A mudança do paradigma do direito de não produzir prova contra si mesmo após o advento da Lei Seca

A mudança do paradigma do direito de não produzir prova contra si mesmo após o advento da Lei Seca

O direito ao silêncio é apenas a manifestação da garantia muito maior, que é a do direito da não auto-acusação sem prejuízos jurídicos, ou seja, uma pessoa que se recusar a produzir prova contra si não pode ser prejudicada juridicamente.

O presente artigo tem por objetivo demonstrar que após o advento da Lei nº 12.760 de 2012 (Lei Seca) houve uma mudança no paradigma existente com relação ao direito de não ser obrigado a produzir prova contra si mesmo, relativizando este direito e princípio constitucional implícito, sob o prisma de uma política criminal punitivista e voltada para controlar o risco.

A Lei 12.760/2012, conhecida como Lei Seca, alterou dispositivos relativos às infrações administrativas e ao crime de embriagues ao volante, determinando que, quem esteja dirigindo um veículo automotor sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, sofrerá a punição administrativa de infração gravíssima e multa de 5 (cinco) vezes do valor aplicável, bem como a suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses.

Vejamos o que dispõe a referida lei alteradora do Código de Trânsito Brasileiro:

“Art. 165.  Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: 

Infração - gravíssima; 

Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;

Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.

“Art. 276.  Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código.

Parágrafo único.  Órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos.”

Art. 277. (...)

§ 2o  A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor. 

§ 3o  Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.” (NR) 

Da mesma forma, a lei seca alterou o disposto do crime de embriaguês ao volante do Código de Trânsito Brasileiro que previa um limite aceitável para a direção de veículo automotor sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos igual a 0,6 decigramas por mililitro de sangue, para a inexistência de limite qualquer.

Vejamos:

Art. 306.  Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

§ 1o  As condutas previstas no caput serão constatadas por:          

I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou          

II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.          

§ 2o  A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.  

§ 3o  O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo. 

Conforme se afere do referido dispositivo legal, o parágrafo primeiro aduz que a constatação da concentração do álcool ou substância de efeitos análogos ocorrerá pelo exame do bafômetro e pela análise de alteração psicomotora por perito indicado pelo Contran.

A pergunta que surge é a seguinte: - O que corre quando um motorista é parado em uma operação policial e indagado sobre a necessidade de se submeter ao exame do bafômetro ele se nega?

A resposta, pela análise da norma é a de que ele será encaminhado a um órgão administrativo que possua competência determinada para realizar a análise pericial de alteração da capacidade psicomotora.

Caso não haja nas proximidades esse órgão ou, seja impossível realizar o exame no momento da abordagem, aplica-se o disposto do §2º do art. 306, in verbis:

§ 2o  A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.

Vê-se que a negativa à submissão ao exame gera uma presunção de que o indivíduo está sob o efeito de álcool ou outra substância de efeitos análogos. Porém, essa presunção é iuris tantum (admite prova em contrário – presunção relativa) e não iuri et de iuri.

Assim, a política criminal para este crime relativiza o princípio constitucional do "nemo tenetur se detegere" (o direito de não produzir prova contra si mesmo)  previsto implicitamente no inciso LXIII, artigo 5º da Constituição Federal. Este inciso trata do direito do preso de permanecer em silêncio, mas o âmbito de abrangência desta norma é bem maior que esse, tendo em vista que a maior parte dos doutrinadores a considera como a máxima que diz que ninguém será obrigado a produzir prova contra si mesmo.

O direito ao silêncio é apenas a manifestação da garantia muito maior, que é a do direito da não auto-acusação sem prejuízos jurídicos, ou seja, ninguém que se recusar a produzir prova contra si pode ser prejudicado juridicamente, como diz o parágrafo único do art. 186º do código de processo penal:

O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. Este direito é conhecido como o princípio nemo tenetur se detegere.

O Pacto De São José de Costa Rica, na mesma linha assegura “o direito de não depor contra si mesma, e não confessar-se culpada”.

O Código de Processo Penal, no art. 186, parágrafo único, do Código de Processo Penal proíbe a interpretação do silêncio em prejuízo do réu, mas se analisarmos o art. 198 do mesmo dispositivo legal vê-se que o silêncio “poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz” a melhor doutrina giza que este dispositivo é inconstitucional por violar o direito ao silêncio. Vejamos o que giza o CPP:

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

Art. 198.  O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz.

O artigo 155 do Código de Processo Penal reza que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova, não podendo fundamentar seu entendimento condenatório com base em prova exclusivamente colhida na fase de investigação, salvo se a prova não for repetível, cautelar ou antecipada.

Vejamos o referido dispositivo:

Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. 

Parágrafo único. Somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil.

A prova do bafômetro é prova inquisitorial que ocorre no momento da blitzem, no instante em que o motorista é abordado. É, por lógica, uma prova que não pode ser repetida judicialmente.

Dessa forma, no caso do bafômetro, se o motorista se submete ao bafômetro e é constatada a presença de álcool ou substâncias de efeitos análogos em seu organismo, haverá a instauração de um inquérito policial e, consequentemente, o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público.

Haverá o recebimento da denúncia pelo Juiz Criminal e a determinação para a citação do acusado por violar o disposto do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro para responder, no prazo de 10 dias, a acusação por escrito (art. 396-A do CPP).

Ato contínuo, designa-se uma audiência de instrução e julgamento para a oitiva das testemunhas arroladas pelas partes (Ministério Público e Defesa).

Pergunta-se: O que resta ao acusado de violação ao disposto do art. 306 do CTB que soprou o bafômetro e foi autuado em flagrante? Confessar tão somente?

A Defesa técnica deve perquirir do próprio acusado antes da audiência, como das testemunhas, no transcorrer daquele ato, se houve coação exercida pela autoridade ou se o acusado estava completamente fora de suas capacidades de compreensão dos fatos quando se submeteu ao exame.

Evidentemente, provada a coação ou a total embriaguês, aquela prova inquisitorial não pode ser levada em consideração pelo juiz como suficiente para justificar uma condenação.

Lado outro, não havendo coação e estando o acusado em pleno gozo de suas capacidades de discernimento e, não havendo excludentes da ilicitude ou dirimentes da culpabilidade, outra defesa não haveria, senão a confissão para fins da atenuante do art. 65 do Código Penal.

Dessa forma, cabe ao criminalista orientar seus clientes e perquirir as demais provas dos autos a fim de que viabilize uma efetiva defesa técnica ao seu cliente.

Referências bibliográficas

QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 421.

Sobre o(a) autor(a)
Rodrigo Murad do Prado
Rodrigo Murad do Prado é aluno regular dos cursos de Doutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires - UBA. Mestre em Acesso à Justiça e Direito Processual. Pós-graduado em Direito Privado e Pós-Graduando em...
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