11/2015.
[9] Resp n° 389.089/RS, Rel. Min. LUIZ FUX, DJ de 16/12/2002.
[10] MACHADO, 2015, p. 226.
[11] Segundo Luís Eduardo Schoueri (2014, p. 657) o art. 156, V, erra ao mencionar a decadência pois, da redação do caput deste dispositivo (“extinguem o crédito tributário”), só há referência ao crédito e pois não há o que se falar em prazo decadencial.
[12] Nesse mesmo sentido, Regina Helena Costa, que comenta: “A redação original do inciso I era a seguinte: ‘pela citação pessoal feita ao devedor’. Antecipou-se, assim, a interrupção da prescrição nessa hipótese, secundando a orientação jurisprudencial consolidada no sentido de que a morosidade da máquina judiciária para a realização do ato citatório não pode acarretar prejuízos ao autor, dentre os quais a consumação do prazo prescricional” (“Curso de direito tributário: Constituição e Código Tributário Nacional”, 2009, p. 270).
[13] Resp n. 435.896/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 5/6/2003.
[14] Resp n. 423.994/MG, Rel. Min. Peçanha Martins, sessão de 08.10.2003.