Conselho Nacional de Justiça e teto salarial para a magistratura

Conselho Nacional de Justiça e teto salarial para a magistratura

Análise da Resolução 13/2006, do CNJ, que fixou o teto remuneratório para a magistratura federal e o subteto salarial para os juízes estaduais.

1. Introdução: Avanços e Recuos no Enfrentamento da Matéria

Após determinar que os tribunais de justiça, federais ou estaduais, cumpram o teto e subteto salarial estabelecido para os magistrados e servidores do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ – em sua sessão do último dia 13 de fevereiro, decidiu suspender o julgamento dos processos referentes aos tribunais estaduais que ainda não haviam sido objeto de exame. Com a suspensão, deixou de ser analisada a situação salarial dos tribunais estaduais do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Pará, Rondônia e de São Paulo.

A verdade é que, depois de muita discussão e, também, de muita pressão dos presidentes de tribunais estaduais, o CNJ havia apreciado a situação salarial dos tribunais do Amapá, Acre, Mato Grosso, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba e do Rio Grande do Norte. Chegou à decisão de que, no poder judiciário estadual, o limite salarial é de R$ 22,111,25, equivalente a 90,25% do teto da justiça federal, que é de R$ 24.500,00 e que corresponde aos subsídios pagos aos ministros do Supremo Tribunal Federal - STF. Ou seja, nos Estados - em regra, porque há exceções – nenhum magistrado poderá receber remuneração superior ao referido limite salarial.

A decisão, que pode ser interpretada como um importante compromisso com o princípio da moralidade na administração pública, levou o presidente da Associação Nacional dos Juízes Federal (Ajufe), Walter Nunes, a afirmar que, agora, "estamos no caminho certo. O Judiciário, que era considerado a caixa preta, deu o exemplo".

No entanto, a AMB - Associação dos Magistrados Brasileiros entende inadmissível a fixação de dois limites salariais, um federal, mais elevado e outro, estadual, de valor inferior. Em defesa dos interesses dos magistrados estaduais, ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIn, junto ao STF sobre o polêmico assunto, questionando apenas legitimidade constitucional de um subteto salarial para a magistratura estadual.

O estudo elaborado e divulgado pelo próprio CNJ, em seu sítio eletrônico, mostra que existem 2.978 juízes e funcionários no judiciário brasileiro, recebendo acima do teto salarial. Em média, esses magistrados e funcionários ganham cerca de R$ 3.491,00 acima do limite permitido pela Constituição Federal e pela Resolução 13/2006, do próprio CNJ.

O maior salário apurado é de RS$ 34.800,00, mais de R$ 10 mil acima do teto constitucional e é pago pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, onde existem 1.208 magistrados e funcionários em situação irregular, ou seja, com salários ou subsídios acima do teto remuneratório estadual.

Cabe ressaltar que o CNJ já havia aprovado, em março de 2006, sua Resolução de Nº 13, estabelecendo os referidos limites salariais, mas os tribunais federais inferiores e a maioria dos tribunais estaduais vinham resistindo em cumpri-la. Daí a decisão do dia 31 de janeiro, que determinou aos presidentes dos respetivos tribunais estaduais o enquadramento salarial imediato de seus magistrados e servidores aos limites fixados na lei e na Constituição Federal.


2. Divergência Hermenêutica entre o CNJ e os Tribunais Estaduais de Justiça

Criou-se uma séria divergência entre o entendimento do CNJ e o da maioria dos tribunais estaduais sobre a matéria. Há uma verdadeira fissura hermenêutica, que coloca de um lado o órgão de controle máximo da magistratura brasileira e do outro a grande maioria das cortes estaduais de justiça. Principalmente, por causa do reconhecimento, pelo CNJ, da legitimidade jurídica de um subteto salarial.

Em conseqüência, houve inúmeras manifestações de inconformismo contra a decisão CNJ, por parte de presidentes desses tribunais. Entre eles, está o desembargador Celso Limongi, presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou estar convicto de que “não há irregularidades” no âmbito de seu tribunal (Folha de S. Paulo, 01.02.2007, A13).

Uma semana depois, discursando na sessão de abertura do Ano Judiciário, no Palácio de Justiça de São Paulo, o presidente do TJSP voltou ao tema para condenar o que chamou de “uma blitz contra a magistratura estadual,” para violar direitos adquiridos de uma forma que “não aconteceu nem mesmo no movimento militar de 1964”.

Com indisfarsável ironia, iniciou seu discurso, referindo-se aos “novos arautos da moralidade, que mais parecem os habitantes da caverna de que falava Platão, confundindo com a verdade as sombras projetadas nas paredes”. Numa clara alusão aos membros do CNJ, afirmou em seu discurso que esses novos arautos acreditam possuir “o apanágio das virtudes e a onisciência de tudo que deva ser feito para o Judiciário”. Por isso, pretendem “reduzir ou desqualificar a importância do Judiciário estadual”.

Por sua vez, o juiz Rodrigo Colaço, presidente da AMB ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade em favor dos magistrados estaduais, contra a decisão do CNJ. Defende a fixação de um limite salarial no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. Mas, tem posição contrária à norma que estabelece dois limites remuneratórios – um para o judiciário da União e outro menor para o judiciário dos Estados – por considerá-la discriminatória e contrária ao principio federativo, que assegura autonomia políticoadministrativa e financeira aos Estados-membros.


3. Posição do CNJ e Jurisprudência do STF

Porém, é preciso ressaltar que o entendimento do CNJ está fundamentado em decisão do STF. Julgando pretensão formulada por ex-ministros do próprio Supremo, ficou decidido que, no tocante à magistratura, a extinção da vantagem do Adicional por Tempo de Serviço – ATS – decorrente da instituição do subsídio em ‘parcela única’, a nenhum magistrado pode ter acarretado prejuízo financeiro indevido” (MS 24.875/DF, j. 11.05.2006, DJ 06.10.2006, p. 033).

Desta forma, no tocante ao adicional e outras vantagens remuneratórias, o entendimento do STF é de que tais acréscimos remuneratórios encontram-se incluídos no valor do subsídio e, por isso, não podem extrapolar os valores fixados para o teto salarial federal aplicável à magistratura brasileira.

No entanto, no mesmo acórdão, o STF assegurou aos impetrantes – seus ex-ministros – o direito à percepção do valor da gratificação de 20% sobre os proventos de aposentadoria acima do referido teto. Segundo consta da ementa, ficou estabelecido que “sob o pálio da garantia da irredutibilidade de vencimentos, os impetrantes têm direito a continuar recebendo o acréscimo de 20% sobre os proventos”, até que tal valor excedente venha a ser completamente incorporado ao valor do futuro subsídio majorado e fixado em lei para ministro do STF.

Portanto, como regra, a posição do Supremo Tribunal Federal é de que, com a instituição do subsídio como forma de remuneração única para os magistrados brasileiros, as gratificações, verbas de representação e outras vantagens de caráter pessoal, foram absorvidas por esse valor único, que tem por limite remuneratório máximo, o valor do subsídio de ministro do STF.

Mas, acabou admitindo uma exceção para garantir a seus ex-ministros a percepção de vantagem pessoal da gratificação por aposentadoria, cujo valor pode extrapolar o teto remuneratório.

Com a exceção admitida, o STF criou um precedente que pode se transformar num agente complicador, em termos de hermenêutica acerca do verdadeiro sentido do direito contido no art. 37, inciso XI, da CFRB, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional 41/2003. Na verdade, ou esta norma constitucional tem validade jurídica e se aplica erga omnes ou continuaremos com a indesejável indefinição em termos de limite salarial máximo na administração pública brasileira.

E essa situação de assimetria salarial, assegurada em nome de princípios como o da irredutibilidade de vencimentos, do direito adquirido e da coisa julgada, cria distorções remuneratórias que atentam contra princípios constitucionais de maior relevância políticojurídica como o da moralidade, da igualdade (e a sua interface da impessoalidade) e o da justiça social.

Contraria, também, o objetivo republicano de se construir uma sociedade livre, justa e solidária, que possa “promover o bem de todos” (art. 3º, incisos I e IV, da CFRB).


4. Legitimidade ÉticoJurídica da Norma Constitucional sobre Teto Salarial

Na verdade, se o novo comando constitucional em exame, apesar de sua origem derivada, tem validade e legitimidade jurídica por atender ao interesse republicano e democrático de garantir uma maior igualdade e justiça salarial na administração pública brasileira, cremos que deve ser o mesmo cumprido sem exceções.

Neste sentido, cremos que o texto do inciso XI, do art. 37, é expresso e bastante claro ao disciplinar a questão do teto salarial, no âmbito dos três poderes da administração pública brasileira: nenhum vencimento ou remuneração mensal de qualquer espécie poderá exceder o valor do subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. É, também, explícito ao disciplinar o subteto remuneratório para os Estados-membros e os municípios.

Assim sendo, estabelecido como foi, por meio da Lei Nº 11.143/2006, o valor do subsídio dos ministros do STF, em R$ 24.500,00, a nosso ver, a questão do teto salarial está solucionada, cabendo aos órgãos dos três poderes da República, tão somente, cumprir o mandamento constitucional.


5. Direito Adquirido, Irredutibilidade de Vencimentos em Face do Princípio Republicano da Igualdade e da Justiça Social

No caso em exame, a teoria do direito adquirido em face de preceito constitucional posterior precisa passar por um processo hermenêutico compatível com o sistema jurídico do Estado de Direito e da Democrático Social contemporâneos. Isto significa o compromisso do intérprete com o exame da legitimidade éticopolítica e o caráter de efetiva necessidade do direito individualmente usufruído, em face de uma nova situação jurídica criada pela norma constitucional, que por sua natureza tem eficácia ex tunc e erga omnes.

No campo da validade formal, parece-nos inadmissível garantir direito anterior individual contra expressa disposição constitucional. É verdade que estas vantagens salariais foram conquistadas em conformidade com a lei positiva então vigente, mas não podem prevalecer em face de norma constitucional, mesmo que posterior, expressamente em contrário. Principalmente, se tais vantagens representam situações jurídicas de caráter pessoal e se foram criadas por leis ou reconhecidas judicialmente para privilegiar seus beneficiários com acréscimos salariais que não foram concedidos aos demais servidores da República.

A nosso ver, e isto no campo da validade meramente formal, a tese do direito adquirido, do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada somente pode prevalecer em face de norma constitucional expressamente em contrário, se respaldada, também, por sua validade material, isto é, pela efetiva legitimidade do direito individual, após submetido ao crivo de sua interpretação conforme a própria Constituição.

Já na esfera de maior relevância e, por isso mais complexa, da validade material, cremos que a manutenção de direito individual contra expressa disposição de mandamento constitucional posterior somente poderá ser admitida em nome de princípios como o da igualdade ou da dignidade da pessoa humana, quando absolutamente indispensável à preservação de um bem jurídico fundamental, como a vida, a saúde, a habitação. Somente assim é que o Direito estará cumprindo sua função social e poderá ser instrumento de realização de uma sociedade mais igualitária e de verdadeiro bem estar social.

No caso do teto e subteto salarial em exame, é preciso considerar que a Constituição Federal assegura ao magistrado brasileiro, bem como a todo o servidor público, o direito individual à irredutibilidade de vencimentos.

Porém, não há garantia expressa em relação à eventuais vantagens remuneratórias, especialmente, aquelas de caráter pessoal. Muitos desses acréscimos aos vencimentos, mesmo que tenham sido obtidos com base em leis ou em decisões judiciais, sempre tiveram um caráter de excepcionalidade em relação ao regime salarial geral, vigente na administração pública brasileira. Estão, por isso mesmo, muito próximos de verdadeiros privilégios salariais incompatíveis com o princípio republicano, que pressupõe igualdade de direitos entre os cidadãos.

Assim sendo, o sentido éticopolítico e jurídico das normas constitucionais garantidoras do direito adquirido, do ato jurídico perfeito, da coisa julgada e da irredutibilidade de vencimentos precisa ser submetido a um processo hermenêutico que leve em consideração, também, outros princípios constitucionais, de igual ou maior relevância, como o da igualdade, o da moralidade e o da justiça social.


Considerações Finais: O Inafastável Compromisso com a Ética, a Probidade e a Justiça Social na Administração Pública Brasileira

Por isso, não podemos concordar com o teor da declaração da presidente do CNJ, e do Supremo Tribunal Federal - ministra Ellen Gracie – quando afirmou que os números desmistificam a "lenda urbana" que acreditava em supersalários no Poder Judiciário. Logo após o término da reunião do dia 13 de fevereiro, os demais membros do CNJ também pareciam comemorar o que consideravam “um pequeno número de magistrados e servidores com remuneração acima do teto salarial”.

Não cremos que possa haver motivo para comemoração. Ao contrário, é triste ver que, no âmbito do Poder Judiciário, convive-se ainda com privilégios e irregularidades salariais. E são quase 3.000 magistrados percebendo remuneração, que contraria disposição expressa da Resolução 13/06, órgão máximo em matéria de fiscalização e de ação moralizadora do Poder Judiciário brasileiro. E o desalento se torna maior quando se sabe que tudo isto vem sendo feito com afronta à lei e a mandamento da Constituição Federal.

É claro que os poderes Executivo e o Legislativo precisam, também, atuar com transparência e estabelecer o teto salarial de seus servidores, aí incluídos os parlamentares, com base no que foi estabelecido no âmbito do Judiciário.

Se isto vier a acontecer, então, sim, podemos realmente acreditar que estaremos no caminho certo, em termos de ética, de probidade e de justiça social na administração pública brasileira, um país com 12 milhões de pobres aposentados e pensionistas do INSS, recebendo o salário de R$ 350,00.

Sobre o(a) autor(a)
João José Leal
Doutor-Livre Docente em Direito Penal - UGF/FURB. Professor do Curso de PósGraduação em Ciência Jurídica - CPCJ/UNIVALI. Ex-Procurador Geral de Justiça de SC e ex-Diretor do CCJ/FURB. Associado do IBCCrim e da AIDP.
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