A arbitragem e o Estado: a arbitrabilidade de controvérsias nos contratos com o Estado

A arbitragem e o Estado: a arbitrabilidade de controvérsias nos contratos com o Estado

Discute-se sobre a possibilidade ou não da utilização da arbitragem como meio alternativo de solução de conflitos em questões que envolvam o setor público. Fundamenta-se nos aspectos da arbitrabilidade e da legislação, especialmente a Lei 9.307/96.

Faculdade de Direito de Curitiba

O Brasil está compreendendo e aceitando a importância da necessidade de oferecer métodos de solução de controvérsias alternativos à instância judicial. Em se tratando de direitos patrimoniais disponíveis, não somente é lícito e constitucional, mas é também recomendável aos interessados – diante do acúmulo de processos e do formalismo excessivo que têm gerado a lentidão das demandas judiciais – abdicarem do direito ou do poder de ação e buscarem a composição do conflito por meio de sentença arbitral cujos efeitos sejam idênticos àquele das decisões prolatadas pelo Poder Judiciário.

Segundo Philippe Fouchard [1], o desafio político para a arbitragem compreende manifestações que limitam excessivamente o âmbito da arbitragem e aquelas que contestam a autonomia da arbitragem.

A realidade nos mostra que o Estado está mais presente na vida econômica e social, principalmente como decorrência dos princípios constitucionais, porém defronta-se com uma realidade inquestionável – a escassez de recursos orçamentários. A partir deste ponto, o Estado se aproxima do setor privado para, em conjunto, promoverem o desenvolvimento do País. Essas associações são conhecidas como parcerias público-privadas, ou PPPs, e haverão de conviver com as concessões outorgadas pelo Estado e com as empresas privatizadas.

Nestes casos, assim como naqueles em que o Estado figura como contratante, certo é o crescimento do volume de negócios entre ele e o setor privado, e basta que existam interesses em confronto para que se possa admitir o surgimento de controvérsias, dada a complexidade da cadeia contratual.

No momento, a questão que se discute é a possibilidade ou não da utilização desse meio alternativo de solução de conflitos em questões que envolvam o setor público. Sendo a arbitragem cabível para dirimir conflitos relativos a direitos disponíveis, alguns entes públicos vêm se opondo a cumprir cláusulas compromissórias e, conseqüentemente, instaurar arbitragens. Alegam que os direitos tratados nos contratos administrativos são informados pelo Direito Público, portanto indisponíveis.

Segundo Miguel Reale, há convergência entre as normas de direito público e de direito privado, sendo os princípios da boa-fé e da função social do contrato a expressão dessa realidade, em que a liberdade de contratar estará por elas limitada e os interesses individuais devem estar alinhados aos interesses da coletividade.

Fundamentando-se nestes princípios, a arbitragem reduz os níveis de inadimplência comercial e assegura a boa fé nos negócios, muitas vezes maculada pela utilização, pela parte devedora, de recursos protelatórios no processo judicial. Hoje o empresário faz contas e sabe que um processo demorado gera custos insuportáveis [3].

É à luz dessa realidade que devemos analisar a arbitrabilidade de controvérsias decorrentes dos contratos celebrados com o Estado e empresas estatais, nos quais o pacta sunt servanda não poderá ser defendido no que contrariar os princípios gerais acima elencados, refletindo a chamada “publicização do Direito Privado” [4].

As razões alegadas para a suposta ilegalidade da utilização da arbitragem nos contratos com o Estado se fundam na violação dos princípis da legalidade, da publicidade e do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Em relação ao primeiro, discute-se o cabimento ou não da arbitragem em contratos oriundos de procedimentos licitatórios em face do exposto no artigo 55, §2º, da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993.

Segundo o princípio da legalidade, a administração somente poderá atuar se o fizer em estrita observância às disposições legais a ela aplicáveis e às quais deve se sujeitar, ou seja, “na relação administrativa, a vontade da Administração Pública é a que decorre da lei” [5]. Assim sendo, para que o Estado ou empresas estatais prevejam a arbitragem em seus contratos, é necessário que sejam detentores da habilitação legal, isto é, que a lei os permita utilizar a arbitragem como meio se solução de controvérsias contratuais.

Nesta discussão, questiona-se acerca de inexistência de autorização legal ampla, inclusive que permitisse a adoção da arbitragem em contratos oriundos de procedimentos licitatórios, frente a existência de leis especiais que contêm essa autorização, como é o caso de contratos de concessão nas áreas de energia elétrica, gás e petróleo, telecomunicações, transporte aquaviário e rodoviário que dispõem, ainda que utilizando linguagem diferente, sobre a aplicação da arbitragem em seus conflitos decorrentes dos contratos de concessão. Portanto, questionam-se quais as razões que determinam que o Estado, enquanto poder concedente, possa prever a arbitragem, enquanto ele ou suas empresas, no desempenho de relações comerciais típicas do setor privado, não o poderiam fazer, já que nunca poderia subestimar o interesse público frente o particular. Estamos, assim, diante de algo inconsistente, pois na concessão de seus direitos a terceiros pode o Estado admitir a arbitragem, enquanto que em contratos comerciais esse direito não encontraria suporte.

Estas questões devem ser discutidas sob a ótica da arbitrabilidade, comportando dois aspectos [6]: a arbitrabilidade sujetiva, ou seja, quem poderá ser parte no procedimento arbitral, e a arbitrabilidade objetiva, equivalendo dizer quais as questões e matérias que possam ser objeto de solução por arbitragem, seja nacional ou internacional.

As decisões contrárias à arbitragem se fundamentam, a um só tempo, à falta de cumprimento de requisitos necessários a assegurar a arbitrabilidade subjetiva e objetiva, decidindo pela ilegalidade. Na medida em que inexistisse lei que autorizasse expressamente o Estado e as empresas estatais a se utilizar da arbitragem, estes não poderiam ser legítima e legalmente partes no procedimento arbitral – inarbitrabilidade subjetiva – enquanto que a predominância do interesse público sobre particular acarretaria a indisponibilidade dos direitos – inarbitrabilidade objetiva.

Há inconsistência lógica quanto à questão relativa à inarbitrabilidade subjetiva, visto que para os setores de infra-estrutura, gás e petróleo existem leis específicas que regulamentam a arbitragem nos contratos de concessão, não sendo possível admitir a superação dessa inarbitrabilidade para algumas áreas em detrimento de outras, já que o sujeito da arbitragem seria o mesmo – o Estado ou qualquer de suas empresas controladas. Além disso, se existe impossibilidade à luz dos argumentos discutidos, essa decorre de princípios estruturais do Direito Administrativo e que não podem ser resolvidos por uma disposição legal autorizativa. A lei administrativa baseia-se em princípios consagrados pelo Direito Administrativo e que não poderá ela permitir, por seu texto, o que com eles não seja compatível e não possa subsistir.

Assim sendo, não existe para alguns doutrinadores [7], qualquer princípio geral que, por si só, impeça o Estado e suas empresas de participar de procedimentos arbitrais. Superado este obstáculo, a arbitrabilidade subjetiva depende de autorização legal, por força do princípio da legalidade. Finalmente, entende-se que essa autorização geral existe e está presente no texto do artigo 1º da Lei 9.307/96, que optou por cingir a arbitrabilidade subjetiva às pessoas capazes de contratar, inexistindo no texto de lei qualquer sinal que permita excluir do conceito de arbitrabilidade subjetiva o Estado e as empresas por ele controladas.

É justamente por essas razões que entende-se que as disposições relativas à arbitragem inseridas em leis especiais (Art. 23, inciso XV, da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; art. 93, inciso XV, da Lei no 9.472, de 16 de julho de 1997; e art. 43, inciso X, da Lei no 9.478, de 06 de agosto de 1997) que regulamentam certos setores e atividades, não se constituem em exceção a um princípio que teoricamente impediria que o Estado e suas empresas se sujeitassem à arbitragem. Essas leis, por não serem específicas em relação à arbitragem, estão alinhadas com a autorização geral contida na Lei de Arbitragem.

Quanto à arbitrabilidade objetiva, a Lei de Arbitragem limitou a sua aplicação a litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, ou seja, que possam ser quantificados monetariamente e estejam no comércio, e que podem ser, por esse motivo, objeto de contratação, e que estejam em condições de satisfazer os interesses finalísticos que justificam o próprio Estado. A questão fundamental é definir os direitos indisponíveis, e não os que são disponíveis, e também, por conseqüência, ter como disponíveis todos os demais [7].

Embora se tenham tomado de empréstimo regras aplicáveis aos contratos entre particulares, criou-se em favor do Estado determinadas regras que refletem a prevalência do interesse público sobre o particular, colocando-o em situação privilegiada sobre o contratante particular o que, em uma relação contratual exclusivamente entre particulares seria considerado ilícito. A essas regras do contrato administrativo que o diferem do contrato entre particulares denominamos “cláusulas exorbitantes”, e se encontram elencadas no artigo 58 da Lei de Licitações. O texto legal as trata como prerrogativas conferidas à administração, o que expressa a posição de supremacia da administração sobre o particular contratado. Evidentemente, sua aplicação deverá estar motivada e, em muitos casos, a própria Lei indica as condições de aplicação ou caberá à administração demonstrar a existência do interesse público a proteger.

No caso de alteração unilateral do contrato, por exemplo, ao permitir que a administração assim proceda, a lei estabelece que isto ocorrerá para adequação do contrato ao interesse público, ressalvando que os direitos do contratado serão preservados. O texto legal indica ainda que, nesse caso, deve-se proceder à revisão das cláusulas econômico-financeiras para a manutenção do equilíbrio contratual.

Assim, a determinação da existência ou não do direito de invocar o equilíbrio econômico financeiro poderia se enquadrar na categoria de direitos indisponíveis não sujeitos à arbitragem, mas, ao mesmo tempo, entende-se que a restauração da equação inicial é direito disponível por ter expressão patrimonial, podendo ser quantificada monetariamente, e, portanto, passível de arbitragem, o que equivale a afirmar que o tratamento das conseqüências patrimoniais é matéria arbitrável.

Em síntese, entende-se que, nos contratos com o Estado e suas empresas, estes dispõem de autorização legal para submeter as respectivas controvérsias à arbitragem, nos termos do artigo 1o da Lei de Arbitragem (arbitrabilidade subjetiva), mas as controvérsias relativas a cláusulas exorbitantes não darão lugar à arbitragem por se carcterizarem como direitos indisponíveis, estando excluídas, portanto, do escopo da arbitrabilidade objetiva.

Por expressa disposição constitucional, os serviços de energia elétrica são considerados serviço público. Desta forma, há neles o componente da supremacia do interesse público. Portanto, se vincularmos o interesse público à natureza do capital social da empresa geradora, chegaremos à conclusão de que as que estejam sob o controle privado poderão se utilizar da arbitragem para dirimir suas controvérsias contratuais, enquanto que as empresas estatais estariam impedidas de fazê-lo. Ora, a questão aqui é mais lógica do que jurídica, afinal, como uma atividade idêntica poderá ser tratada de forma distinta a depender da natureza do capital social de quem a desenvolve. Portanto, invocar, nos casos de empresas sob controle estatal no exercício de atividades de concessão igualmente desempenhadas por empresas privadas, a impossibilidade de recurso à arbitragem, não tem fundamento legal que a suporte.

A arbitragem constitui forma célere e econômica para a solução de litígios em contratos de concessão, possui amparo legal na Lei 8.987/95, podendo apenas trazer vantagens para a Administração Pública. [8] Apesar de se tratar de instituto de direito privado, a arbitragem, em alguns casos, não ofende as regras de direito público, tendo em vista o que preceitua o art. 54, da Lei n.º 8.666/93, o qual manda aplicar por completo os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado aos contratos administrativos de que trata a referida lei. Desta forma, mesmo os contratos administrativos com disposição e forma próprias, que excedem o direito comum, podem utilizar-se de direito privado para se ajustarem.

Com a evolução dos tempos, a arbitragem passou a permitir que em determinados casos, especificamente aqueles em que estão envolvidos direitos disponíveis, possa haver composição via juízo arbitral entre o poder público e o ente privado, idéia reforçada pela Lei n.º 8.987/95, que em seu artigo 23, inciso XV, define como cláusula essencial no Contrato de Concessão e Permissão de Serviços, aquela que elege o caminho da composição amigável, como via obrigatória para dirimir conflitos e controvérsias.

Com essa oportunidade, o Poder Público e o particular passaram a poder resolver os seus litígios na execução ou no cumprimento do contrato administrativo via juízo arbitral, nos casos que correspondam a direitos disponíveis, sem que haja choque com o princípio da legalidade e o interesse público, acolhendo-se os princípios da igualdade de tratamento das partes, do contraditório, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento (art. 21, § 2º da Lei n.º 9.307/96).

Por fim, outro obstáculo à utilização da arbitragem é que esta representaria violação ao princípio da publicidade, já que uma das características da arbitragem é ser procedimento sigiloso. Esta afirmação não é absoluta, já que as partes podem optar ou não pelo sigilo, o que dependerá de cada caso específico. A Lei de Arbitragem e os regulamentos das entidades arbitrais são silentes quanto a este ponto, deixando tal definição às partes. Logo, à vista do princípio da publicidade a que o Estado e suas empresas estão sujeitos, nada impede que se elimine esse elemento, razão pela qual esta argumentação não procede.

A utilização da arbitragem como modo de solução dos conflitos, mais do que representar respeito à autonomia da vontade livremente manifestada pelas partes, significa cumprimento aos princípios da boa-fé e moralidade, trazendo à Administração Pública e ao Estado somente vantagens.

O que se vislumbra afinal, é que o acesso à Justiça, em nosso país, seja realmente defendido e buscado por todos. Seja através do Poder Judiciário, como meio estatal garantidor e efetivador do acesso à Justiça, seja através das formas alternativas extrajudiciais e prévias de resolução de disputas, utilizadas pela própria sociedade, sempre sob os auspícios do Estado.

Referências bibliográficas

[1] Philippe Fouchard. Os Desafios da Arbitragem Internacional. In: Revista Brasileira de Arbitragem, n.1, jan-mar/2004, p.57-72.

[2] Miguel Reale. Direito natural/ direito positivo. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 52.

[3] Welber Barral. Revista da Escola Paulista da Magistratura, dezembro 98, No. 05.

[4] José Emilio Nunes Pinto. Revista Brasileira de Arbitragem, n.1, jan-mar/2004.

[5] Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito Administrativo. 15 ed. São Paulo: Atlas, 2003.

[6] Eduardo Silva Romero. ICC Arbitration and State Contracts; ICC Internacional Court of Arbitration Bulletin, v.13, n.1-Spring 2002, - Revista Brasileira de Arbitragem, n.1, jan-mar/2004.

[7] José Emilio Nunes Pinto. Revista Brasileira de Arbitragem, n.1, jan-mar/2004, p.9-26.

[8] TCU nº 006.0986/93-2, Rel. Min. Paulo Affonso Martins de Oliveira, Decisão nº. 188/65, DOU de 22.05.95, p. 7.277
Sobre o(a) autor(a)
Roseli Borges Teixeira
1.Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade de Direito de Curitiba-UNICURITIBA; 2.Médica Veterinária, formada em 1995 pela Universidade Estadual Paulista-UNESP; Mestre em Cirurgia Veterinária pela Universidade de São Paulo...
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