Classificação Ontológica de Constituição

Classificação Ontológica de Constituição

Artigo contendo a classificação ontológica de constituição, conforme a teoria constitucional do mestre Karl Loewenstein. E ainda, uma síntese do conceito sociológico proposto por Ferdinand Lassalle.

CONSTITUIÇÃO

De forma singela, a Constituição é a lei fundamental que retrata a forma de ser de um Estado, e que confere direitos e garantias fundamentais ao indivíduo e à coletividade. No entanto, existem muitos conceitos de Constituição, conforme os exemplos trazidos por José Afonso da Silva [1], podendo ser:

1) sociológico (de Ferdinand Lassalle), no qual a constituição é “uma folha de papel que deve ser criada pela soma dos fatores reais de poder vigentes numa dada sociedade”;

2) político (de Carl Schimitt), no qual a constituição configura a “decisão política fundamental” sobre a forma de ser de um Estado; e

3) jurídico (de Hans Kelsen), para quem a constituição é considerada “norma pura” ou “dever-ser”, que tem um fundamento puramente jurídico e que representa o ordenamento jurídico através de uma pirâmide em cujo cume se encontra a constituição. Há assim uma verticalidade das regras jurídicas tendo no ápice a Lei Fundamental.

Ainda, segundo José Afonso da Silva, a Lei Fundamental expressa um conjunto de valores, os quais, por sua vez, se interrelacionam, e que carecem de um elemento de conexão que lhes dêem sentido [2].


CONCEITO MATERIAL DE CONSTITUIÇÃO

Conforme Paulo Bonavides [3], o conceito de constituição pode ser ainda, material ou formal, de acordo com o seu conteúdo.

Neste sentido, explica: “Tudo quanto for, enfim, conteúdo básico referente à composição e ao funcionamento da ordem política exprime o aspecto material da Constituição.”

E por serem conceitos materiais de constituição, mencionaremos com maior apuro dois clássicos, em especial.

Primeiramente, o conceito sociológico proposto por Ferdinand Lassalle [4] e, posteriormente, o conceito ontológico de Karl Loewenstein [5].

Mister se esclarecer que, a principal proposta de Lassalle, foi a de estabelecer a consistência da verdadeira essência de uma Constituição, conforme o título da obra escrita na Alemanha do final do século XIX.

Logo, a Constituição é, em sua essência, a somatória de todos os fatores reais do poder que regem um país e tais fatores, quando consubstanciados numa “folha de papel” (documento escrito) são erigidos a direitos e, por conseguinte, instituições jurídicas (lei).

E tais fatores limitam o legislador, haja vista que a Constituição é composta por fragmentos de todos estes poderes, ou seja, os vários segmentos da sociedade devem participar da Constituição.

Então, se todos os cidadãos têm direito ao mesmo poder político, o que significa não somente votar, mas votar de forma igual, todos devem respeito à Constituição (cidadãos, governantes e inclusive o exército), mas quando esses fatores são desconsiderados, a Constituição, real e efetiva, não se coaduna com o documento escrito, sendo este “mera folha de papel”.

Ainda, as constituições não seriam necessariamente produtos dos tempos modernos, pois Lassalle acredita que todos os povos, a priori, possuem e sempre possuíram alguma constituição, real e efetiva, independente de estar escrita ou não.

Assim, o documento que costumamos chamar de Constituição, nada mais é do que um resumo de todos os direitos da nação e os mais importantes princípios de governos (folha de papel). E este deve, na verdade, ser a expressão ou o reflexo dos fatores reais do poder, para assim ser considerado uma Constituição, por sua essência.

Desta forma, teria sido na fase de transformação do feudalismo para o absolutismo e a partir deste, em face da revolução burguesa, que se associaram as noções de constituição consubstanciada num documento escrito ao conteúdo do pacto social rousseauniano.

E assim, o documento que surge simultaneamente com os estados-modernos, e que Lassalle chama de “folha de papel”, pode ser ricamente escrito, pode ser intitulado de “constituição”, pode até atestar determinados direitos e princípios, mas se não expressar os fatores reais do poder, não passará daquilo que é: mera folha de papel, não obstante o que se diga em contrário.

E cita como exemplo, a Constituição alemã de 1848, outorgada pelo rei, fazendo uma alusão irônica a um pé de macieira:

"Esta Constituición era el proprio rey quien la proclamaba; no se le obligaba a aceptarla, no se le imponía, la decretaba él voluntariamente, desde su plataforma de vencedor. A primera vista, parece como si esta Constituición, por haber nacido así, hubiera de ser más viable y vigorosa.

Pero no hay nada de eso. ¡Antes al contrario! Ya puden ustedes plantar em su huerto um manzano y colgarle um papel que diga: “Este árbol es uma higuera”. ¿Bastará com que ustedes lo digan y lo proclamen para que se vuelva higuera y deje de ser manzano? No. Y aunque congreguen ustedes a toda su servidumbre, a todos los vecinos de la comarca, em varias leguas a la redonda, y los hagan jurar a todos solemnemente que aquello es uma heguera, el árbol seguirá siendo lo que es, y la cosecha próxima lo dirán bien alto sus frutos, que no serán higos, sino manzanas". [6]

Essa Constituição é o exemplo do que o autor chama de “mera folha de papel”, porque seu conteúdo material se chocava frontalmente com a Constituição real ou, como quer, contra os fatores reais do poder. Mas há um alento, segundo o autor, de que a Constituição real tende a abrir seu próprio caminho até se sobrepor à Constituição escrita.

Já para Loewenstein [7], a Constituição consiste num dispositivo de controle de poder e a história do constitucionalismo moderno se resume na busca das limitações do poder absoluto, que é exercido pelos detentores do poder político, ou seja, é o que justifica a existência da autoridade, seja de ordem moral, espiritual ou ética.

E de suas exortações, concluímos que é obrigatoriamente necessária a aprovação e participação no exercício do poder dos seus destinatários e isto é possível graças à representação.

Se bem que, também a representação pode ser meramente simbólica ou real, mas de modo geral, a finalidade da Constituição é a criação de instituições limitadoras e controladoras do poder político (por exemplo, a tripartição dos poderes).

Neste sentido também, a Constituição, segundo o autor, apresenta dois significados, quais sejam:

1º) de liberação dos governados do poder de controle social absoluto por seus governantes; e

2º) de garantidora da legítima participação dos governados no processo do poder.

Segundo Loewenstein, foi somente com o desenvolvimento do constitucionalismo moderno, que surgiu a necessidade da Constituição formalizar a “ordem governamental da sociedade estatal” num documento escrito, daí decorre a preocupação com o seu conteúdo material.

Assim, o autor cita cinco elementos mínimos que deve conter toda Constituição:

1) a descentralização racional do poder político em vários órgãos;

2) a limitação desses poderes racionalmente distribuídos;

3) os meios preventivos e eficazes de cooperação e controles recíprocos entre esses poderes;

4) o método racional para a reforma constitucional;

5) o reconhecimento dos direitos individuais e liberdades fundamentais, bem como, a sua proteção frente a qualquer pessoa.

Face ao exposto, podemos verificar que, ambos os autores, muito embora tenham conceitos diferentes de constituição (partem de enfoques diversos), preocupam-se com o seu conteúdo, mais do que com a forma, propriamente.

Pois a mera aparência de constituição, não importando o nome que se lhe dê, não significa necessariamente se tratar de uma real situação de poder político.


CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES

As constituições podem ser classificadas de muitas maneiras, por exemplo: quanto à forma (escritas ou não), quanto à origem (democráticas, promulgadas e populares ou outorgadas), quanto à maneira de reforma (flexíveis, rígidas ou semi-rígidas), quanto à extensão (prolixas ou concisas).

Mas nos utilizaremos da classificação de Loewenstein [8], para quem é mais importante a análise do conteúdo ideológico das Constituições.

Preliminarmente, este autor esclarece que a primeira preocupação do constitucionalismo foi limitar o poder absoluto, protegendo os destinatários do poder contra a arbitrariedade e a falta de medidas dos detentores deste poder. Contudo, ao longo do tempo as constituições foram se impregnando de conteúdo ideológico-programático.

E assim, no final do século XVIII, foram se inserindo os Direitos Fundamentais, e posteriormente o conteúdo socialista foi também transparecendo nos textos constitucionais.

Assim, Loewenstein critica, em especial, a classificação das constituições quanto à forma (constituição escrita), em razão da perversão da sua noção através da autocracia moderna. Pois, a existência hoje de uma Constituição escrita, que em princípio visa limitar o exercício do poder político em nome da liberdade dos destinatários do poder, não implica, por si só, numa garantia de distribuição e limitação desse poder, de fato.

A perversão a que se refere o autor, consiste na técnica de se utilizar a Constituição escrita para tentar camuflar regimes autoritários e totalitários, o que foi e ainda é muito utilizado.

E em muitos casos, a Constituição escrita não é mais que um disfarce para a instalação de um poder concentrado nas mãos de um único detentor do poder.

Desta forma, a Constituição é privada de sua finalidade intrínseca: institucionalizar a distribuição do exercício do poder político, perdendo assim seu significado e ficando reduzida a um quadro funcional, para que os próprios detentores do poder administrem a sua “empresa governamental”.

Tal entendimento merece um aparte, perceba-se que aqui, a noção de constituição de Loewenstein parece se assemelhar ao sentido sociológico empregado por Lassalle, pois ambos ressaltam a necessidade de todos os segmentos da sociedade poderem participar do poder.

Logo, muitos Estados que alegam possuir documentos constitucionais, nos quais não faltam nenhum dos acessórios de uma democracia totalmente articulada, somente são constitucionais num sentido meramente semântico.

Face ao resumo exposto, Loewenstein [9] propõe uma classificação ontológica das Constituições, ou seja, com base naquilo que realmente é (de acordo com a realidade do processo do poder) e as diferencia pelo seu caráter normativo, nominal ou semântico.

Sendo que a constituição normativa é aquela em que suas normas verdadeiramente regulam o processo político e/ou, em contrapartida, o processo do poder se adapta as suas normas (havendo uma simbiose entre constituição e sociedade).

De modo geral, a conformação específica do poder previsto constitucionalmente depende fundamentalmente do meio socio-político no qual a constituição deva ser aplicada.

E neste sentido, esclarece o autor: ”Para que uma constituición sea viva no es suficiente que sea válida em sentido jurídico. Para ser real y efectiva, la Constituición tendrá que ser observada lealmente por todos los interesados y tendrá que estar integrada em la sociedad estatal, y ésta em ella (p. 217).”

Assim, a normatividade de uma constituição está ligada ao que os detentores e destinatários do poder fazem dela, na prática.

A constituição nominal, por sua vez, é aquela em que, embora juridicamente válida, a dinâmica do processo político ainda não se adapta a suas normas, carecendo assim de realidade existencial.

Neste caso, mister se qualificar tal Constituição de nominal. Porém, esta situação não se confunde com a manifestação de uma prática constitucional diferente de seu texto.

A constituição nominal significa tão-somente que a situação fática não permite, ao menos por hora, a completa integração das normas constitucionais na dinâmica da vida política (exemplo: o salário mínimo na CF/88).

Assim, a sua função principal é educativa e seu objetivo é o de se converter, num futuro próximo, numa constituição normativa e realmente determinar a dinâmica do processo de poder.

E, finalmente, a constituição semântica é aquela em que a realidade ontológica nada mais é do que a mera formalização da situação existente entre os detentores do poder político em benefício exclusivo dos detentores do poder de fato.

Não obstante o fato de que a tarefa original da constituição seja o de limitar a concentração do poder, possibilitando o jogo livre das forças sociais da sociedade dentro de um quadro constitucional, a tônica dada pela constituição semântica tende à restrição da liberdade de ação e será utilizada em prol dos detentores do poder. Então, a constituição semântica, ao invés de servir a limitação do poder político, transforma-se num instrumento para estabilizar e eternizar a intervenção dos dominadores fáticos na sociedade.

Em face da proposta deste autor, na prática, para se classificar uma constituição como normativa, nominal ou semântica, não se poderá partir simplesmente da análise do texto, pois estes podem simplesmente silenciar a respeito de aspectos como, por exemplo, o sistema eleitoral, os partidos políticos e o pluralismo político, sendo que somente é possível reconhecer o caráter ontológico nestas constituições, analisando as conotações que possam ter suas disposições na prática.

Enfim, Loewenstein alenta que, muito embora o circuito do poder possa permanecer ideologicamente fechado por muito tempo, a liberalização dos controles governamentais e a criação de uma estrutura mínima de Estado de Direito podem ajudar a desmantelar uma constituição semântica.


EFETIVIDADE DA CONSTITUIÇÃO

O que caracteriza a norma constitucional é a sua superioridade jurídica em relação às demais normas, denominada de supremacia constitucional. E, conforme o entendimento que se depreende de Luís Roberto Barroso [10], esta supremacia pressupõe, basicamente:

1º) a imperatividade das disposições constitucionais, pois estas contém um mandamento com força jurídica e a sua inobservância deflagra um mecanismo de cumprimento forçado para garantir sua eficácia;

2º) que a efetividade significa a atuação prática da norma, as quais fazem prevalecer no mundo dos fatos os interesses por ela tutelados (proximidade do dever ser normativo com o ser da realidade social);

3º) que a norma constitucional é efetiva na medida em que enseja a concretização do direito que ela contém, propiciando o desfrute real do bem jurídico assegurado.

Assim, as disposições constitucionais são normas jurídicas que possuem um caráter hierarquicamente superior às demais normas jurídicas.

E, justamente no intuito de assegurar esta supremacia constitucional, o ordenamento jurídico prevê e provê um conjunto de mecanismos chamados de “controle de constitucionalidade”, cuja finalidade é pronunciar a invalidade e paralisar a eficácia das normas que conflitem com a constituição.

No Brasil, esse controle pode ser incidental (realizado difusamente pelos órgãos judiciários na apreciação de casos concretos) ou principal (realizado diretamente pelo STF (Supremo Tribunal Federal) com apreciação em tese da questão constitucional e com efeitos erga omnes).

Ainda segundo Geraldo Ataliba [11], a melhor maneira de se corrigir um sistema tão profuso de legislação, quanto o nosso, é justamente através das ações declaratórias de inconstitucionalidade.

E, no intuito de sanear e prevenir o sistema, é importante que os tribunais tenham plena consciência de que o compromisso do Direito repousa, primeiramente, na fidelidade à Constituição.

Enfim, a Constituição, além de ser o fundamento de validade jurídica do Estado é também uma carta política, na medida em que visa impor limites à atuação do Estado.

Neste sentido, também a CF/88 deve ser entendida e interpretada, na medida em que regula condutas e impõe condicionamentos às condutas das pessoas.

Também é importante se identificar nossa Constituição, não somente como norma formal, mas como fruto da manifestação legítima da vontade popular, num documento escrito.

E portanto, também como uma constituição rígida, que não pode ser modificada ao alvedrio dos governos, os quais, em razão da natureza dos mandatos eletivos, são temporários. Pois, embora seja uma organismo vivo e dinâmico, deve prevalecer aos governos, que são muito efêmeros em relação a ela.


[1] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. pp. 40-41.

[2] SILVA, J.A. da. Ob. cit., p. 41.

[3] BONAVIDES, Paulo. Direito constitucional, pp. 63-65.

[4] LASSALLE, Ferdinad. A essência da constituição, 4. ed. Rio de janeiro: Lumen Juris, 1998. 53 p..

[5] LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución, Traduzida para o espanhol por Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Ariel, 1964. pp. 205 e ss..

[6] LASSALLE, F.. Ob. cit., pp. 115-116.

[7] LOEWENSTEIN, K.. Ob. cit., pp.147-231.

[8] LOEWENSTEIN, K.. Ob. cit., p. 205-231.

[9] LOEWENSTEIN, K.. Ob. cit., p. 216-231.

[10] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira, pp. 75-80 e 85.

[11] ATALIBA, Geraldo. República e constituição, 191 p..

Sobre o(a) autor(a)
Maria Carolina Sanseverino de Paula e Silva
Estudante de Direito
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