Cláusula de reserva de plenário frente às normas inconstitucionais pretéritas

Cláusula de reserva de plenário frente às normas inconstitucionais pretéritas

Análise acerca da necessidade ou não de se observar a cláusula de reserva de plenário, estampada no art. 97 da Constituição Federal de 1988, nos processos que discutam normas ordinárias anteriores ao texto constitucional que sejam incompatíveis com este.

A cláusula de reserva de plenário (a full bench dos norte-americanos), introduzida no Brasil pela Constituição de 1934 e prevista atualmente no art. 97 da Constituição Federal de 1988, é o instituto segundo o qual os Tribunais só poderão declarar a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo - seja pelo controle difuso ou concentrado de constitucionalidade - pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou do respectivo órgão especial.

Em homenagem à cláusula de reserva de plenário, portanto, quando houver controle concentrado de constitucionalidade ou argüição incidental de inconstitucionalidade em processos que tramitam perante qualquer Tribunal do país (ex: Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais do Trabalho, Tribunais de Justiça, Superior Tribunal de Justiça), será necessária a votação da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial.

A propósito, de acordo com a orientação albergada pela súmula vinculante n. 10 do Supremo Tribunal Federal, publicada em junho de 2008, “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”.

No caso de o Juiz singular controlar incidentalmente a constitucionalidade de uma norma, por razão óbvia não se aplicará a regra da reserva de plenário.

O art. 481, parágrafo único, do Código de Processo Civil, estabelecendo uma exceção à regra da reserva de plenário, apregoa que “Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão”.

Desse modo, em regra, quando os órgãos fracionários de determinado Tribunal julgarem processos que discutam a inconstitucionalidade da norma na via difusa, deverão submetê-los ao seu pleno ou ao respectivo órgão especial, salvo se houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.

Questão interessante e, ao mesmo tempo, intrincada, consiste em saber se as leis e atos normativos anteriores à Constituição Federal de 1988, que sejam incompatíveis com esta, necessitam ser submetidas à formalidade da reserva de plenário ao serem questionadas incidentalmente no caso concreto.

A doutrina pátria e a estrangeira, assim como as Cortes Constitucionais Européias, têm se digladiado quanto à solução a ser dada às normas ordinárias anteriores à Constituição que sejam incompatíveis com esta.

Para alguns doutrinadores, a norma legal incompatível com a superveniência do texto constitucional estaria revogada; Para outros, a denominação correta seria não recepção; De acordo com outros, estar-se-ia diante da caducidade; Há, ainda, quem a repute ineficaz; Para Jorge Miranda, estar-se-ia diante do fenômeno da caducidade por inconstitucionalidade superveniente (1).

No escólio de Jorge Miranda, “a escolha não se queda em mera querela acadêmica; reveste interesse prático, sobretudo quando os tribunais não possam conhecer ou não possam decidir definitivamente da inconstitucionalidade das leis, embora possam conhecer ou decidir das demais questões de Direito”.(2)

Para o constitucionalista lusitano, seria inadmissível “contrapor inconstitucionalidade e caducidade (ou, para quem assim entendesse, revogação); a distinção é, sim, entre inconstitucionalidade originária e superveniente com ou sem regime específico. E isto aplica-se tanto às situações advientes da Constituição nova como às advientes da revisão constitucional”. (3)

Comentando a questão, Zeno Veloso faz a seguinte indagação:

Uma grave questão de direito constitucional, há décadas debatida em nosso País, com opiniões divergentes, é a que se refere à lei que se torne inconciliável com uma nova Constituição: diante do conflito, a lei antiga se torna inconstitucional, com o advento da Constituição, ou há revogação da lei, por incompatibilidade com o superveniente texto constitucional.(4)

O professor Luís Roberto Barroso, ao abordar a problemática, conclui que “uma e outra correntes têm bom substrato doutrinário. Tanto é razoável a idéia de revogação quanto à da inconstitucionalidade superveniente. Está-se diante de duas proposições lógicas e bem fundadas. Em sendo assim, a opção por uma ou outra envolve matéria de política legislativa”.(5)

Para o Clèmerson Merlin Clève, ainda que se adote o critério da antinomia de normas para a solução de leis pretéritas incompatíveis com a superveniência de texto constitucional, não há como se ignorar que, sob o prisma teórico, formal e técnico, a tese da inconstitucionalidade superveniente também está correta. Isso porque o ajuizamento da ação direta contra eventual ato normativo anterior à Constituição Federal “permite a solução pronta de controvérsias que, de outro modo, somente com o passar dos anos e esgotados todas as instâncias e recursos, após inevitável período de dissídios entre juízes e tribunais, alcançarão solução pacificada”.(6)

A propósito, em outros ordenamentos jurídicos, como é o caso da Alemanha, admite-se a utilização do controle abstrato de constitucionalidade para impugnar normas anteriores ao texto constitucional (7)

Sem embargo às discussões doutrinárias a respeito do assunto, o Supremo Tribunal Federal vem adotando o entendimento no sentido de que as normas ordinárias não podem ser declaradas inconstitucionais em face da superveniência da Constituição Federal.

Em 1992, o Supremo Tribunal Federal, reafirmando a posição que prevaleceu em sua jurisprudência por mais de cinquenta anos, concluiu, em acórdão de relatoria do Ministro Paulo Brossard, que “A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as”. E, por essa razão, a Suprema Corte entende que não há como ajuizar ação direta de inconstitucionalidade impugnando lei promulgada anteriormente ao advento da Constituição Federal.(8)

Com base no entendimento do Supremo Tribunal Federal, extrai-se que o ordenamento jurídico brasileiro, ao menos no presente momento, não admite, como regra geral, o fenômeno da inconstitucionalidade superveniente. As normas ordinárias anteriores ao texto constitucional submetem-se ao fenômeno da recepção, vale dizer: Se as normas pretéritas são materialmente compatíveis com a superveniência da Constituição, são consideradas recepcionadas por ela; Caso contrário, são consideradas revogadas ou, como preferem alguns, não recepcionadas.

Nesse particular, Zeno Veloso professa que:

Entrando no debate, estamos convencidos, até por questão de rigor científico e terminológico, de que a eiva de inconstitucionalidade só pode ser apurada diante da Constituição vigente ao tempo em que foi elaborada a lei ou o ato inquinado. Só se pode falar em inconstitucionalidade, no sentido técnico do vocábulo, quando as normas participam concomitantemente de um mesmo ordenamento jurídico. Se uma lei apresenta antinomia, inconciliabilidade, incompatibilidade com a superveniente Constituição, a matéria é de direito intertemporal e não de inconstitucionalidade.(9)

Assim, no ordenamento jurídico brasileiro, não se tem admitido a propositura de ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de constitucionalidade em face de lei ou ato normativo anterior à Constituição Federal de 1988, mercê do fenômeno da não recepção ou revogação.

Todavia, no controle concentrado de constitucionalidade brasileiro, poder-se-ia cogitar, numa única hipótese, da chamada “inconstitucionalidade superveniente”, que ocorre na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, prevista no art. 102, § 1º, da Constituição Federal de 1988, e regulamentada pela Lei n. 9.882/99.

A propósito, urge transcrever o disposto no art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 9.882/99:

Art. 1o - A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.

Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental:

I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição. (grifou-se)

Por conseguinte, no Brasil, no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade, não se admite, em regra, o instituto da “inconstitucionalidade superveniente”. Nas argüições de descumprimento de preceito fundamental, entrementes, é possível impugnar lei ou ato normativo anterior à Constituição Federal, nos termos do art. 1º, parágrafo único, inciso I, da Lei n. 9.882/99.

Em se tratando de controle concentrado, como visto, não se tem permitido questionar normas pré-constitucionais por meio de ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de constitucionalidade. Por esse motivo, torna-se prejudicada a observância da reserva de plenário nessas situações. Isso não quer dizer que o Supremo Tribunal Federal permanecerá ad infinitum mantendo tal posição, porquanto é possível que, num futuro não muito distante, passe a admitir a utilização do controle abstrato de constitucionalidade para normas anteriores ao texto constitucional, à semelhança do que já ocorre em outros ordenamentos. Caso ocorra essa mudança de entendimento, certamente se aplicará a regra estampada no art. 97 da Constituição Federal.

Porém, em se tratando de controle difuso de constitucionalidade, não seria despicienda a observância da reserva de plenário quanto ao Tribunal se deparasse com norma pretérita à Constituição Federal incompatível com esta.

A jurisprudência, de um modo geral, tem repelido a regra da reserva de plenário quando o Tribunal, no caso concreto, se depara com a alegação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo promulgado anteriormente à Constituição Federal, sob o fundamento de que as normas pretéritas incompatíveis com o texto constitucional, por submeterem-se ao procedimento de revogação (ou não-recepção), dispensam a expressa decretação de inconstitucionalidade. Nessa linha, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, “A cláusula de reserva de plenário somente é aplicável na hipótese de controle difuso em que deva ser declarada a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, não se aplicando aos casos (como o dos autos) em que se reputam revogadas ou não-recepcionadas normas anteriores à Constituição vigente”(10)

Ocorre que é preciso refletir se, efetivamente, é coerente manter o critério que vem sendo adotado pela jurisprudência, haja vista que, embora a superveniência da Constituição tenha o condão de revogar a norma infraconstitucional pretérita que lhe seja contrária, isso não significa que inexista o relevante interesse para reunir o plenário (ou órgão especial) do Tribunal para julgar a matéria.

Conforme adverte Clèmerson Merlin Clève, a exigência constitucional da reserva de plenário, inspirada na jurisprudência norte-americana, tem por objetivo conferir maior grau de certeza às decisões envolvendo matéria constitucional.(11)

Logo, se o fundamento precípuo da cláusula de reserva de plenário consiste em conferir maior segurança às decisões que discutam matéria de natureza constitucional, não faz sentido exigi-la tão-somente para os processos que envolvam arguição de inconstitucionalidade de norma posterior à Constituição Federal.

As normas infraconstitucionais pretéritas, de duvidosa compatibilidade com a Constituição Federal, também representam relevante interesse jurídico, fazendo-se necessário conferir-lhes uma interpretação segura, que só poder ocorrer por intermédio da votação da maioria absoluta do Tribunal ou de seu respectivo órgão especial. Isso porque é possível que, num determinado órgão fracionário de um Tribunal, entenda-se que uma norma anterior à Constituição Federal de 1988 seja incompatível com esta, e, portanto, reputada não recepcionada. Por outro lado, é possível que outro órgão fracionário do mesmo Tribunal adote entendimento diverso, ou seja, de que a citada norma está em consonância com a Constituição Federal de 1988.

Sob este aspecto, é evidente que há um relevante interesse constitucional – como ocorre nas discussões de inconstitucionalidade de norma editada posteriormente à Constituição Federal. Seguido esse raciocínio, é coerente que os órgãos fracionários dos Tribunais pátrios, quando se depararem com questões envolvendo a inconstitucionalidade (ou revogação, no sentido técnico adotado no Brasil) de normas pretéritas ao texto constitucional, obedeçam à regra da reserva de plenário (art. 97 da Constituição Federal de 1988), ressalvadas as hipóteses discriminadas no art. 481, parágrafo único, do Código de Processo Civil, isto é, quando já houver pronunciamento do respectivo Tribunal ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.


Notas

1. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, Tomo II, p. 289.

2. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, Tomo II, p. 289.

3. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, Tomo II, p. 290.

4. VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade. 3. ed. Belo horizonte: Del Rey, 2003, p. 221.

5. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 80.

6. CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 79.

7. MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade. Apud: CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 152.

8. STF, ADI n. 85/DF, Rel. Min. Paulo Brossard, j. 07/02/1992, DJ 29/05/1992.

9. VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade. 3. ed. Belo horizonte: Del Rey, 2003, p. 232.

10. STJ, REsp 439606 / SE, Rel. Min. Felix Fischer, j. 25.02.2003, DJ 14.04.2003.

11. CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 149/150.

Sobre o(a) autor(a)
Rodrigo Andrade Viviani
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Santa Catarina; Especialista em Direito Constitucional.
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