Energia não paga por município: corta ou não corta?
Um dos temas que tem levantado acaloradas discussões no âmbito jurídico é, sem dúvida, o concernente a possibilidade de suspensão da prestação do serviço público de energia elétrica quando o inadimplente é um ente federativo municipal.
1. INTRODUÇÃO
A ciência jurídica sempre foi alvo de grandes debates internos devido à complexidade de alguns institutos que apresentam entendimentos dúbios e demandam uma pacificação por tribunais superiores. Um dos temas que tem levantado acaloradas discussões no âmbito jurídico é, sem dúvida, o concernente a possibilidade de suspensão da prestação do serviço público de energia elétrica quando o inadimplente é um ente federativo municipal. É para esse tema que serão tecidas algumas palavras. Primeiramente serão feitas algumas rápidas considerações sobre o direito (lato sensu), posteriormente tratar-se-á dos serviços públicos, partindo-se depois para uma análise do tema central deste texto.
2. DIREITO, PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE E SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS
O Direito, em sentido geral, como um dos instrumentos de controle social, está sempre buscando evoluir na mesma velocidade das mutações sociais. Os seus institutos vão se modificando na medida em que vão mudando os valores coletivos. Isso não é diferente no seu ramo Administrativo, uma vez que o Estado é responsável, não só por executar as leis, mas também por administrar em todas as esferas da federação (federal, estadual e municipal). Portanto, ele encarrega-se de proporcionar o bem estar geral aos seus cidadãos, acompanhando os ditames da natural evolução da sociedade. Projetando essa função do Estado no âmbito do Direito Administrativo, especificamente, chega-se ao conceito de serviço público, sendo este uma atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados com a finalidade de satisfazer as necessidades essenciais e secundárias da coletividade.
Nesse contexto, sabe-se que serviços públicos são norteados por princípios dentre os quais está o da Continuidade. Este transparece a impossibilidade de haver uma interrupção abrupta dos serviços públicos ditos essenciais. Mas, cabe-nos um questionamento: o que seria um serviço público essencial?
Doutrinadores de grande renome no Direito Administrativo, como Hely Lopes Meireles, costumam classificar os serviços públicos em obrigatórios e facultativos. Naqueles, a suspensão do fornecimento seria ilegal e nestes, não. A justificativa utilizada é a de que os serviços públicos obrigatórios são tidos como essenciais comumente remunerados por taxa, modalidade de tributo, não podendo ser suspenso por inadimplemento, uma vez que existe uma forma específica de cobrança judicial (por exemplo, água encanada); já nos serviços ditos facultativos é legitima a suspensão pelo inadimplemento, pois são tidos como não-essenciais, mas inevitável se mostra a necessidade de prévio aviso. Esses serviços são remunerados por tarifa (preço público), evidenciando a sua natureza contratual (por exemplo, serviço de energia elétrica) (MEIRELES, p.314). Portanto, temos que serviço público essencial é aquele que é remunerado por taxa e não permitindo a suspensão em razão de inadimplemento.
3. A CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO
Os serviços públicos podem ser prestados diretamente ou indiretamente por entidades criadas pelo Estado ou privadas com capital majoritariamente estatal. Além dessas duas formas, outras se apresentam na forma de concessão ou permissão, ambas instituídas por delegação do Poder Público a particulares que executarão serviços públicos mediante contrato.
A concessão de serviço público, segundo a douta professora Lucia Valle Figueiredo, é “espécie de contrato administrativo por meio do qual o Poder Público concedente, sempre precedido de licitação, salvo as exceções legais, transfere o exercício de determinados serviços ao concessionário, pessoa jurídica privada, para que execute por seu nome, por sua conta e risco” (FIGUEIREDO, P.90). Essas sábias palavras expressam objetivamente a natureza, as características e responsabilidades dos contratantes.
O contrato de concessão de serviço público tem características que traduzem bem os direitos do concessionário: manutenção do equilíbrio econômico-finaceiro do contrato, preservação do objeto do contrato e razoabilidade da remuneração. Uma das mais importantes características é a manutenção da estabilidade econômico-finaceira do contrato, pois vislumbra ela o próprio equilíbrio entre as obrigações e a remuneração do concessionário, ambos vitais nesse tipo de contrato, visto que o concessionário necessita de retribuição pecuniária proporcional ao serviço prestado para manter o bom e regular fornecimento deste. Essa remuneração mencionada pode ser, conforme acima dito nas palavras do mestre Hely, pode ser taxa ou tarifa conforme a natureza de essencial ou não o serviço.
4. O SERVIÇO DE ENERGIA ELÉTRICA
O serviço de prestação de energia elétrica, especificamente, no entender da autorizada doutrina, é um serviço facultativo, não-essencial e remunerado por tarifa. Seria ele Facultativo por que a empresa prestadora faz a ligação no momento em que o pretenso consumidor torna-se habilitado e a solicita; não-essencial devido ao fato de ser perfeitamente possível a sobrevivência humana sem a energia elétrica, como se verifica em alguns recantos do país; e, por fim, o fato de ser remunerado por tarifa dá-se em função na natureza contratual verificada no contrato de concessão da prestação do serviço de fornecimento de energia elétrica firmado entre a empresa e o Estado.
O fato de o mencionado serviço ser normalmente prestado por empresa privada concessionária do serviço público, os usuários dessa energia elétrica seriam tidos consumidores, implicando aí numa relação regida pelo Código de Defesa do Consumidor?
5. A SUSPENSÃO DO SERVIÇO NA RELAÇÃO CONSUMIDOR X PRESTADORA
A Lei nº. 8.078 de 11 de setembro de 1990, em seu artigo 2º dispõe que: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. O estatuto do consumidor, como vemos, qualifica como consumidor “toda pessoa física ou jurídica”, não distinguindo as pessoas jurídicas públicas das privadas. Logo, numa interpretação gramatical, podemos inferir que também se enquadram na qualidade de consumidor as pessoas jurídicas de direito público, incluindo as municipais, objeto desse estudo.
De acordo com a referida lei, percebe-se que os entes federativos municipais são consumidores do serviço público de energia assim como qualquer cidadão comum e, sendo este um serviço no qual se autoriza a suspensão pelo inadimplemento, logicamente conclui-se que, em não pagando as suas contas de “luz”, a prestadora está autorizada a suspender o serviço de energia elétrica daqueles, desde que devida e previamente comunicada.
Durante muito tempo o entendimento da jurisprudência pátria era o da impossibilidade de suspensão do serviço em razão de inadimplemento de pessoa jurídica de direito público, no caso, os Municípios. Mas, recentíssima jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem admitindo tal suspensão, desde que haja prévio aviso de corte ao ente municipal. O entendimento acima defendido pode ser atestado nos Recursos Especiais nº. 363943/2003, nº. 628.833/2004, nº. 793422/2005, nº. 838621/2006, nº. 721119/2005, entre outros, onde se percebe claramente que, em havendo inadimplemento, cabe a suspensão do fornecimento de energia elétrica a um prestador de serviço público essencial de interesse coletivo, caso em que se enquadram os Municípios na qualidade de consumidores e prestadores de serviços essenciais.
Numa causa envolvendo a Companhia Paulista Força e Luz e o Município de Santa Lúcia, em São Paulo, a Ministra relatora no STJ, Eliana Calmon, manifestou no seu pronunciamento essa mudança de mentalidade referente à questão, demonstrando uma nova interpretação do Principio da Continuidade, tão usado como justificativa para a não suspensão. Disse ela: “admitir o inadimplemento por período indeterminado e sem a possibilidade de suspensão do serviço é consentir o enriquecimento sem causa de uma das partes (Município), fomentando a inadimplência generalizada, o que compromete o equilíbrio financeiro da relação e a própria continuidade de serviço” (grifo nosso). Como se nota, a não suspensão por inadimplemento poderia estimular este, fazendo com que houvesse o comprometimento da continuidade do serviço, além de se estar aceitando a ilícita prática do enriquecimento sem causa do Município, configurado, nas palavras de José Carlos Carvalho Filho, na desonestidade e na incompetência dos administradores na gestão dos recursos públicos.
Nessa mesma linha estão outros membros do STJ como o Ministro Edson Vidigal e Luiz Fux que seguem o entendimento da Ministra Eliana Calmon, afirmando que “O interesse da coletividade não pode ser protegido estimulando-se a mora, até porque esta poderá comprometer, por via reflexa, de forma mais cruel, toda a coletividade, em sobrevindo má prestação dos serviços de fornecimento de energia, por falta de investimentos, como resultado do não recebimento, pela concessionária, da contra-prestação pecuniária”.Ao firmar o contrato de concessão, a empresa prestadora assume a obrigação de prestar o serviço regular de energia de forma adequada e eficiente e “não gratuita para quem quer que seja”.
7. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA PRESTADORA
O professor Carvalho Filho em seu livro Manual de Direito Administrativo nos contempla com posicionamento sobre o tema, afirmando que “a empresa prestadora de serviço não pode ser levada a arcar com os prejuízos, comprometendo o equilíbrio econômico-financeiro que lhe é assegurado quando se firma um contrato de concessão”, devendo ser autorizada a suspensão do serviço em decorrência do inadimplemento como percebemos na passagem: “é justo reconhecer, contudo, que, pelo menos, já se admitiu (corretamente, aliás) a interrupção do serviço de energia elétrica por inadimplência da empresa prestadora de serviço público essencial de interesse coletivo; tal decisão evidencia a natureza contratual do serviço de energia elétrica”(FILHO, p. 290)
Diante do exposto, percebemos nitidamente a possibilidade de suspensão do fornecimento de energia elétrica prestado por concessionário desde que seja previamente avisado ao Município inadimplente. A preservação do interesse da coletividade está no pagamento pontual da energia gasta pelo Município, sob pena de as administrações futuras ficarem com orçamento comprometido devido a compromissos não honrados. Da mesma forma que o cidadão comum, o Município deve pagar pelo que consome, estando sujeito às mesmas punições que aqueles se não cumprir com o avençado.
8. CONCLUSÃO
Compreendendo a ciência jurídica como um produto da cultura de uma sociedade mutável, verifica-se que há a possibilidade de modificação da interpretação de situações práticas diante da mudança de mentalidade dos juizes e desembargadores. Isso tem sido verificado com certa freqüência nos tribunais superiores sobre os mais diversos temas.
A questão de poder ou não suspender a prestação de energia elétrica de um Município em decorrência do não pagamento dos débitos referentes a tal serviço era anteriormente visto como algo absurdo, sob a justificativa de preservação do interesse coletivo em detrimento do interesse privado (continuidade de serviço público). Atualmente, os tribunais têm se pronunciado no sentido de que "a interrupção do fornecimento de energia elétrica por inadimplemento não configura descontinuidade da prestação do serviço público" (Corte Especial, AgRg na SLS n.º 216/RN, DJU de 10.04.06). Tem se dado uma nova interpretação a esse Principio da Continuidade, pois se o serviço de energia não pode ser interrompido devido a inadimplemento do Município, como a prestadora assegurará o regular fornecimento do serviço se não recebe por isso?
Não somos hipócritas ao ponto de afirmar que a energia elétrica de uma escola ou de um posto de saúde ou hospital possa ser cortada abruptamente pela prestadora. Até porque esses serviços devem ser prioridades de qualquer administrador público, não podendo ele deixar, de maneira alguma, de prestá-los da melhor forma possível. Porém, o entendimento de que esses locais não podem ser prejudicados com o corte de energia não pode servir de justificativa para o não pagamento. Se os maus administradores (os que não honram os compromissos do Município) perceberem que podem deixar de pagar a conta de “luz” que o serviço continuará a ser prestado, isso virará uma prática comum, comprometendo a qualidade e continuidade do serviço de energia e dos demais a ele ligados.
O Município (administrador) não pode obter benefícios através da incompetência dos que não cumprem com seus compromissos, pois isso configuraria enriquecimento ilícito e estimularia o inadimplemento já que regra seria a de: “use, não pague e continue usando assim mesmo”, um absurdo de proporções desastrosas para uma sociedade que tem pretensões de manter a igualdade. Todos (pessoas físicas e jurídicas de direito público ou privadas) consomem, todos pagam; não pagou, corta!
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 17º edição. Rio de Janeiro – RJ: Editora Lúmen Júris, 2007.
MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26º edição. São Paulo – SP: Malheiros Editores, 2001.
FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. 5º edição. São Paulo – SP: Malheiros Editores, 2001.
Consulta de Jurisprudência no endereço eletrônico do Superior Tribunal de Justiça realizada em 15/05/2007, no links: http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=363943&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1, http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=(('RESP'.clap.+ou+'RESP'.clas.)+e+@num='337965')+ou+('RESP'+adj+'337965'.suce.), http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=corte+de+energia+eletrica&&b=ACOR&p=true&t=JURIDICO&l=10&i=64, http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=corte+de+energia+eletrica&&b=ACOR&p=true&t=JURIDICO&l=10&i=79, http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=corte+de+energia+eletrica&&b=ACOR&p=true&t=JURIDICO&l=10&i=87.
Informativo nº. 0215 fornecido através do sistema Push consultado no link: http://www.stj.gov.br/SCON/infojur/doc.jsp.
Artigo intitulado: Municípios vão ao STJ contra corte, publicado em 19 de outubro de 2004 no site: http://www.eletrosul.gov.br/gdi/gdi/cl_pesquisa.php?pg=cl_abre&cd=oknbYY99/Og, consultado em 15/05/2007.