Júri e a maioria seletiva

Júri e a maioria seletiva

Aborda a concentração das teses defensivas absolutórias em um único quesito a partir da reforma no procedimento do Júri, introduzida pela Lei 11.689/2008.

A maior causa das nulidades no procedimento do Júri sempre foi a elaboração e votação dos quesitos, mecanismo para se aferir a lógica e equilíbrio na atuação do julgador leigo, que decide sob a inspiração do princípio da íntima convicção, logo sem necessidade de fundamentação quanto às conclusões para abordagem dos aspectos fáticos do julgamento.

O empolado sistema brasileiro foi capaz de produzir desacertos e injustiças, pela falha no modo de se extrair a vontade e a compreensão popular para definição dos casos submetidos à apreciação colegiada, pelo formato obtuso das indagações, permeadas de critérios técnicos e de direito quando não deveria sê-lo. Perplexidade foi o termo chave para se dimensionar os equívocos no encaminhamento das proposições interrogativas aos jurados e a derivação para incoerências e contradições.

A Lei 11.689/2008 traz com a reforma do Júri o intento de suplantar a verdadeira crise dos quesitos no Júri brasileiro, valorizando um sistema com maior racionalidade e acreditando na coleta da informação mais pura e direta do jurado, como manifestação da grande essência do julgamento popular.

Prescreve o novo art. 481, caput, CPP que os jurados respondem sobre a matéria de fato e sobre a hipótese de absolvição do réu. Fica delimitada a construção dos quesitos para esses dois fatores que definem o julgamento, isto é, o juízo de valor acerca da responsabilidade penal do acusado e sua formato legal, exclusivamente com uma abordagem a premissas do fato.

A preocupação do legislador desceu às minúcias, recomendando pelo art. 482, parágrafo único, CPP ao juiz presidente, em reverência ao que se tinha como pontuação incontroversa na doutrina e na jurisprudência que em sua função de preparar a redação dos quesitos, deve estritamente observar a organização das perguntas em fórmulas afirmativas, simples e distintas, para que o jurado possa em contrapartida fornecer respostas claras e precisas. Mais do que as respostas, a compreensão do jurado é que não pode ser dúbia ou reticente.

A vantagem da proposição feita ao jurado pelo modo indagativo e afirmativo possibilita maior alcance e sentido da projeção interrogativa, evitando-se o raciocínio por exclusão e oblíquo, inerente à versão negativa. Não é recomendável que nos quesitos existam as referências negativas, tais como, No dia, mês e ano X, no local conhecido como Y, por volta de 8:00 horas, a vítima Z não foi atingida por disparos de arma de fogo que provocaram-lhe lesões corporais?

O signo que deve orientar o juiz presidente na difícil tarefa de elaboração dos quesitos é a simplicidade na redação, alijando-se qualquer pronunciamento ou expressão que revele a utilização de linguagem rebuscada, a intercessão de orações em períodos longos. O vernáculo não deve ser técnico, nem sofisticado, construído o quanto necessário, com uma sintaxe capaz de ser assimilada pelo homem comum. Muito importante, que o juiz consiga se situar como mediador da comunicação na confecção desses quesitos, pois o mínimo descuido pode implicar em truncamento desse diálogo e prejuízo ao entendimento, comprometendo a lisura e, por consequência, a justiça da decisão.

A distinção evita a cumulação de aspectos do mesmo acontecimento, que devem ser enxergados de modo fragmentado, para que de etapa em etapa se atinja o todo, sem percalços ou açodamento, que gere incompatibilidades. A não obediência a esse parâmetro é a fonte para a proclamação de respostas com apoio em raciocínio ou conclusões distorcidas, como pode acontecer com as qualificadoras no homicídio.

Se em uma assertiva se questiona sobre o fato principal e a sua complementação, dificulta-se ou prejudica-se a assimilação, comprometendo a mensagem com a exatidão necessária advinda do corpo de jurados. É o exemplo de duas qualificadoras, no crime de homicídio consumado: motivo torpe (mediante paga) e emprego de recurso que dificultou a defesa da vítima (surpresa) - (art. 121, § 2º, I e IV, CP). Se a proposição for conjuntural podemos sugerir: O réu X agiu mediante paga de recompensa e de surpresa, recurso que dificultou a defesa da vítima? Assim, no mesmo momento, os jurados devem deliberar, a partir de uma reflexão bilateral acerca de duas circunstâncias que envolvem o episódio principal, dificultando a avaliação e a própria manifestação da vontade. E a repercussão é enorme, pois o resultado da votação de tal quesito implica na classificação do tipo penal atribuído ao acusado, com fundamental relevância pela diferença de penas entre o crime de homicídio simples e homicídio qualificado.

Dessas nuances surge o fenômeno da chamada falsa maioria, compreendida como um resultado artificial produzido suficientemente pela imprecisão da redação do quesito, ocultando ou dissimulando a real intenção do Conselho de Sentença. No mencionado exemplo, se 04 jurados entendem que incide apenas a 1ª qualificadora e 01 jurado apenas a 2ª qualificadora e os 02 remanescentes reputem que não é o caso de se reconhecer nenhuma delas, por força da adição entre as duas qualificadoras, todas as respostas serão NÃO àquele quesito, criando-se um fictício 7 x 0. Se, no entanto, votadas as duas proposições separadamente, teremos para a 1ª qualificadora um cenário de acolhimento por 4 x 3 e quanto à 2ª qualificadora uma rejeição por 5 X 2.

O art. 483, incisos I a IV, CPP disciplina a ordem e sequência dos quesitos, abandonando a regra anterior de se perguntar primeiramente aos jurados sobre a materialidade do fato, ou seja, a respeito da própria existência do episódio que tem relevância penal e em seguida, com a resposta positiva, a pesquisa em torno do vínculo do réu com os fatos.

A afirmação sobre a existência dos fatos e o vínculo da autoria ou participação, exige a deliberação em torno da responsabilidade penal do acusado em julgamento, dizendo de maneira reiterada o § 2º, art. 483, CPP, que a resposta afirmativa por mais de 03 jurados, aos quesitos relativos aos incisos I e II, art. 483, CPP acarreta, a formulação do quesito absolutório: O jurado absolve o acusado?

Essa introdução significa a grande tentativa de revolucionar o Júri, pois agrega todas as teses defensivas, cujo acatamento leva à absolvição, para serem decididas pelo Conselho de Sentença. Não se inclui por óbvio, a tese da negativa da autoria ou participação, porque sua localização é no 2º quesito (art. 483, II, CPP). Tudo que envolver isenção de pena ou exclusão do crime deve ser resolvido nessa fase, aí englobando até os excessos das excludentes que não sejam puníveis, o que permite aos jurados um melhor aparelhamento para lidar com a compreensão fática e com isso, construírem a solução que desejam apontar sobre o julgamento, sem se perderem no complexo arcabouço de situações jurídicas

O quesito único para as teses defensivas com substrato no art. 483, III e § 2º, CPP passou, no entanto, a exigir uma profunda reflexão em torno da denominada falsa maioria, como consequência de uma falha na proposição dos quesitos, distorcendo e corrompendo a vontade dos jurados.

Lançou-se no plano doutrinário o entendimento de que o fenômeno estaria estrangulando princípios indeclináveis do processo penal do Júri, como enfatizou Marcos Caíres Luz:

A matemática, ciência divinamente exata, explica como a vontade de diferentes jurados votando isoladamente, em franca minoria, pode virar dois, três ou quatro votos, maioria, no resultado final do julgamento. O exemplo adiante facilitará o entendimento.

João, num caso fictício, policial militar, foi denunciado e pronunciado por ter no dia 09.06.2008 efetuado dois disparos contra a civil Maria, levando-a ao óbito. Submetido a julgamento, a defesa sustentou quatro teses em plenário: a) Legítima Defesa Real Própria, b) Legítima Defesa Real de Terceiro, c) Estrito Cumprimento do Dever Legal e d) Obediência à Ordem não Manifestamente Ilegal de Superior Hierárquico. Colhida a manifestação dos Senhores Jurados e depois de confirmadas a autoria e materialidade delitiva, passou-se para votação das teses defensivas. O Jurado n. 1 foi favorável à primeira tese de defesa e todos os demais a rejeitaram. Na segunda tese, o Jurado n. 2 acolheu o argumento defensivo, não sendo seguido pelos demais. Na terceira, o Jurado n. 3 entendeu estarem presentes os requisitos do estrito cumprimento do dever legal, não sendo seguido pelos demais. Na quarta tese, só o Jurado n. 4 acatou o argumento de que o policial atuou segundo ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico, os demais a refutaram.

Qual o resultado? Colhendo-se os votos na metodologia anterior, na qual a matemática continua a ser ciência exata, todas as teses de defesa teriam sido rejeitadas por maioria de seis votos contra uma minoria de um voto em cada uma delas. O réu teria sido, portanto, condenado. A Soberania da manifestação dos Senhores jurados teria sido respeitada, tudo conforme apregoa a Constituição.

E agora? Com a metodologia do recém editado artigo 483 do Código de Processo Penal ocorreria o mesmo? A resposta é NÃO. Tal artigo, em relação ao exemplo apresentando e que é possível ocorrer com muita freqüência, criou-se uma FALSA MAIORIA. Explicamos: com a concentração de todas as teses defensivas em um único quesito, qual seja, o jurado absolve o acusado?, tal como inserido no inciso III do artigo 483 do Código de Processo Penal, o réu seria absolvido pela FALSA MAIORIA DE QUATRO VOTOS, CONTRA A IGUALMENTE FALSA MINORIA DE TRÊS VOTOS.

Em nosso exemplo, cada um dos quatro primeiros jurados votou pelo reconhecimento de diferentes teses de defesa, ao final, aquilo que seria um voto minoritário contra seis para cada uma das linhas defensivas, num passe de mágica, magia negra, diríamos nós, virou quatro e o réu foi absolvido. A soberania dos veredictos fustigada. [1]

Compreendemos com outro ponto de vista o assunto, pois não ocorre qualquer afetação à isonomia de tratamento entre as partes, devido processo legal, paridade de armas e meios, contraditório ou soberania dos veredictos no Júri. Elegeu o legislador um caráter seletivo para alterar o procedimento de análise das teses defensivas absolutórias, salvo a negativa da autoria, a partir do quesito único, para aniquilar a ‘corrupção’ e ‘distorção’ técnica que os jurados faziam sobre questões jurídicas no sistema anterior, se esvaindo muitas vezes, a intenção do Conselho Popular na definição de excessos em excludentes de ilicitude, pronunciamento sobre causas de isenção de culpabilidade como inexigibilidade de conduta diversa, atuando o jurado em um perverso caminho de abordar matérias de direito de alta indagação e difícil subsunção ao caso concreto.

A opção do quesito único como já tive oportunidade de expor: racionaliza o meio de se auscultar a intenção popular, que derivada da íntima convicção, não se prende de modo crucial à conformidade legal ou jurídica, mas o senso maior de realização de justiça, caro ao povo e em grandes oportunidades, só materializável no Júri. Não importa por qual razão o jurado condena ou absolve, importante é se os meios de extração de sua vontade são aptos e condizentes com seu desiderato, autenticando-se de maneira não dúbia a opção por uma ou outra conclusão. É o que agora se possibilita com a centralização das postulações absolutórias em indagação isolada.

Associa-se a essa pontuação, a observação de que o resultado obtido mesmo no exemplo dado não pode ser rotulado de falsa maioria, que exige uma oposição à verdade, inexatidão ou algo infundado, o que acontece na verdade é uma maioria seletiva, com respaldo total no princípio da plenitude da defesa, já que a construção do resultado não deixa de ser retirada da proclamação do Júri, individualmente de cada menção que restou na visão de cada jurado como mais apta, outrossim, como decorrência lógica da pluralidade de teses defensivas, orientada pela plenitude da defesa. [2]

Constitui retrocesso incabível, o retorno à fórmula revogada, mesmo no caso de multiplicidade de teses defensivas, sendo visíveis as vantagens do novo sistema, estando o art. 483, inciso III e § 2º, CPP em estrita obediência aos princípios que compõem o devido processo legal do Júri.

Notas

[1] A falsa maioria do inciso III e § 2º do art. 483 do Código de Processo Penal, in www.jusnavigandi.com.br

[2] SILVA, Amaury – O Novo Tribunal do Júri, 2009, Editora JH Mizuno, p. 309/10

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Amaury Silva
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