Poder de polícia
Aborda o modo de manifestação do poder de polícia (polícia administrativa), retratando aspectos como conceito, delegabilidade, limites, sistema de controle, fundamento.
Determinadas prerrogativas são conferidas à Administração Pública para a melhor satisfação do interesse coletivo. A lei, de outro lado, impõe ao administrador alguns deveres específicos para a boa e regular execução da sua função. Isso é o que a doutrina costuma chamar de poder-dever da Administração.
Verifica-se, então, que há uma vinculação legal que limita toda a atuação estatal de modo a garantir a preservação de alguns direitos individuais, sobretudo os fundamentais, mesmo quando se está diante do interesse público.
Os poderes administrativos, portanto, podem ser entendidos como mecanismos colocados à disposição dos agentes públicos para que, atuando em nome do Estado, alcancem a finalidade pública.
Com efeito, o Poder de Polícia possui essa nítida natureza instrumental, apresentando-se fundamentalmente como medida limitadora de direitos, cuja função primordial é assegurar um mínimo de ordem social, motivo pelo qual é dotado de atributos como a auto-executoriedade, a imperatividade e discricionariedade, sendo, todavia, vinculada a atividade quando a lei estabelecer o seu modo e forma de atuação.
Destarte, podemos conceituá-lo como “prerrogativa de direito público, conferida aos agentes públicos, previamente autorizada por lei, que permite a intervenção na liberdade, propriedade e demais direitos individuais, restringindo-os em prol do interesse coletivo, de maneira a garantir a supremacia do interesse publico”.
Vale trazer os ensinamentos do professor Hely Lopes Meirelles, que numa linguagem mais técnica sugere poder de policia como “mecanismo de frenagem de que dispõe a Administração Pública para conter os abusos do direito individual”.
Nosso ordenamento prevê o poder de polícia em algumas passagens: art. 145, II da Constituição Federal, art. 78 CTN, quando trata da instituição de taxas (espécie tributária que é cobrada em razão do poder de polícia- art. 5° c/c 77 CTN), não só conceituando o instituto, como também nos apresentando a sua forma regular de exercício, sem que haja arbitrariedade que possa violar a legalidade (art. 78, parágrafo único CTN).
Ainda que esta intervenção administrativa seja discricionária, necessário se faz o respeito aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, como instrumentos de controle das atividades do Poder Público.
Cabe ressaltar que tal controle é altamente recomendado, já que o principio da legalidade sugere a compatibilidade dos atos estatais com a Constituição e com as leis.
Deve, pois, ser entendido em seu sentido mais amplo, como fiscalização, correção e prevenção de atos, cujo resultado possa ser a extinção ou a convalidação, recomendando-se esta última, quando possível, por razoes de interesse público.
Existe verdadeira controvérsia doutrinária sobre a delegabilidade do Poder de polícia.
Encontram-se, atualmente, na doutrina três posições. A primeira que considera o poder de polícia indelegável por se tratar de instituto relacionado à soberania do Estado, estando superada atualmente, por existirem atividades administrativas ligadas ao poder de gestão.
A segunda, que é liderada pelo professor e desembargador Nagib Slaibi Filho, admite a delegação total, tendo como fundamento a admissibilidade de prisão em flagrante por qualquer um do povo como exemplo de delegação máxima oriunda da própria Constituição, o que permitiria outras delegações de menor grau. Com a devida vênia, há uma confusão entre os conceitos de polícia ostensiva, judiciária e polícia administrativa (polícia-função).
E a terceira corrente, majoritária, e posição atual do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, é liderada pelos professores Marcos Juruena Vilela Souto e Diogo de Figueiredo Moreira Neto, para quem o poder de polícia é parcialmente delegável, devendo ser dividido em quatro ciclos: 1°- ordem de policia, 2°- consentimento de polícia, 3°-fiscalização de polícia e 4°- sanção de polícia.
Assim, os 2° e 3° ciclos seriam delegáveis, pois estariam ligadas ao poder de gestão do Estado, enquanto que os 1° e 4° ciclos seriam indelegáveis por retratarem atividade de império, típicas, portanto. Um ótimo exemplo seria a multa de trânsito, em que o 1° ciclo está marcado pelos requisitos exigidos pelo CTB para a obtenção da carteira de habilitação; o 2° ciclo, marcado quando da emissão da carteira ou também pela emissão de certificado de vistoria pelo posto do DETRAN; o 3° ciclo, marcado pela efetiva fiscalização (stictu sensu) que sofremos diariamente pela guarda municipal, pelos pardais eletrônicos...; e o 4° e último ciclo, marcado pela emissão da multa (sanção).
Somente para ilustramos, atualmente o STJ tem admitido que a vistoria de veículo automotor seja feita mesmo com multa pendente, sob o argumento de que constitui ilegalidade condicioná-la ao pagamento de multa de trânsito por ser medida indispensável para a segurança da coletividade. A multa de trânsito é penalidade administrativa, podendo ser inscrita em dívida ativa e executada pela via do devido processo legal, respeitando-se, assim, o mandamento constitucional do art. 5, LIV.
Seja com for, para que o poder de policia seja delegável é essencial que a pessoa jurídica tenha vinculação oficial com a Administração Pública, que a delegação de atribuição seja previamente autorizada em lei formal, e que a pessoa jurídica necessite do uso da imperatividade, já que a fiscalização e o consentimento são também uma das vertentes do poder de império.
Verifica-se, portanto, que o grande fundamento da delegabilidade do poder de policia é a necessidade dessa prerrogativa para o desempenho da função pública, que é realizada por órgãos e agentes da administração direta e indireta e ainda por pessoas vinculadas ao Estado, todas consideradas um prolongamento – longa manus - do Estado.
Não devemos confundir os conceitos de polícia-administrativa (polícia-função) com polícia-corporação. Esta indica uma unidade administrativa (um órgão administrativo), decorrente do processo de descentralização, vinculada ao sistema de segurança pública, cuja função típica é a prevenção de delitos, de condutas ofensivas à ordem pública, sendo atividade preponderantemente repressiva; aquela (polícia-função) traduz a idéia de atividade administrativa, sendo exercida por diversos órgãos, além da polícia-corporação, cuja principal função é a prevenção da perturbação do interesse publico, a exemplo da proteção ao patrimônio público.
Temos ainda a policia judiciária, a quem incumbe a investigação da autoria e materialidade do ilícito penal, (polícias civil e federal e, para quem entende cabível, o Ministério Público).
O poder de polícia pode se apresentar em diversos atos da Administração Pública, a exemplo da licença e da autorização, que se enquadram na modalidade consentimento de policia, dos atos punitivos, como a multa e a interdição, que integram o ciclo da sanção de polícia.
Diga-se ainda que estes atos compõem a manifestação de vontade de algumas entidades de controle, pessoas jurídicas de direito público ou de direito privado que desempenhem função publica, e que pertencem à categorias especiais criadas para determinados fins, a exemplo da regulamentação de profissão (policia de profissão, categoria a que pertence a OAB, o CRM, o CREA...).
Conhecida é a exposição do professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto que exemplifica nove setores de atuação do poder de policia: polícia de costumes, de comunicação, sanitária, de viação, de comercio e indústria, das profissões, ambiental, de estrangeiros e edilícia.
Podemos identificar, inclusive, na Constituição Federal: limitações pessoais (art. 5, VI e VIII), à propriedade (art. 5, XXIII e XXIV), ao exercício das profissões (art. 5, XIII), ao direito de reunião (art. 5 XVI), à liberdade de comércio (art. 170 e 173). Vários são ainda os diplomas legais que também disciplinam a matéria: o código civil, art. 188, o códigos das águas, o código florestal, a lei do meio ambiente, o código de caça e pesca, o estatuto da cidade...
Diogo de Figueiredo nos acrescenta ainda com suas sábias palavras: “... poder de polícia é exercido pelo Estado enquanto legislador, pois apenas por lei se pode limitar e condicionar liberdades e direitos, enquanto que a função de policia, como a aplicação da lei, é exercida pelo Estado como administrador”.
Isto posto, conclui-se que toda intervenção administrativa, mesmo decorrente da soberania estatal, presente a imperatividade, para ser legítima, deve ser regrada, limitada, passível de controle, e ainda sob a reserva legal (art.5, II CRFB).
Invoca-se, oportunamente, aquela velha máxima segundo a qual ao particular é permitido fazer tudo o que a lei não proíbe, diferentemente do administrador, que somente pode fazer o que a lei autoriza.
Na autorizada doutrina do professor José dos Santos Carvalho Filho: “não há direitos individuais absolutos a esta ou àquela atividade, mas ao contrário deverão estar subordinados a interesses coletivos. Daí poder dizer-se que a liberdade e propriedade são sempre direitos condicionados...”
Considerando todo o exposto, mesmo que ninguém adquira direito contra interesse público, essa necessidade social não pode constituir fundamento para violação de direitos individuais, que em ultima análise cabe ao próprio Estado tutelar. Sobretudo porque a tradução de um verdadeiro Estado Democrático de Direito deve se pautar na ponderação dinâmica de interesses contrapostos, de modo que o interesse juridicamente mais relevante, seja ele publico ou privado, prevaleça sobre o de menor graduação, seja ele publico ou privado.