Conflito aparente de atribuições entre autoridades policiais das polícias militares e polícias civis na repressão imediata

Conflito aparente de atribuições entre autoridades policiais das polícias militares e polícias civis na repressão imediata

Dedica-se a dirimir dúvidas porventura existentes entre os operadores do poder de polícia de preservação da ordem pública no tocante às atribuições das autoridades policiais da polícia ostensiva e da polícia judiciária estaduais.

“A polícia ostensiva, de índole essencialmente preventiva, pressupõe a atuação de ofício na repressão imediata, segundo comandos da legislação processual penal”.

Não é de hoje que autoridades policiais estaduais das polícias militares e polícias civis se confrontam no campo operacional, ora por entenderem que a atribuição de uma delas foi invadida, ora por se acusarem reciprocamente de omissão no exercício dos deveres funcionais.

O tema abordado é quartel de constantes controvérsias, pois a atuação repressiva imediata das polícias estaduais ocorre em uma certa “zona cinzenta” das atribuições policiais dessas autoridades.

Observações profissionais de cunho pessoal, associadas ao resultado de pesquisa doutrinária sobre a matéria, levou-nos às conclusões que passamos a expor.

A polícia, como conceitua GUIDO ZANOBINI, é:

"a atividade da administração pública dirigida a concretizar, na esfera administrativa, independentemente da sanção penal, as limitações que são impostas pela lei à liberdade dos particulares ao interesse da conservação da ordem, da segurança geral, da paz social e de qualquer outro bem tutelado pelos dispositivos penais (Corso di diritto amministrativo. Bolonha: Il Molino, 1950, v. 5, p. 17)."

É usual a classificação da polícia em dois grandes ramos: polícia administrativa e polícia judiciária, conforme salienta ANDRÉ LAUBADERÈ (Traité de droit administratif. ed. Paris: LGDJ, 1984. V. 1, p. 630). A polícia administrativa é também chamada de polícia preventiva, e sua função consiste, essencialmente, no conjunto de intervenções da administração, conducentes a impor à livre ação dos particulares a disciplina exigida pela vida em sociedade.

Esta classificação foi adotada pela Constituição Federal de 1988, ao prever no art. 144, que a segurança pública, dever do Estado, é exercida para a preservação da ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio, por meio da polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícias militares e corpos de bombeiros militares.

O art. 144, § 7º, determina que a lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades. Como salientado por TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR., "faz mister uma política nacional de segurança pública, para além da transitoriedade dos governos e arredada de toda instrumentalização clientelística" (Interpretação e estudos da Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1990, p. 102).

Quanto às polícias dos Estados e do Distrito Federal, são elas instituídas conforme as disposições dos §§ 4º e 5º, do art. 144, da Constituição da República.

As polícias civis, que deverão ser dirigidas por delegados de polícia de carreira, são incumbidas, ressalvada a competência da União, das funções específicas de polícia judiciária e apuração de infrações penais, exceto infrações militares.

As polícias militares têm atribuição de polícia ostensiva, para a preservação da ordem pública.

No Estado Moderno o ciclo da persecução criminal e o ciclo de polícia estão organizados de forma integrada e sistêmica.

ÁLVARO LAZZARINI, aduz que:

“Como regra, o modelo brasileiro de ciclo de polícia, fase onde ocorre a quase totalidade dos atos de polícia (por vezes há resquícios na fase processual), divide-se em três segmentos ou fases: a) situação de ordem pública normal; b) momento da quebra da ordem pública e sua restauração; c) fase investigatória”.

Por sua vez, o ciclo da persecução criminal, composto por quatro segmentos, começa na segunda fase do ciclo de polícia, havendo então a intersecção entre eles, dessa forma: a) momento da quebra da ordem pública, ocorrendo ilícito penal; b) fase investigatória; c) fase processual; d) fase das penas. (Estudos de direito administrativo. São Paulo: ed. RT, 2ª ed., 1999, p. 93)."

Doutrinariamente, a linha de diferenciação entre a polícia administrativa (geral ou especial) e a polícia judiciária está na ocorrência ou não de ilícito penal. Neste caso o policial civil ou militar rege-se pelas normas do direito processual penal, estando suas ações sob a égide do Poder Judiciário, destinatário final da ocorrência, além do controle externo pelo “Parquet”, uma inovação da nova Carta.

Esta fase tem dois momentos importantes: a eclosão e a duração. A primeira é o instante em que se deflagra a anormalidade, havendo ou não ilícito penal e a segunda é o período em que persiste a alteração da ordem, enquanto não restabelecida. Havendo ilícito penal, é o período de flagrância que se segue (como na maioria dos casos correntes). A atitude policial é de repressão imediata. As medidas tomadas pela polícia são de ofício, pois independem de autorização superior e visam, em qualquer hipótese, restabelecer a ordem pública, sendo utilizadas, sempre, ações de contenção.

A fase seguinte é a investigatória propriamente dita, apresentando as seguintes características: a) inicia-se com a lavratura do auto de prisão em flagrante ou a instauração de inquérito policial, seja comum ou militar e, como na fase anterior, está sujeita às correições do Poder Judiciário e ao controle externo do Ministério Público; b) nela é dada continuidade aos trabalhos da fase anterior, coletando-se outras provas ou ainda ampliando e aperfeiçoando as iniciais, dando prosseguimento às medidas repressivas, agora mediatas, com o fito de restaurar também a ordem jurídica, isso mediante intensas investigações, feitas de forma discreta para garantir seu êxito; c) a atividade investigatória continua tendo valor informativo e caracteriza-se por ser inquisitória, já que não contempla o contraditório.

Como afirmado, a linha de diferenciação entre o que seja polícia administrativa e polícia judiciária é bem precisa, porque sempre será a ocorrência ou não de um ilícito penal, com o que concorda MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO (Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 1990, pp. 89-90).

Mas, essa divisa é doutrinária, pois, na prática é impossível de ser efetivada, eis que ela está incluída na segunda fase do ciclo de polícia, o qual só é divisível em segmentos, sendo inviável seccionar atividades dentro de um mesmo segmento, conforme se demonstrará.

O órgão policial que está exercendo atividade de polícia preventiva – polícia administrativa – diante do ilícito penal que não conseguiu evitar passa, automática e imediatamente, ao exercício da atividade de polícia repressiva – polícia judiciária. Seria inadmissível que ele assim não pudesse proceder. Agindo dessa maneira, o órgão estará restaurando a ordem pública naquele momento e local, e mais, fazendo atuar as normas do direito processual penal, terá em vista o sucesso da persecução criminal, pois não podem ser perdidos os elementos indispensáveis à realização da Justiça Criminal. Esta assertiva é igualmente válida se a atividade de polícia repressiva – polícia judiciária – vier a ser deflagrada pela polícia civil, quando diante do ilícito penal.

No dizer de JOSÉ LOPES ZARZUELA, a divisão da polícia em preventiva e repressiva está apenas "na maneira de agir da autoridade no exercício do poder de polícia" (Enciclopédia Saraiva de Direito. Saraiva, p. 173). Assim, afirma-se que o mais correto não é qualificar a atividade policial em preventiva ou repressiva, pelo órgão público que a exerce, mas sim, pela atividade de polícia em si mesma desenvolvida, seja por policiais militares ou por policiais civis. O que há, na verdade, é uma predominância de atividades preventivas no atuar rotineiro das polícias militares, que, ao realizar atividades de repressão imediata, cumpre seu mister constitucional de preservar a ordem pública. Isso não significa invadir a atribuição de outro órgão policial, incumbido da repressão mediata que, segundo a Constituição, constitui atuação primordial da polícia federal e das polícias civis.

Da mesma forma entende ANDRÉ DE LAUBADÈRE ao analisar a diferença entre as atividades de polícia administrativa e de polícia judiciária, dizendo que "na realidade das coisas a distinção não é simples, porque, a operação em causa guarda a sua própria natureza, independentemente de seu autor e também por certos funcionários e autoridades possuírem dupla qualidade de agirem tanto na qualidade de autoridade administrativa, como ainda na qualidade de oficial de polícia judiciária" (Manual de Droit Administratif/Spécial. Presses Universitaires de France, Paris, 1977, pp. 86-87).

Bem mais incisivo foi HELY LOPES MEIRELLES ao afirmar que "pode a Polícia Militar desempenhar função de polícia judiciária, tal como na perseguição e detenção de criminosos, apresentando-os à Polícia Civil para o devido inquérito a ser remetido, oportunamente, à Justiça Criminal. Nessas missões a Polícia Militar pratica atos discricionários, de execução imediata" ("Polícia de Manutenção da Ordem Pública e suas Atribuições", in Direito Administrativo da Ordem Pública. Rio: Forense, 2ª ed., 1987, pp. 154-155). E nem poderia ser diferente, pois, ao praticá-los o faz munido legalmente de autoridade policial e no exercício do poder de polícia, fazendo funcionar a auto-executoriedade, a coercibilidade e a discricionariedade, seus atributos.

Com sua peculiar sabedoria, JOSÉ CRETELLA JR. tratando das polícias militares alerta para a questão, observando que: "No Brasil, a distinção da polícia judiciária e administrativa, de procedência francesa e universalmente aceita, menos pelos povos influenciados pelo direito inglês (Grã-Bretanha e Estados Unidos) não tem integral aplicação, porque a nossa Polícia é mista, cabendo ao mesmo órgão, como dissemos, atividades preventivas e repressivas" ("Polícia Militar e Poder de Polícia no Direito Brasileiro", in Direito Administrativo da Ordem Pública. Rio: Forense, 2ª ed., 1987, p. 173).

A legislação infraconstitucional é muito clara a respeito do assunto, pois, detalhando os dispositivos constitucionais, ao tratar da atribuição das polícias militares conferiu-lhes atividades preventivas e repressivas (Decreto-lei nº 667/69, art. 3º, b e c). Nesse ponto, convém esclarecer que nosso entendimento quanto à repressão citada, é que ela está limitada àquela imediata – segunda fase do ciclo de polícia – pois a mediata – terceira fase – cabe inegavelmente às polícias civis.

Deve-se ainda entender que a Constituição Federal de 1988 não confiou a nenhuma das polícias estaduais o ciclo completo, até porque se assim o fizesse prejudicaria a possibilidade de existência da outra. A própria polícia federal só detém o ciclo completo quando se trata do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, ainda assim, sem exclusividade, pois sua competência é concorrente com a de outros órgãos públicos.

Mas não é só a polícia ostensiva que realiza funções de polícia judiciária. O próprio Poder Judiciário, quando houver indício de prática de crime por parte de magistrado, é que se encarrega das investigações, isso através do Tribunal ou Órgão Especial competente, sendo vedado à autoridade policial civil ou militar fazê-lo.

Também ao Poder Legislativo e ao Ministério Público, da União, dos Estados e do Distrito Federal, incumbe as atividades de polícia judiciária sobre seus membros, havendo ainda a polícia judiciária militar, igualmente conferida à esfera federal, aos estados-membros e ao Distrito Federal, regulada em dispositivos legais como o Código de Processo Penal Militar e leis esparsas.

Tudo isso demonstra a impossibilidade de prever-se em norma legal a exclusividade nas funções de polícia judiciária destinadas constitucionalmente à polícia federal e às polícias civis, embora como afirmamos anteriormente elas devam ser entendidas de forma ampla, mas não exclusiva, mormente no que tange a atuação repressiva imediata.

Somos que a melhor solução no campo prático é que a polícia ostensiva, ao tomar contato inicial com o evento criminal, determine ela – a Polícia Militar – as ações de repressão imediata e de restauração da ordem pública quebrada, comunicando após o fato à Polícia Civil para as ações de repressão mediata no segmento investigatório, conforme exposto. Mas, se eventualmente ocorrer que policiais civis sejam os primeiros a tomar contato com a prática do ilícito penal – e não como de regra ocorre, policiais militares no exercício das atividades preventivas – aí deverá prevalecer o bom-senso de se conferir integralmente a tarefa aos agentes policiais da Polícia Civil, até conclusão final das investigações.

Nada obsta, no entanto, que o Secretário de Segurança Pública determine, caso a caso, outra medida, pois, como Autoridade Superior que é, poderá verificar pela conveniência e oportunidade de ser transferida a responsabilidade da ocorrência de uma para outra corporação, ou até mesmo determinar que uma delas, que não esteja diretamente atuando no caso, apóie a outra com recursos materiais e/ou humanos.

É o interesse público que deve prevalecer e não a rivalidade ou divergências de cunho meramente corporativistas. Não nos olvidemos de que é e sempre será o cidadão o destinatário final desse serviço público que, a cada dia, torna-se mais essencial.

Sobre o(a) autor(a)
Ary Lage
Funcionário Público
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