Algumas reflexões sobre a questão da culpa imprópria e sua aplicabilidade em face da tentativa (conatus)

Algumas reflexões sobre a questão da culpa imprópria e sua aplicabilidade em face da tentativa (conatus)

Aborda o instituto da culpa imprópria, pouco difundido no direito penal e de bastante complexidade, em fronte ao Conatus, em regra não comporta a culpa como exceção de sua essência, mas há divergência.

Este texto tem por meta desenvolver uma reflexão sobre a questão da culpa imprópria, instituto pouco difundido no direito penal e de bastante complexidade, em face do instituto da tentativa (conatus), este último como até pouco tempo atrás era unânime em não refletir a culpa como passível de ser aceita nos crimes tentados. Almeja-se por meio deste artigo aprofundar nesta relação conflitante, buscando, é claro, expor os liames positivos e negativos existentes entre ambos.

Este breve esboço se propõe a analisar tal questão de uma forma bem sintática e objetiva. Vale ressaltar que por mais que tentemos esgotar este tema, este tão breve não será esgotado.

Como será visto a seguir, o título acima proposto, para uma maior compreensão, será dividido em quatro tópicos: I) peculiaridades da culpa imprópria; II) a incidência do erro de tipo em face da culpa imprópria; III) tentativa X culpa: as duas correntes divergentes; IV) considerações finais.


I) Peculiaridades da Culpa Imprópria

Culpa imprópria, também conhecida como culpa por assimilação, por equiparação ou por extensão, é aquela em que o agente, incidindo sobre erro de tipo inescusável ou vencível, supõe estar diante de uma causa de exclusão de ilicitude, pratica ato (ação ou omissão), visando à proteção de seu bem, ou seja, causa que justificaria, licitamente, um fato típico. Um exemplo utilizado pelo mestre Damásio figura de forma apropriada para ilustrar este conceito: “(...) suponha-se que o sujeito seria vítima de crime de furto em sua residência em dias seguidos. Em determinada noite, arma-se com um revólver e se posta de atalaia, à espera do ladrão. Vendo penetrar um vulto em seu jardim, levianamente (imprudentemente e negligentemente) supõe tratar de um ladrão. Acreditando estar agindo em legítima defesa de sua propriedade, atira na direção do vulto, matando a vítima. Prova-se, posteriormente, que não se tratava do ladrão contumaz, mas sim de terceiro inocente”.

Na verdade, esta espécie de culpa (imprópria) é muito complexa e diferenciada das demais, enquanto a primeira se inicia com uma conduta voluntária, objetivando um resultado naturalístico, as outras se iniciam com uma conduta voluntária, porém sem almejarem o resultado. Estão previstas nos arts. 20, §1°, 2° parte, e 23, parágrafo único do Código Penal, as hipóteses em que é possível a aplicação deste instituto, culpa imprópria.

Ora, vê-se, claramente, um desconexo explícito entre ambas as espécies, por isso discute-se tanto na doutrina este tipo de “culpa”.

Muito se assemelha os elementos da culpa, ora em análise, com os elementos do “dolo”. No dolo a trajetória da conduta até ao alcance do resultado querido é idêntico à trajetória da culpa imprópria, exceto quanto ao estar acobertado por erro de tipo, característica peculiar da culpa por assimilação.

Vale destacar a análise do mestre Damásio em dizer que “(...) na culpa imprópria existe um crime doloso e que o legislador aplica a pena do crime culposo”.

Para Fernando Capez, “(...) na conduta inicial da formação do erro, configura-se culpa; a partir daí, no entanto, toda a ação é considerada dolosa. Logo, há um pouco de dolo e um pouco de culpa na atuação, devendo-se aplicar pena própria para o crime culposo”.

Diante deste tópico, devemos concluir que realmente a culpa imprópria é fundada em conduta que se inicia viciada por erro de tipo essencial e que a partir daí figura-se o dolo. Ressalta-se, novamente, que este dolo continua sendo acobertado por erro e, dessa forma, causando uma ilusão sobre toda a realidade do fato iminente.


II) A incidência do Erro de Tipo em face da Culpa Imprópria

Como foi dito acima, a espécie de culpa imprópria é dissimulada pelo erro de tipo essencial da forma inescusável ou vencível. Dessa maneira, alude nosso Código Penal que “o erro sobre os elementos constitutivos do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei” (art. 20, CP).

Em observância a tal preceito disposto nesta vertical, procurou o legislador ordinário equiparar o crime doloso ao crime culposo, quando no primeiro sobreviver o erro de tipo essencial vencível, quando acobertado por alguma discriminante putativa ou pelo excesso nas causas justificativas. Deverá levar em conta, também, se houve ou não no momento em que se viciou o ato pelo erro, alguma das modalidades de culpa que estão positivadas no art. 18, 11 do Código Penal (imprudência, negligência ou imperícia).

Assim sendo, com fundamento nas sustentações que foram apresentadas neste subitem, podemos dizer que a culpa imprópria sem a incidência do erro de tipo da forma inescusável ou vencível é, simplesmente, o dolo. Portanto, segue o erro de tipo como categoria essencial para a existência do instituto da culpa, ora em estudo.

Esta vertente é compartilhada por DAMÁSIO, FENANDO CAPEZ e JULIO FABBRINI MIRABETE, que argumentam esta sistemática sem contradições, seguindo, em regra, o mesmo preceito.


III) Tentativa X Culpa (imprópria): as duas correntes divergentes

“Diz-se crime tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias a vontade do autor” (art. 14, II do CP). Pois bem, esta é a definição de tentativa que o legislador encontrou e positivou em nosso ordenamento jurídico penal. O nosso Código Penal Brasileiro adotou a teoria objetiva (formal) e exige que o autor tenha realizado de maneira efetiva uma parte da própria conduta típica, penetrando, assim, no núcleo do tipo. A tentativa opera quando o agente delituoso começa a execução de seu escopo criminoso e é impedido de chegar ao resultado querido, por circunstâncias alheias a sua vontade.

Uma situação muito importante a ser refletida e que será abaixo analisada, é se a tentativa (conatus) permite ou não sua aplicação nos crimes culposos. A regra diz que não. Mas, boa parte da doutrina encontra fundamento plausível de ser abordado por este artigo.


III.a) Da impossibilidade da tentativa em crime culposo: Autores como DAMÁSIO, PAULO JOSÉ DA COSTA JR e NEY MOURA TELES, sustentam a tese de que não há possibilidade de haver tentativa de crime culposo. Seguem o entendimento de que a tentativa sem a intenção criminosa, não se configura. Tendo como pressuposto essencial do conatus o dolo e sem ele é impossível ocorrer à tentativa.

O que na verdade ocorre é que estes autores não sustentam a tese que figura a existência da culpa imprópria, ou seja, não a reconhecem como sendo uma exceção da regra. Acreditam que a “culpa assimilada”, na verdade, não é uma espécie tradicional de culpa, mas, sim, um dolo disfarçado, ao qual, por motivos de política criminal, o legislador resolveu puni-los como crimes culposos.

Assim, aquele exemplo apresentado outrora, caso a vítima viesse sobreviver, seria o autor indiciado por tentativa de homicídio doloso, aplicando-se a pena de um homicídio culposo tentado. Essa é a solução encontrada pela corrente que apóia a não tese de tentativa de crime culposo. É respeitável estas orientações, mas o que este artigo vem prestigiar, na realidade, é a outra corrente de entendimento, a que aceita como sendo a única exceção da regra, no que concerne a tentativa (inadmissibilidade da tentativa em crimes culposos), a culpa imprópria.


III.b) Da possibilidade da tentativa em crime culposo: neste seguimento, cito autores de grande prestígio, também, como FERNADO CAPEZ, EDGARD MAGALHÃES NORONHA, JULIO FABBRINI MIRABETE e ANÍBAL BRUNO, que compõe e sustentam este outro lado divergente.

Como vimos, logo acima, a “culpa equiparada” é uma ação que visa um resultado naturalístico, lubridiada por um erro de tipo essencial inescusável, em que o agente supõe estar diante de uma exclusão de ilicitude. Neste caso, só sobrevive à culpa se o agente estiver incidindo sobre erro, caso o contrário haveria dolo e não culpa. Portando, a culpa se configura logo no início, a partir daí, a ação é doloso, mas refletida sobre erro, que exclui o dolo e resiste à culpa, em face do aspecto normativo do caput do art. 20 do CP.

Assim é o caso do “indivíduo, que, caminhando à noite em estrada deserta, vê um vulto surgir à sua frente e sem mais razão, julgando-se estar em perigo de vida e, portanto em legítima defesa, dispara todo o seu revolver sobre ele, mas apenas o fere levemente”. (Bruno, Aníbal, 1978).

A questão é: é possível vislumbrar, neste exemplo, a presença da culpa imprópria? O agente foi impedido por circunstancias alheias a sua vontade de chegar ao resultado querido?

_Quanto à primeira questão, diante de todo o enredo apresentado neste artigo, pode-se, claramente, apreciar a presença do instituto da culpa imprópria, pois o agente estava recaído sobre erro, pensando estar agindo em legítima defesa (putativa), quando na verdade estava atacando um inocente. Quanto à segunda questão, é obvio que o aninus do autor do delito era de matar e não de lesionar. Sendo assim, podemos dizer, com toda a convicção, que o agente, realmente, foi impedido por circunstâncias alheias a sua vontade de produzir o resultado traçado, logo, aparecendo à figura do conatus.

Juntemos, então, as duas respostas acima e chegarem à justificação que esta corrente doutrinária defende. No exemplo, ora apresentado, houve culpa imprópria e também o agente foi impedido por circunstâncias alheias a sua vontade de chegar ao resultado objetivado, logo, houve tentativa de homicídio. Assim sendo, podemos dizer que houve tentativa de homicídio culposo, em decorrência disto quebra-se o paradigma de que não existe possibilidade de haver crime culposo tentado.


IV) Conclusão

Podemos perceber por meio de todas as informações que constituíram peça para a formação e análise do tema proposto, que a questão em comento não encerra pacificidade, alcançando tal complexidade que não se encontra unânime na doutrina.

Entendo que tanto as congruências quanto as divergências apresentadas neste texto são bem argumentadas. Todas chegam muito perto de uma boa razão.

A meu ver, quanto à teoria da culpa imprópria, sigo o referencial dos adeptos a este seguimento, que outrora foi discutido. Com base em todas estas sustentações, fixo-me ao lado daqueles que aceitam a culpa equiparada como uma das espécies de culpa.

Dessa forma, entendo possível haver uma exceção quanto à admissibilidade de poder haver um crime culposo tentado, exceção da tentativa em comportar a culpa.

Pois bem, como foi dito acima, a questão em que estamos discutindo é um assunto que não encontra uma exata definição na doutrina, devido a sua complexidade. Portanto, o debate quanto a este título sempre estará aberto!


Referências Bibliográficas:

BRUNO, Aníbal. Crimes Contra a Pessoa. 4° Edição. Rio de Janeiro: Forense, 1978, pp 128-129.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – parte geral -, Volume I. 6° Edição. São Paulo: Saraiva, 2003, pp 191-200; 223-228.

COSTA JR., Paulo José da. Curso de Direito Penal – parte Geral -, Volume I. 3° Edição. São Paulo: Saraiva, 1995, pp 73-76; 87-88.

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – parte geral -, Volume I. 27° Edição. São Paulo: Saraiva, 2003, pp 297-306; 335-346.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – parte geral -, Volume I. 21° Edição. São Paulo: Atlas, 2004, pp 145-153; 155-163.

NORONHA, Magalhães E. Direito Penal, Volume I. 36° Edição. São Paulo: Saraiva, 2001, pp 124-130; 140-144.

TELES, Ney Moura. Direito Penal, Volume I. 2° Edição. São Paulo: Altas, 1998, pp 165-174; 190-192.

Sobre o(a) autor(a)
Flávio Freitas Pereira Mendes
Advogado e orientador do Núcleo de Prática Jurídica do Centro Universitário UNIEURO (DF).
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