Das incorporações empresariais e da exigência de certidões negativas de débito pelas Juntas Comerciais

Das incorporações empresariais e da exigência de certidões negativas de débito pelas Juntas Comerciais

Trata da exigência desproporcional - e que foge à razoabilidade - da obrigatoriedade de apresentação de CNDs para o registro e arquivamento de atos empresariais de incorporação nas juntas comerciais.

I. Considerações Iniciais

Não são raras as vezes em que um empresário, desejando praticar atos ordinários da vida comercial, depara-se com a exigência de órgãos públicos de que forneça certidões negativas de débito da empresa requerente. Estas exigências, quando fogem ao razoável, são insconstitucionais, na medida que constituem verdadeiras sanções políticas atentatórias ao livre exercício profissional.

Como exemplo de exigência desproporcional e que foge à razoabilidade, temos a obrigatoriedade de apresentação de CNDs para o registro e arquivamento de atos empresariais de incorporação nas juntas comerciais.

No caso das CND relativa ao Instituto Nacional de Seguridade Social, ainda que prevista pelo Art. 47, inciso I, alínea “d” da Lei 8.212, de 24 de Julho de 1991, entendemos que tal exigência é inconstitucional, na medida que prejudica a livre atividade econômica e fere o princípio do devido processo legal ao efetivar cobranças previdenciárias por via oblíqua.

II. Da Incorporação e das Disposições Constitucionais Aplicáveis ao Tema

Como se sabe, na incoporação a incoporadora sucede a incorporada em todos as obrigações e direitos, acarretando uma verdadeira sucessão universal, na forma do disposto pelo Art. 1.116 do Código Civil.

Art. 1.116. Na incorporação, uma ou várias sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações, devendo todas aprová-la, na forma estabelecida para os respectivos tipos.

Evidentemente, esta sucessão engloba eventuais débitos tributários e previdenciários o que, implica na conclusão de que a incorporadora absorverá a integralidade do passivo fiscal e previdenciário da empresa incorporada.

A Carta de Outubro, em seu Art. 5º XIII e 170 par. ún., garante o livre direito ao exercício de profissão e das atividades econômicas lícitas.

Art. 5.º XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

Art. 170. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

A exigência de quitação de créditos tributários e previdenciários para a prática de atos ordinários da vida empresarial corresponde à sanção política, algo intolerável no Estado Democrático de Direito e que deverá ser rechaçado pelo Poder Judiciário. Diz-se sanção política, pois a restrição imposta é notadamente desproporcional e atentatória ao princípio da razoabilidade, tendo em vista que a empresa incorporadora sucederá a incorporada em todos os direitos e obrigações.

O Estado dispõe de instrumentos efetivos para a cobrança de tributos e contribuições, não cabendo fazê-lo por via oblíqua, condicionando o registro de atos societários à quitação de débitos fiscais.

Doutrinando sobre o tema, com a clareza e perspicácia que lhe caracterizam, assim se posiciona o Prof. Hugo de Brito Machado aduz que "em Direito Tributário a expressão sanções políticas corresponde a restrições ou proibições impostas ao contribuinte, como forma indireta de obrigá-lo ao pagamento do tributo, tais como a interdição do estabelecimento, a apreensão de mercadorias, o regime especial de fiscalização, entre outras.

Qualquer que seja a restrição que implique cerceamento da liberdade de exercer atividade lícita é inconstitucional, porque contraria o disposto nos artigos 5.º , inciso XIII, e 170, parágrafo único, do Estatuto Maior do País. (...) Todas essas práticas são flagrantemente inconstitucionais, entre outras razões, porque:

a) implicam indevida restrição ao direito de exercer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, assegurado pelo art. 170, parágrafo único, da vigente Constituição Federal; e

b) configuram cobrança sem o devido processo legal, com grave violação do direito de defesa do contribuinte, porque a autoridade que a este impõe a restrição não é a autoridade competente para apreciar se a exigência é ou não legal."

No artigo Certidões Negativas e Direitos Fundamentais do Contribuinte, o meste Adriano Pinto entende que é marca oficial a restrição a direitos fundamentais por decorrência da não apresentação de certidões negativas fiscais. Tais restrições jamais são legítimas diante da ordem constitucional. (...) Todos sabemos que a Administração Fazendária e, por prestígio desta, todo o aparato estatal, agem em relação à sociedade com absoluta inversão de valores, como se o cidadão, especialmente o cidadão-contribuinte, existisse para servir ao Estado, ao Governo, quando a ordem democrática proclamada pela CF/88 coloca a autoridade, o poder político e público, como instrumento de ação social, de atendimento à cidadania, de socorro às necessidades da vida produtiva em geral.

Ives Grandra da Silva Martins e Malirene Talarico Martins Rodrigues entendem que a Constituição assegura o direito de exercício de trabalho ou profissão inserto entre as garantias individuais arroladas pelo Art. 5º., inciso XIII, que estabelece: XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.

A única exigência, portanto, é de que haja qualificação profissional para o exercício do cargo, regulamentada de acordo com a lei, em cada ofício ou profissão. (...) Este dispositivo constitucional não pode ser violado por norma infraconstitucional ou por interpretação conveniente da fiscalização, para efeitos arrecadatórios, destruindo com isso seu núcleo essencial. (...) Não pode, portanto, a lei estabelecer exigências fiscais que limite, impeçam ou dificultem a livre iniciativa e o livre exercício de atividades econômicas, sob pena de violar de forma flagrante a constituição.

III. Do Entendimento do Supremo Tribunal Federal Acerca do Tema

O Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência que considera inconstitucionais as exigências que fogem ao razoável para a prática de atos empresarial, as mencionadas sanções políticas.

Destacamos abaixo excertos do principal precedente nesse sentido; o  voto proferido nos autos da Ação Declaratória de Insconstitucionalidade n.º 173 e 394, que foram interpostas contra os Artigos 1.º e 2.º da Lei 7.711/1988 e Decreto 97.834/1989.

(omissis) O Supremo Tribunal Federal possui uma venerável linha de precedentes que considera inválidas as sanções políticas. Entende-se por sanção política as restrições não-razoáveis ou desproporcionais ao exercício da atividade econômica ou profissional lícita, utilizadas como forma de indução ou coação ao pagamento de tributos.

Como se depreende do perfil apresentado e da jurisprudência da Corte, as sanções politicas podem assumir uma série de formatos. A interdição de estabelecimento e a proibição total do exercício de atividade profissional são apenas os exemplos mais conspícuos. Um dos motivos determinantes da orientação firmada pela Corte consiste no risco posto pelas sanções politicas ao exercício do direito fundamental ao controle administrativo ou judicial da validade dos créditos tributários (...)

A sanção politica coloca desafios de duas ordens ao controle da restrição. A primeira ordem de desafios se refere ao controle da validade da própria restrição. Como as restrições ao exercício profissional e à atividade econômica podem comprometer a própria existência da empresa ou o desempenho empresarial, a sanção política pode por um fim abrupto ao processo administrativo ou judicial de controle da validade da própria sanção política. Não é difícil conceber que uma empresa, acossada pelo risco de fechamento, opte por se submeter à exigência que asseguraria seu funcionamento, dado o caráter capital da pena aplicada. (...)

Na segunda ordem de desafios, a sanção política desestimula, pelo mesmo modo, o controle da validade da constituição de créditos tributários. A interdição de estabelecimento ou a submissão do contribuinte a regime mais gravoso de apuração tributária pode impedir a discussão administrativa ou judicial sobre matéria tributária, pois é incontestável que uma empresa fechada terá menos recursos para manter um processo administrativo ou judicial.

Dito de outro modo, a sanção política viola o direito de acesso ao Estado, sej a no exercício de suas funções Administrativa ou Judicial, para que ele examine tanto a aplicação da penalidade como a validade de tributo. A sanção política também viola o substantive due process of law na medida em que implica o abandono dos mecanismos previstos no sistema jurídico para apuração e cobrança de créditos tributários (e. g., ação de execução fiscal), em favor de instrumentos oblíquos de coação e indução. (...)

A orientação firmada pela Corte também invoca o direito fundamental ao exercício profissional e de atividade econômica lícita, e rechaça a aplicação de sanções políticas tributárias independentemente da forma que as restrições possam tomar. (ADI 173 / DF - DISTRITO FEDERAL
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE RELATOR(A):  MIN. JOAQUIM BARBOSA JULGAMENTO:  25/09/2008  ÓRGÃO JULGADOR:  TRIBUNAL PLENO)

A primorosa argumentação do Min. Joaquim Barbosa é inteiramente aplicável ao caso da exigência de CNDs pelas juntas comerciais para registro de incorporações. Ao invés da utilização pelo Estado dos mecanismos previstos no sistema jurídico para apuração e cobrança de tributos e contribuições previdenciárias, opta-se por uma forma de cobrança oblíqua, obstando a oficialização da operação empresarial.

Esta conduta, além de representar afronta ao devido processo legal, na medida que configura cobrança sem direito de defesa, restringe de forma indevida e injustificável a atividade econômica. Por este motivo, também são aplicáveis, de forma analógica, as Súmulas n.º 70, 323 e 547 do E. STF.

Súmula n.º 70: É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.

Súmula n.º 323: É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.

Súmula n.º 547: Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.

Ainda que exista previsão legal que dê suporte às exigências tributárias/previdenciárias para a prática de atos empresariais, tal como as previstas na Lei 8.212/1991, o E. STF já entendeu pela impossibilidade da Administração Pública frustrar o exercício de atividade econômica mediante constrangimento do devedor à adimplir tais débitos.

(omissis) O litígio em causa revela-se impregnado de inquestionável relevo jurídico. É que fez instaurar, na presente sede recursal extraordinária, discussão em torno da possibilidade constitucional de o Poder Público impor restrições, ainda que fundadas em lei, destinadas a compelir o contribuinte inadimplente a pagar o tributo e que culminam, quase sempre, em decorrência do caráter gravoso e indireto da coerção utilizada pelo Estado, por inviabilizar o exercício, pela empresa devedora, de atividade econâmica lícita. No caso ora em análise, põe-se em destaque o exame da legitimidade constitucional de exigência estatal que erigiu a prévia satisfação de débito tributário em requisito necessário à outorga, pelo Poder Público, de autorização para a impressão de document:os fiscais.

Cabe acentuar, neste ponto, que o Supremo Tribunal Federal, tendo presentes os postulados constitucionais que asseguram a livre prática de atividades econâmicas licitas (CF, art. 170, parágrafo único) , de um lado, e a liberdade de exercício profissional (CF, art. 52, XIII}, de outro - e considerando, ainda, que o poder Público dispõe de meios legítimos que lhe permitem tornar efetivos os créditos tributários firmou orientação jurisprudencial, hoje consubstanciada em enunciados. Sumulares (Súmulas 70, 323 e 547), no sentido de que a imposição, pela autoridade fiscal, de restrições de índole punitiva, quando motivada tal limitação pela mera inadimplência do contribuinte, revela-se contrária às liberdades públicas ora referidas (RTJ 125/395, REI. MIN. OCTAVIO GALLOTTI).

(…)A circunstância de não se revelarem absolutos os direitos e garantias individuais proclamados no texto constitucional não significa que a Administração Tributária possa frustrar o exercício da atividade empresarial ou profissional do contribuinte, impondo-lhe exigências gravosas, que, não obstante as prerrogativas extraordinárias que (já) garantem o crédito tributário, visem, em última análise, a constranger o devedor a satisfazer débitos fiscais que sobre ele incidam. (MIN. CELSO DE MELO – VOTO VOGAL - RE 413.782)

SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO. INADMISSIBILIDADE DA UTILIZAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO DE MEIOS GRAVOSOS E INDIRETOS DE COERÇÃO ESTATAL DESTINADOS A COMPELIR O CONTRIBUINTE INADIMPLENTE A PAGAR O TRIBUTO (SÚMULAS 70, 323 547 DO STF). RESTRIÇÕES ESTATAIS, QUE, FUNDADAS EM EXIGÊNCIAS QUE TRANSGRIDEM OS POSTULADOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO, CULMINAM POR INVIABILIZAR, SEM JUSTO FUNDAMENTO, O EXERCÍCIO, PELO SUJEITO PASSIVO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA, DE ATIVIDADE ECONÔMICA OU PROFISSIONAL LÍCITA. LIMITAÇÕES ARBITRÁRIAS QUE NÃO PODEM SER IMPOSTAS PELO ESTADO AO CONTRIBUINTE EM DÉBITO, SOB PENA DE OFENSA AO 'SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW'. IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE O ESTADO LEGISLAR DE MODO ABUSIVO OU IMODERADO. O PODER DE TRIBUTAR - QUE ENCONTRA LIMITAÇÕES ESSENCIAIS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL, INSTITUIDAS EM FAVOR DO CONTRIBUINTE - NÃO PODE CHEGAR A DESMEDIDA DO PODER DE DESTRUIR. (MIN. OROSIMBO NONATO, RDA 341132). A PRERROGATIVA ESTATAL DE TRIBUTAR TRADUZ PODER CUJO EXERCÍCIO NÃO PODE COMPROMETER A LIBERDADE DE TRABALHO, DE COMÉRCIO E DE INDÚSTRIA DO CONTRIBUINTE. (...) RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO (RS 374.981/RS, REI. MIN. CELSO DE MELLO, "IN" INFORMATIVO/STP N' 381/2005)

IV. Conclusões

No caso específico das incorporações, nos parece claro que a exigência de CNDs pelas juntas comerciais foge ao razoável, podendo ser caracterizadas como sanções políticas, atentatórias ao devido processo legal e à garantia constitucional do livre exercício profissional.

Com as devidas vênias, classificar a exigência de CNDs nos atos de incorporação como constitucional pelo simples fato de existir lei ordinária assim determinando, representa uma verdadeira transfiguração do sistema hierárquico de leis e do próprio princípio da Supremacia da Constituição.

Desta feita, deve-se interpretar eventual dispositivo que admita esta exigência não de forma gramatical (literal), mas sim na modalidade sistemática, em harmonia com o ordenamento jurídico e, principalmente, com a Constituição Federal.

Referência Bibliográfica

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 9ª. Ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2007.
BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 10.ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2008.
MACHADO, Hugo de Brito (organizador). Certidões Negativas e Direitos Fundamentais do Contribuinte. Fortaleza: Ed. Dialética, 2007.
ROCHA, Valdir de Oliveira (organizador). Grandes Questões Atuais do Direito Tributário. 9º Vol. São Paulo: Ed. Dialética, 2005.      

Sobre o(a) autor(a)
Thiago Graça Couto
Advogado associado a Covac Sociedade de Advogados e a American Bar Association, membro da YLD/ABA, Young Lawyers Division, Litigation Comittee e Taxation Comittee, especialista em Processo Civil pela PUC-Rio, e com extensão em...
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