Direito Penal Econômico, autonomia e proteção de direitos difusos e supra-individuais

Direito Penal Econômico, autonomia e proteção de direitos difusos e supra-individuais

O Direito Penal Econômico não pode ser considerado uma ciência autônoma, mas sim apenas uma ramificação do Direito Penal Tradicional, que de um lado protege os bens jurídicos individuais e do outro os interesses difusos, sob pena de abdicar de todos os direitos que foram paulatinamente conquistados.

Os avanços tecnológicos e científicos, com o final do século XX e início do novo milênio apresentaram à humanidade uma nova forma de poder hegemônico denominada de globalização,¹ que foi fundamental para o surgimento do Direito Econômico.

A globalização, definida como um processo típico da segunda metade do século XX, que conduziu a crescente integração das economias e das sociedades dos vários países, especialmente no que toca à produção de mercadorias e serviços, aos mercados financeiros e à difusão de informações, ² ocasionou um grande impacto no campo do Direito, posto que como fenômeno histórico-cultural que é, não poderia desvencilhar-se dessas mutações econômicas, de sorte que as transformações provocadas pela globalização também atingiram o Direito, em todos os seus ramos. ³

Com essas alterações sócio-econômicas, surgiu a necessidade de uma tutela penal do Direito Econômico, advindo do cenário que começava a se desenhar a partir do “intervencionismo estatal no domínio econômico”.4 Modernidade, pós-modernidade, sociedade industrial e pós-industrial, tudo, enfim, coloca em xeque o fato de como poderá esse ramo do Direito vir a tratar novas situações.5

É inquestionável que com a globalização o Direito Econômico passou a necessitar de proteção penal, entretanto, a problemática vai mais adiante, na medida em que estudiosos sugerem uma flexibilização do atual Direito Penal para abranger a proteção dos novos bens jurídicos advindos da transformação econômica.

Para eles a atual dogmática penal não se adequou aos novos anseios da sociedade econômica atual, tendo-se que os bens jurídicos que agora necessitam de proteção penal são supra-individuais, e prescindem de uma nova dogmática, com olhares especiais à proteção dos interesses coletivos.

Não obstante os argumentos utilizados pelos autores adeptos do Direito Penal com ciência autônoma, bem verdade é que não há motivos relevantes a implicar em uma nova teoria geral do Direito Penal, haja vista que com o novo panorama econômico alterou-se apenas o bem a ser tutelado, transmudando-se de bem jurídico individual para difuso, não concebendo por isso autonomia ao Direito Penal Econômico em face do Direito Penal Tradicional.

Não há que se falar, portanto, em autonomia do direito penal econômico, mas sim em uma adequação penal fundamentada constitucionalmente, com olhares às peculiaridades dos bens jurídicos difusos, para que a atual Teoria Geral do Direito Penal abarque em seu bojo a proteção dos interesses coletivos do Direito Econômico, sem que com isso desestabilize toda a gama de direitos e garantias individuais do indivíduo em face do Estado.

Como se sabe, o direito penal hodierno é sustentado por princípios, que delimitam a abrangência do bem jurídico protegido, vale dizer, o Estado sofre limitações no seu ius punied, na medida em que o fiel cumprimento dos princípios não admite arbitrariedades no direito de punir, nem no critério de escolha de bens dignos de proteção.

Nesta esteira, princípios como o da intervenção mínima, da subsidiariedade, da lesividade e da fragmentariedade minimizam a atuação estatal, estando o legislador infraconstitucional adstrito a eleger apenas aqueles bens que são de suma importância à sociedade, aqueles que sejam penalmente relevantes sob pena de caos social.

Em outras palavras, bem jurídico é aquele bem de relevante importância social, digno de proteção estatal através do direito penal, de modo que o legislador o nomeie a categoria de bem jurídico penalmente protegido.

Deve, assim, respeitar a intervenção mínima, considerando que o “Direito Penal deve ser entendido como a ultima ratio da intervenção estatal, estabelecendo que ele só deva atuar na (...) defesa de bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens que não podem ser eficazmente protegidos de outra forma. Aparece ele como uma orientação de política criminal restritiva do jus punied e deriva da própria natureza do Direito Penal e da concepção material de Estado de Direito”.6

A eleição à qualidade de bem jurídico deve ser calcada, sobretudo, no princípio da subsidiariedade, de modo que o direito penal seja subsidiário a outros ramos do direito, porquanto só seja legítima a proteção de determinados bens, denominados bens jurídicos, quando não for possível que a proteção seja feita, por exemplo, pelo Direito Administrativo ou Direito Civil. Significa, pois, que a subsidiariedade penal delineia-se de tal forma que sua aplicação só deve ocorrer se outras formas de intervenção não forem passíveis de aplicação.7

Assim, o bem jurídico, pela Teoria Geral do Direito Penal Tradicional, como visto, é delimitado em sua incidência a princípios reitores, o que despertou em alguns doutrinadores o desejo de uma nova teoria para o direito penal, munidos do argumento de que o bem jurídico meta-individual, com o avanço tecnológico, prescinde de uma nota dogmática com a conseqüente flexibilização destes princípios.

Com a globalização a doutrina começou a debater pela autonomia do denominado Direito Penal Econômico, justificando que as peculiaridades daquele pugnam por uma nova Teoria Geral do Direito Penal, só que agora com vistas às características intrínsecas do Direito Econômico, afirmando que o Convencional Direito Penal não acompanhou a globalização mundial, não abarcando em seu bojo a proteção dos modernos bem jurídicos difusos.

Apesar de balizada doutrina insistir na Autonomia do Direito Penal Econômico, se faz necessária uma análise do que vem a ser esses bens, verificando ao final que não obstante serem interesses coletivos não há que se falar em autonomia do Direito Penal Econômico, bastando que as novas condutas agressivas à coletividade sejam tipificadas, com a conseqüente proteção dos interesses difusos, sem desconsiderar os princípios reitores do direito penal.

Esses interesses a serem protegidos, como a tutela do Consumidor e do Meio Ambiente, que são bens supra-individuais têm, em comum, a característica de serem direitos de uma coletividade. Dessa forma, a titularidade destes direitos não é pessoal, mas compartilhada por todos os cidadãos ou, ao menos, por uma coletividade determinada de pessoas.”8

Superado o conceito de bem jurídico, outro problema há, consistente no argumento de que o sustentáculo norteador do bem jurídico, que é o princípio da intervenção mínima, não se correlaciona com os bens difusos, na medida em que não evidencia dano aos bens jurídicos.

Segundo Renato de Mello Jorge da Silveira no caso particular dos bens difusos ou supra-individuais, devido à sua própria característica impessoal, nem sempre será confirmado um dano evidente, 9 entendido como uma efetiva lesão ao bem tutelado.

Isso porque, os bens difusos, diferentemente dos individuais, visam à proteção coletiva de um número indeterminado de pessoas (meio ambiente, consumidor), surgindo o principal argumento defensivo da Autonomia do Direito Penal Econômico.

Entretanto, não se deve desconsiderar todo o arcabouço protecionista do Direito Penal, vale dizer, não do direito penal garantista como ineficaz na proteção dos interesses difusos, mas do Direito Penal como instrumento limitador da arbitrariedade do Estado.

O denominado Direito Penal Econômico não é autônomo, mas tão somente uma ramificação do Direito Penal tradicional, que se divide em dois pólos de proteção, de um lado protegendo os bens jurídicos individuais, de outro os bens difusos ou coletivos.

No primeiro, o bem jurídico é limitado pelos princípios supramencionados- intervenção mínima, subsidiáriedade, fragmentariedade, e lesividade, como a vida e a integridade física, já nos bens difusos a proteção se dá ao coletivo, como por exemplo, aos consumidores, não prescindindo por isso de uma nova dogmática, bastando que a tipificação destes novos delitos seja calcada sobremaneira na dignidade da pessoa humana e na responsabilidade penal subjetiva.

Ademais, aceitar a autonomia do “novo” Direito Penal é afirmar categoricamente que não mais serão considerados os princípios constitucionais norteadores do direito penal, pois necessariamente uma nova dogmática penal seria “uma Carta de Alforria para o Direito Penal Econômico (..) envolvendo aceitação das normas penais em branco, interpretação analógica, ruptura do princípio da taxatividade, qualidade do bem jurídico tutelado,”10 o que é constitucionalmente inaceitável. A proteção dos interesses coletivos é essencial, mas isso não deve significar o abrandamento de garantias constitucionais paulatinamente conquistadas ao longo da história.

A diferença entre o intitulado Direito Penal Econômico e o Direito Penal Tradicional são os interesses protegido, ou seja, no tradicional os bens jurídicos são individuais, protegem um número determinado de pessoa, como a proteção à vida e à integridade física, no Direito Penal Econômico o bem tutelado protege interesses coletivos, de número indeterminado de pessoas, como a proteção ao meio ambiente que protege toda a sociedade.

É inconcebível a autonomia do Direito Penal Econômico, posto que o Direito Penal é único, podendo ao mesmo tempo proteger interesses individuais e interesses coletivos. Nesse sentido são as palavras de Flavia Goulart Pereira quando assim ensina:

Sem entrar no mérito de seu pressuposto, deve-se observar que por mais que a nova criminalidade apresente características peculiares que a tornam digna de diverso tratamento jurídico-penal, não há como aceitar que esse fato venha a desconstruir todo o sistema que trata, conforme já observado, de fatos sobremaneira diferentes.”11

Assim sendo, não obstante a transformação que ocorreu na sociedade com os avanços tecnológicos e científicos não há que se falar em autonomia do Direito Penal Econômico, ainda mais porque “a nova criminalidade, por sua força atrativa, levaria a uma flexibilização de todo o sistema de garantias do direito penal” 12

Aceitar, pois, uma nova dogmática penal seria demasiadamente um retrocesso jurídico, visto que, ou os novos bens jurídicos se adéquam ao sistema de garantias do direito penal, ou esses bens não podem ser considerados essenciais à sociedade a ponto de serem protegidos penalmente, devendo, portanto, haver proteção através de outros ramos do direito.

Em outras palavras, a tutela dos interesses supra-individuais deve sopesar o binômio proteção-garantia. Proteção porque os interesses coletivos devem ser tutelados contra as agressões advindas do avanço tecnológico e científico, e, garantia, para proteção da própria sociedade em face do Estado punidor. Portanto, o Direito Penal Econômico não é autônomo, sendo somente uma ramificação do Direito Penal Tradicional.


Notas

(1) Luciano Nascimento Silva, O moderno Direito Penal Econômico, p.2.

(2) Zaniolo, Crimes Modernos, p. 25.

(3) Rômulo de Andrade Moreira, Doutrinas Essenciais de Direito Penal V.I, p. 1336.

(4) Luciano Nascimento Silva, O moderno Direito Penal Econômico, p.10.

(5) Renato M. J. Silveira, Direito Penal Supra-individual..., p. 17.

(6) Renato M. J. Silveira, Direito Penal Supra-individual..., p. 55.

(7) Renato M. J. Silveira, Direito Penal Supra-individual..., p. 56.

(8) Renato M. J. Silveira, Direito Penal Supra-individual..., p. 187.

(9) Renato M. J. Silveira, Direito Penal Supra-individual..., p. 90.

(10) Luciano Nascimento Silva, Moderno Direito Penal Econômico..., p.20.

(11) Flavia Goulart Pereira, Doutrina Essenciais Direito Penal VIII, p. 306

(12) Flavia Goulart Pereira, Doutrina Essenciais Direito Penal VIII, p. 305

Referências Bibliográficas

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico, 3ª ed. São Paulo, RT, 2009.

SILVA FRANCO, Alberto & NUCCI, Guilherme de Souza. Doutrinas Essenciais Direito Penal, Vol. I. São Paulo, RT, 2010.

__________________________________________________. Doutrinas Essenciais Direito Penal, Vol.VIII. São Paulo, RT, 2010.

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-individual, Interesses Difusos. São Paulo, RT, 2003.

ZANIOLO, Pedro Augusto. Crimes Modernos, O impacto da Tecnologia no Direito. Curitiba, Juruá, 2007.

Artigos

SILVA, Luciano Nascimento. O moderno Direito Penal. A Ciência Criminal entre o econômico e o social. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 225, 18 fev. 2004. Disponível em: <http://jus.uol.com.b/revista/texto/4840>. Acesso em: 26 nov. 2010.

SMANIO, Gianpaolo Poggio. O bem jurídico e a Constituição Federal. Jus Navigandi,
Teresina, ano 9, n.432, 12 set. 2004. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/5682> Acesso em: 30 nov. 2010.

Sobre o(a) autor(a)
Diego da Mota Borges
Mestre Interdisciplinar pelo Uni-Facef. Tem experiência na área do Direito Público, com ênfase em Direito Penal Econômico, Ações de Improbidade Administrativa e Direito Digital. Especialista em Direito Processual Civil pela...
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