Aspectos do direito penal do inimigo e a Ação Penal 470 “mensalão”
Desenvolvida por Günther Jakobs, a Teoria do Direito Penal do Inimigo, postula o emprego de um Direito Penal diverso do comum para aqueles considerados inimigos do Estado. Adiante, confronta-se o Direito Penal do Inimigo com o garantismo penal e os princípios e direitos fundamentais.
1. INTRODUÇÃO
O Direito Penal do Inimigo é uma teoria desenvolvida por Gunther Jakobs, um doutrinador alemão que a concebeu em meados da década de 80 (embora somente tenha sido intimamente desenvolvida a partir dos anos 90). Fundamenta-se esta, em políticas públicas de combate à criminalidade em âmbito nacional e internacional, desclassificando certos indivíduos como pessoas. O ilustre penalista considera que devem coexistir o Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal do Inimigo. O primeiro é direcionado aos cidadãos (pessoas); e o segundo, aos inimigos (não-pessoas). Sugere assim, um direito diferenciado a pessoas de alta periculosidade, visto que para estes o direito penal do cidadão não se faz eficaz, e a eles, não seriam oferecidas as garantias estatais, (devido processo legal, duplo grau de jurisdição, dentre outras), bem como, afastados deles a aplicação dos princípios jurídicos protetores básicos, como por exemplo, princípio da dignidade da pessoa humana, proporcionalidade, humanização das penas, etc.
Inimigos para Jakobs seriam os sujeitos criminosos, que cometem delitos de ampla crueldade, como crimes econômicos, crimes organizados, infrações penais perigosas, crimes sexuais, bem como terroristas. Nessa construção teórica, o direito penal do inimigo, na realidade, é uma forma de direito que serve para censurar determinadas classes, preleciona CAPEZ:
“(...) a reprovação não se estabelece em função da gravidade do crime praticado, mas do caráter do agente, seu estilo de vida, personalidade, antecedentes, conduta social e dos motivos que o levaram à infração penal. Há assim, dentro dessa concepção, uma culpabilidade do caráter, culpabilidade pela conduta de vida ou culpabilidade pela decisão de vida(...)”. (CAPEZ, 2005).
Ao tratar do tema, Canotilho nos ensina que o inimigo, é aquele que se nega na qualidade de pessoa, acabando com a sua existência como cidadão, excluindo-se voluntariamente de sua comunidade e do sistema jurídico que a regulamenta.
Já Prado, assim definiu inimigo:
“O "inimigo" é considerado o "irreconciliavelmente oposto", isto é, aquele que apresenta um distanciamento duradouro e não incidental das regras de Direito, verificado pelo seu comportamento pessoal, profissão, vida econômica, etc. As relações sociais desses indivíduos desenvolvem-se à margem do Direito e, por isso, não oferecem a segurança cognitiva mínima necessária para que sejam considerados como pessoas (...)”.
Contemporaneamente, o principal realce histórico, gerador da aplicação do Direito Penal do Inimigo, ocorreu com o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas nos Estados Unidos da América, a partir deste fato os EUA decretaram "guerra" contra o terror, passando a adotar medidas mais rígidas, como por exemplo: detenção em celas minúsculas e desrespeito as garantias e direitos fundamentais, contra aqueles que o Estado rotulou de inimigos.
Infere-se disto, que os grandes baluartes da teoria, seriam os argumentos da antecipação da punição do inimigo, desproporcionalidade das penas e relativização ou eliminação de certas garantias processuais, através da criação de leis mais severas direcionadas aos inimigos. Para Jakobs, o Direito Penal do Inimigo deve ser legitimado em razão do direito de segurança dos cidadãos e da imprescindibilidade de manter a configuração do Estado.
2. AÇÃO PENAL 470 E O DIREITO PENAL DO INIMIGO
O julgamento do chamado "mensalão" – pretenso esquema de propinas pagas regularmente a parlamentares federais, com dinheiro público desviado, para que votassem a favor do governo, e que recebeu este nome em referência aos pagamentos mensais idealizados pelos líderes do governo à época, a parlamentares em troca de apoio – foi, provavelmente, o mais bombástico da história da República, trinta e oito réus envolvido no esquema de corrupção. Embora escândalos políticos e denúncias de corrupção de pessoas públicas sejam muito frequentes no Brasil, vários fatores colaboraram para singularizar o mensalão. Entre eles o talento vil do principal denunciante, o deputado Roberto Jefferson, ou o fato de que eram atingidas figuras centrais do governo de um partido, o Partido dos Trabalhadores (PT), que fizeram da moralização da política sua bandeira mais vistosa.
Tamanha foi à repercussão, que esse julgamento, suscitou uma série de questões relevantes, dentre as quais, considerações feitas pelo Ministro do STF Celso de Mello sobre o “direito penal do inimigo”, suscitando no meio jurídico, diversas questões, haveria ou não cabimento do respectivo direito, em solo pátrio? Há na ação penal 470, tendências do direito penal do inimigo? É claro, é uma questão delicada, mas que tem de ser enfrentada. Os crimes de ampla repercussão, que ignoram os fundamentos do estado democrático e de direito, podem é fato, recorrerem às garantias desse estado para tentar solapá-lo. O que fazer nesse caso? Vejamos:
Apesar de ser um Estado Democrático de Direito, existem no Brasil algumas leis que foram influenciadas pela teoria de Jakobs. Porém, influencia não é aplicação. O direito penal pátrio está enraizado no princípio da ultima ratio ou princípio da subsidiariedade do direito penal, o que denota dizer que as regras penais somente devem proteger os bens jurídicos tidos mais importantes para toda a sociedade.
No Direito Penal, tais garantias exercem a função de vincular e, assim, deslegitimar o uso absoluto do poder punitivo. Nosso sistema penal é considerado garantista, pois observa diversos princípios axiológicos penais fundamentais, tais como:
i) nullum crimen sine lege – princípio da legalidade;
ii) nulla necessitas sine injuria – princípio da lesividade;
iii) nulla injuria sine actione – princípio da materialidade;
iv) nulla actio sine culpa – princípio da culpabilidade;
v) nulla accusatio sine probatione – princípio do ônus da prova;
vi) nulla proabatio sine defensione – princípio do contraditório.
(FERRAJOLI, 2006.)
No caso da Ação Penal 470, é perceptível que o Superior Tribunal de Justiça, com amparo em princípios constitucionais, firmou todos os paradigmas essencialmente garantistas do direito penal. Na ação, concluiu que a prisão antes da condenação definitiva violava a presunção da inocência. Reprovou a audiência por videoconferência garantindo o direito do réu de estar presente em seu julgamento. Avaliou a impossibilidade de fixação de pena em regime mais duro (como o fechado) apenas pela gravidade do crime. Bem como em favor dos réus, estabeleceu um grau menor na exigência da prova, uma leitura mais tolerante para com os indícios.
Diante da aplicação extensa e incondicional de tantas garantias penais, falar-se em Direito Penal do Inimigo, e no mínimo contraditória, haja vista que teoria do Direito Penal do Inimigo nas palavras de (PRADO, 2011), destroem diversas conjecturas do Direito Penal garantista e liberal, tendo como características:
i) adiantamento da punibilidade com o fim de combater o perigo oferecido pelo inimigo, de modo que são punidos os atos anteriores ao cometimento de um crime, inclusive os atos meramente preparatórios, pois basta o agente pertencer a um grupo organizado; ii) aumento excessivo e desproporcional das penas, especialmente ao se observar que a pena não é diminuída nos casos de atos preparatórios; iii) mitigação ou extinção dos direitos e garantias penais e processuais dos inimigos (PRADO, 2011).
Observa-se assim, que as normas embutidos pelo Direito Penal do Inimigo estão formal e materialmente dissociados do que está posto e salvaguardado, em tese, pelo nosso Ordenamento Jurídico, pautado nos princípios fundamentais de um Estado Democrático de Direito, sendo incabível sua aplicação em solo pátrio e muito menos no julgamento da ação penal 470.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo buscou fazer uma análise sobre a possível influência da teoria do Direito Penal do Inimigo, surgida em 1985 e encabeçada por Günter Jakobs, na Ação Penal 470 (mensalão), buscando-se uma possível aplicabilidade, mesmo que acanhada, no julgamento da Ação Penal supratranscrita.
Porém, restou evidenciado que a fundamentação teórica do Direito Penal do Inimigo, é incompatível com o Estado Democrático de Direito, pois adota o modelo penal de segurança cidadã, em que o criminoso passa pela degradação de ser considerado inimigo capital do Estado, e a intervenção penal se baseia nas características pessoais do agente, e não no fato praticado por ele (teoria do labelling aproach); prega a intervenção do Direito Penal nas fases anteriores à execução do crime, o incremento das penas privativas de liberdade e a eliminação ou restrição das garantais penais e processuais, e retoma as noções do Direito Penal do autor, já que o inimigo é punido pelo seu modo de ser, e não por um ato que praticou, ou seja, o que importa é a periculosidade do agente, e não a culpabilidade.
O grande problema da Teoria do Direito Penal do Inimigo está no confronto direto que esta enfrenta quando fere os princípios que regem a Constituição Federal, pois o ápice da Carta Magna consiste na observância que deve ser feita a ela quando da promulgação de toda e qualquer lei, sob pena de ser decretada inconstitucional, nossa constituição é eminentemente humanista e garantista. Sendo assim, não resta dúvida que tal teoria fere inúmeros princípios constitucionais e penais.
Ademais, o principal objetivo do direito penal é assegurar resultados justos e proporcionais de modo que as medidas estatais sejam capazes de atingir os fins pretendidos, (busca do controle social, a limitação da atuação estatal, prevenção da vingança privada bem como redução da violência através da aplicação de sanções).
Além disso, a legislação pátria adota a noção de Direito Penal mínimo, de ultima ratio, que se contrapõe ao Direito Penal máximo, de prima ratio. O Direito Penal é condicionado e restringido ao máximo, e assegura não só o grau máximo de proteção das liberdades dos cidadãos diante do arbítrio punitivo, mas também o ideal de certeza e racionalidade, em que as intervenções do Direito Penal são previsíveis (FERRAJOLI, 2006; PRADO, 2011). O Estado está compelido a reger-se por normas democráticas, garantistas, principiológicas bem como por axiomas penais garantistas.
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