O mito da proibição de provas ilícitas "pro societate" no processo penal

O mito da proibição de provas ilícitas "pro societate" no processo penal

Defende a possibilidade da adoção de provas ilícitas para condenar no processo penal, sempre em situações estritamente necessárias. Para tanto, cita-se casos já analisados pelo Supremo Tribunal Federal nos quais se poderia ter aplicado o princípio da proporcionalidade.

1. INTRODUÇÃO

Em se tratando de provas ilícitas, a Lei nº 11.690/08 introduziu importantes modificações na sistemática processual penal pátria, entre elas, o expresso reconhecimento da teoria dos frutos da árvore proibida (fruits of the poisonous tree) no art. 157, § 1º, do Código Processual Penal, amplamente discutida na doutrina norte-americana e tema de profunda inquietação durante vários anos no STF.

Adotou-se, ademais, o sistema de inquirição direta (cross-examination) - advindo do sistema processual da common law e visto pela doutrina como o meio mais eficaz para a descoberta da verdade - , em que as partes formulam as perguntas diretamente às testemunhas, similarmente à inquirição realizada no plenário do Júri. Propiciando-se, pois, a efetividade do direito ao confronto, já anteriormente previsto pelo art. 8º, 2, “f”, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Todavia, em que pesem tais alterações legais, a questão que continua a invocar a maior atenção dos processualistas (em doutrina e jurisprudência), sendo tema, portanto, dos mais delicados em direito processual penal e constitucional, é a teoria da admissibilidade de provas ilícitas em favor da acusação (pro societate) no processo penal, desprestigiada, sobretudo no Brasil, pelas doutrinas mais autorizadas.

Nesse prisma, o julgamento (há quase uma década) do RE nº 251.445/GO pelo Supremo Tribunal Federal, afigura-se como um leading case para uma real tomada de posição (ou revisão do atual posicionamento) acerca da admissibilidade de provas ilícitas para condenar no processo penal, tema da mais alta complexidade no bojo dos Direitos Fundamentais, dos Direitos Humanos das Vítimas, do Direito Penal e Processual Penal.

2. PROVAS ILÍCITAS PRO REO NO PROCESSO PENAL

Na esteira de GRINOVER, SCARANCE e MAGALHÃESi, é praticamente unânime o entendimento que admite a utilização no processo penal, da prova favorável ao acusado, ainda que colhida com infringência a direitos fundamentais seus ou de terceiros, seja com fundamento no princípio da proporcionalidade, seja por meio da aplicação das causas excludentes da ilicitude do direito penal (legítima defesa ou estado de necessidade, conforme as circunstâncias do caso concreto).

Em outras palavras, entendem os doutrinadores supracitados que a Lex Major garante o direito de defesa no processo penal de forma primordial, abrangendo o princípio do favor rei. Desse modo, se for possível ao acusado demonstrar sua inocência por meio de uma prova obtida ilicitamente, certamente ela poderá ser utilizada no processo, haja vista a preponderância do direito à liberdade sobre a inadmissibilidade da prova ilícita no âmbito processual.

A seu turno, Fernando da Costa TOURINHO FILHO, invocando a Súmula 50 das Mesas de Processo Penal da USP, segundo a qual “podem ser utilizadas no processo penal as provas ilicitamente colhidas, que beneficiem a defesa”, assevera que, se a prova obtida por meio ilícito é favorável à Defesa, “seria um não-senso sua inadmissibilidade”ii, uma vez que deve pesar o bem maior, no caso a liberdade, pelo menos como decorrência do princípio do favor libertatis.

3. A VEDAÇÃO DA UTILIZAÇÃO DE PROVAS ILÍCITAS NO PROCESSO PENAL EM FAVOR DA ACUSAÇÃO E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

A perspectiva constitucional do fenômeno das provas ilícitas no ordenamento jurídico, como bem ressalta Torquato AVOLIOiii, deve-se, pioneiramente, a Ada Pellegrini GRINOVER, que em obra escrita ainda sob a égida da Constituição anterior explica ser “inaceitável a corrente que admite as provas ilícitas, no processo, preconizando pura e simplesmente a punição do infrator pelo ilícito material cometido”iv, numa simples visão unitária que pretende superar a distinção entre ilícito material e inadmissibilidade processual do ponto de vista da obtenção da prova.

Nestor TÁVORA e Rosmar ANTONNI argumentam que a proteção da sociedade está mais bem amparada pela preservação do núcleo básico de garantias de todos, sendo que “a ponderação de interesses dá vazão a uma ampla fluidez e instabilidade de garantias, podendo visivelmente albergar arbítrios na concepção utilitária e maniqueísta, já ressaltada, entre interesse social contrapondo-se aos do réu”v.

No mesmo sentido, Aury LOPES JR. defende que o próprio conceito de proporcionalidade é constantemente manipulado e “serve a qualquer senhor”, segundo o autor, basta ver a quantidade imensa de decisões e até de juristas que ainda operam no reducionismo binário do interesse púbico versus interesse privado, para justificar a restrição de direitos fundamentais (e, no caso, até a condenação) a partir da prevalência do interesse públicovi.

E, conforme AVOLIO, encontra-se superada, no atual estágio de evolução das liberdades públicas, a “visão do processo penal como instrumento voltado á busca da verdade real ou material”vii. No entanto, ressalva o autor, em momento apropriado, que a idéia de proporcionalidade é indissociável da noção de direito e se encontra presente desde as fases mais remotas.

Aqui merece ser feito parênteses. Nosso objetivo primordial não é esmiuçar o princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade), falando sobre sua origem, natureza e vertentes, mas apenas é de destacar sua aplicabilidade ao caso sub judice. Limitamo-nos, posto isso, a assinalar que tal princípio tem extração constitucional em diversos dispositivos, mais precisamente no postulado do “due process of law”, em seu aspecto substantivo. Esta, aliás, a atual posição do Supremo Tribunal Federal.

Destarte, no que tange à aplicação do princípio da proporcionalidade pro societate – e segundo o que se está defendendo - somente poderia ser invocado em situações extremas, como em crimes hediondos, tráfico de drogas, tortura, terrorismo e crime organizado, nos quais a aplicação da vedação da prova ilícita cause flagrante e notória injustiça.

Não se pode duvidar que o crime deve ser respondido dentro do devido processo penal em qualquer situação, o que não significa, obviamente, que não deva haver punição. Quanto àqueles que criticam o princípio processual da busca da verdade real, deveras é certo que o direito não exprime a verdade absoluta: a sua verdade é apenas relativa e mede-se pelo seu fim. E, assim é que “o direito não só pode mas deve mesmo ser infinitamente variado”, preleciona Rudolf Von IHERING.viii

Sobre o assunto, Fernando CAPEZix formula uma elucidativa pergunta: “seria mais importante proteger o direito do preso ao sigilo de sua correspondência epistolar, do qual se serve para planejar crimes, do que desbaratar uma poderosa rede de distribuição de drogas, que ceifa milhões de vidas de crianças e jovens? Certamente não. Não seria possível invocar a justificativa do estado de necessidade?”. (sem grifos no original)

A propósito, no julgamento do RE nº 251.445/GO (DJU 3.8.2000), Rel. Min.CELSO DE MELLO, a violação, covarde, de direitos fundamentais (à segurança, à proteção da incapacidade, à intimidade e outros tantos) de vários menores não mereceu a aplicação do princípio da proporcionalidade, preferindo-se manter a proteção do domicílio do acusado, já que, como se sabe, é essa (inviolabilidade do domicílio) uma garantia individual expressa (art. 5º, XI, da CF).

Sob a ótica de Eugênio Pacelli de OLIVEIRAx, a Suprema Corte perdeu uma grande oportunidade de aplicação do critério da proporcionalidade, sobretudo porque se encontrava diante de uma situação em que “as lesões, presentes e futuras, causadas pela infração criminal eram (e serão), a senso comum, imensamente maiores que aquela decorrente da violação do domicílio”.

O mais interessante, porém, é que o Direito norte-americano, exatamente a fonta de nossa vedação das provas ilícitas, segundo OLIVEIRAxi, aceita, sem maiores problemas, a prova obtida ilicitamente por particulares. O fundamento, conforme a conhecida doutrina de GONZALEZ-CUELLAR SERRANOxii, é que a norma da vedação da prova ilícita dirige-se ao Estado, produtor da prova, e não ao particular.

Pacelli de OLIVEIRAxiii ainda cita um julgamento não muito distante, envolvendo a extradição de uma artista mexicana, e diante da alegação, feita por esta, de que teria sido vítima de estupro no interior das dependências da Polícia Federal, o Supremo Tribunal Federal deferiu, na Rcl nº 2.040/DFxiv, a produção de exame de DNA na placenta da gestante, recolhida sem a autorização desta, com fundamento em uma necessária ponderação, entre valores constitucionais contrapostos, admitindo, então, a aplicação da proporcionalidade na produção da prova.

Ad argumentandum, em julgamento mais distante, o Pretório Excelso já admitiu a violação da correspondência dos presidiários pela administração penitenciária, sob o fundamento que o direito ao sigilio não pode ser invocado para a prática de infrações por parte daquele que está preso; isso no bojo do HC nº 70.814/SP.xv Prodeceu-se, portanto, a uma ponderação de interesses, utilizando-se de prova obtida ilicitamente em desfavor do preso, isto é, pro societate.


4. CONCLUSÃO

A admissibilidade das provas ilícitas em favor da acusação, ao contrário do que pensam alguns insignes juristas, não revela uma visão privatística dos direitos e das provas. Se, por um lado, é inquestionável que nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de Direito; no devido processo penal, a busca da verdade se transmuda num valor mais precioso do que a própria proteção da liberdade individual do acusado.

Demais disso, são diversas as vozes em doutrina (nacional e internacional) que criticam tal posicionamento, mas o que deve ser dito e repetido, em alto e bom som, e este sim se refere ao punctum saliens da aludida controvérsia, é que no julgamento do RE nº 251.445/GO - há quase uma década - a violação covarde dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes não mereceu a aplicação do princípio da proporcionalidade sob a perspectiva da vedação da proteção deficiente.

Ora, conquanto o Direito não deva ser realizado a qualquer preço, a prova, se imprescindível, deve ser aceita e admitida, a despeito de ilícita, por adoção do princípio da proporcionalidade - que deve ser pro reo ou pro societate -, com a ressalva, obviamente, da prática de tortura, que, por afrontar normas de direito natural, anteriores e superiores às próprias Constituições, jamais pode ser admitida, seja para que fim for.

Face a isso, tomando-se como parâmetro que o Direito deve ser infinitamente variado, é possível prestigiar aquele Direito fundamental que, em determinado caso concreto merece maior respaldo em virtude da busca da verdade real ou em face da aplicação do princípio da proporcionalidade, apto a autorizar o sopesamento e consequente flexibilização de alguns direitos fundamentais como, inclusive, já procedeu a Suprema Corte outrora.


5. NOTAS

i GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades no processo penal. 11 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.116.ii TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.27

iii AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilicitas: interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandetinas. 3. ed. ver., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p.77.

iv GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal – As interceptações telefônicas. São Paulo: Saraiva, 1976, p.199.

v TÁVORA, Nestor e ANTONNI, Rosmar. Curso de direito processual penal, 2.ed. Salvador: Ed. JusPODIVM, 2009, p.312.

vi LOPES JR., Aury. Direito Processual e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.565.

vii AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Op. Cit., p.147.

viii IHERING, Rudolf Von. A luta pelo Direito. Trad. Richard Paul Neto, Rio de Janeiro, 1978, p.348.

ix CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 16. ed. Sâo Paulo: Saraiva, 2009, p.307.

x OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Op. Cit., p.331.

xi Idem, p.333.

xii GONZALEZ-CUELLAR SERRANO, José Francisco. Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal. Madrid: Colex, 1990, p.331.

xiii Idem, p.334.

xiv Rcl nº 2.040/DF, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, em 21.2.2002 – Informativo STF nº 257, 18 a 22 de fevereiro de 2002.

xv STF, 1ª T. HC 70.814/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – DJ 24/6/1994.


BIBLIOGRAFIA

AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilicitas: interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandetinas. 3. ed. ver., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 16. ed. Sâo Paulo: Saraiva, 2009.

GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997.

GONZALEZ-CUELLAR SERRANO, José Francisco. Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal. Madrid: Colex, 1990.

GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades no processo penal. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

_______________________ Liberdades públicas e processo penal – As interceptações telefônicas. São Paulo: Saraiva, 1976.

LOPES JR., Aury. Direito Processual e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Altas, 2002.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

TÁVORA, Nestor e ANTONNI, Rosmar. Curso de direito processual penal, 2. ed. Salvador: JusPODIVM, 2009.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

Sobre o(a) autor(a)
Júlio César de Medeiros
Júlio Medeiros é advogado criminalista, professor de Direito Penal I e II na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e secretário da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB.
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