O transporte ferroviário de coisas e a responsabilidades civil no novo CCB
As inovações do novo Código Civil incluíram o contrato de transporte. Nada muito novo, mas normatizou regras há mais de cem anos utilizadas. Somado isso à Responsabilidade Civil, alcançar-se-á a desejável harmonização nos procedimentos jurisdicionais.
Resumo
As inovações do novo Código Civil incluíram o contrato de transporte. Nada muito novo, mas normatizou regras há mais de cem anos utilizadas. Somado isso à Responsabilidade Civil, alcançar-se-á a desejável harmonização nos procedimentos jurisdicionais.
Introdução
O transporte de coisas tem sua história ligada à história da humanidade. Desde que se tem notícia da existência do homem, o transporte de coisas está ao seu lado. Da alimentação aos instrumentos de defesa, da terra à pedra, da caça ao abrigo, o homem foi inventando e encontrando soluções para levar suas coisas de um lado a outro, sobrevivendo, se desenvolvendo e se perpetuando ao longo dos tempos.
Desde a pré-história o transporte foi indispensável para a evolução do mundo. Com o nascimento do comércio, mais importância ele ganhou, ainda que na sua forma mais rudimentar, o escambo. No dizer de Marco Antonio Negrão Martorelli “o transporte de coisas tem sua origem perdida na obscuridade da pré-história, como se deduz do encontro de instrumentos de sílex datado da idade da pedra lascada, em sítio distantes dezenas, e até centenas, de quilômetros das jazidas de que a pedra fora extraída.” (Comentários sobre o contrato de coisas no novo Código Civil, Revista do Advogado, 77:444-45)
Sílex é a chamada pedra pederneira, ou ainda, pedra-do-fogo. Essa pedra, ao ser atingida por outro material mais rígido do que ela produzia faíscas, com o que o homem dava então início ao fogo. Não é sem motivo que nas histórias infantis, quadrinhos, filmes e desenhos animados, até hoje se utiliza a imagem do homem primitivo obtendo fogo através de batidas na pedra. Com o encontro de instrumentos construídos com pedra pederneira a centenas ou quilômetros de distância das jazidas de onde se extraíam essa pedra, fica comprovada a existência de formas de transportar coisas já naquela distante era. O homem encontrou soluções de levar a pedra-do-fogo até onde se abrigava, se alimentava, se protegia ou se preparava para as batalhas de então. O fato é que desde a pré-história o ser humano transporta coisas, e isso foi fundamental para a evolução do mundo.
Assim, a história do mundo se confunde com a história do transporte de coisas.
O transporte de coisas na história recente do Brasil
No Brasil, guardadas as distâncias históricas, o desenvolvimento social, político e econômico do país também encontra no transporte, sua correspondência. Dentre os vários meios de transporte de coisas, as etapas históricas do crescimento do país se relacionam inevitavelmente com alguma das fases de desenvolvimento de um ou de outro meio de transporte.
Nos dias atuais, a principal matriz interna de transporte de carga é a terrestre, através de rodovias que cruzam o país de ponta a ponta, enquanto no âmbito do comércio exterior o principal vetor de escoamento de produtos nacionais se dá através do transporte marítimo.
A evolução dos negócios e o crescimento de várias regiões geográficas verificada nas últimas décadas levaram, forçosamente, ao desenvolvimento dos meios de transportes e, principalmente, à sua integração intermodal. Desde os anos 50, notadamente sob a Presidência de Juscelino Kubistchek, na segunda metade daquela década, houve eloqüente política de desenvolvimento e de integração nacional através dos meios de transporte. Como a indústria automotiva foi um dos vetores de desenvolvimento eleito pelo então Presidente da República, nada mais natural que fosse posto também em curso um amplo plano estratégico de construção de malha viária que interligasse o país, de forma a permitir, especialmente, que mercadorias e produtos industrializados percorressem as mais variadas regiões geográficas.
Não obstante tal opção desenvolvimentista, o fato é que desde remotos tempos o Brasil adotou o transporte ferroviário como uma das principais estratégias de comunicação entre as localidades. Desse modo, a área rural se interligava ao mar utilizando a ferrovia para escoar sua produção para o mercado externo, e para que os produtos vindos de fora chegassem às mais distantes cidades brasileiras, bem como levar de um lado a outro, dentro do próprio território nacional, os produtos aqui fabricados.
Com o passar dos anos, e à luz do desenvolvimento da economia mundial, os vários meios de transporte precisaram passar por um processo de reestruturação e modernização. Foi quando se deu, então, a adoção de estratégias de interligação dos mais variados sistemas, de forma a relacionar os transportes ferroviário, rodoviário, fluvial e até aeroviário.
O transporte estanque de mercadorias já não acompanhava mais as exigências da dinâmica econômica. Com isso, o sistema foi-se modernizando a ponto de ter que tomar medidas de impacto para se adequar às novas exigências, como projetos, estudos e planejamento a médio e a longo prazos, dessa integração entre os vários sistemas.
Todas as mudanças daí advindas, naturalmente, precisaram contar com um arcabouço jurídico eficaz, sem o qual nenhum avanço tornar-se-ia viável.
As normas jurídicas vigentes até o início do século XX
Tomando-se como ponto inicial, como termo a quo, a data de 1854, acima citada, com a inauguração daquela que foi a primeira estrada de ferro do país, a Estrada de Ferro Mauá, ligando o Rio de Janeiro a Petrópolis, tem-se que os contratos de transporte então celebrados eram regidos por princípios gerais do Direito das obrigações.
A única norma existente então era o Código Comercial. Datado de 1850, tratou de regular o contrato de transporte marítimo, por ser na ocasião o meio de transporte de maior importância e relevância. Para os demais contratos de transporte deu aquele diploma tratamento apenas genérico, nos artigos 99 a 118, ao se referir aos condutores de gêneros e comissários de transporte. Sobre isso assevera Fran Martins que “era natural que assim acontecesse, pois, ao ser promulgado o Código, em 1850, ainda eram por demais precários os meios de transporte terrestre utilizados no Brasil.”(Fran Martins, Contratos e Obrigações, p.196)
No ano de 1859, no dia 26 de abril, foi baixado o Decreto nº 1.930, que regulamentava os transportes ferroviários no Brasil. Não obstante as cláusulas constantes desse Regulamento terem caído no desuso rapidamente, ele acabou vigendo por longos 65 anos, pois foi somente no ano de 1922, em 7 de outubro, que foi substituído por outro Decreto, de nº 15.673. Depois disso foram-se sucedendo novos regulamentos, como do Decreto 36.522, de 2/12/1954 e o Regulamento geral dos Transportes, aprovado pelo Decreto 51.813, de 8/03/1963. (Fran Martins, op.cit., p. 198)
Não obstante essa sucessão de normas que tentavam regular o transporte ferroviário, foi no ano de 1912 que veio ao mundo jurídico aquela que seria a primeira norma regulamentadora da responsabilidade civil objetiva de que se tem notícia no país.Diante do expressivo e constante aumento da utilização do transporte ferroviário para o deslocamento de pessoas e de coisas, deparou-se o legislador pátrio com a necessidade premente de dar certa regulamentação à questão da responsabilização civil do transportador. Foi então que se elaborou o conhecido Decreto 2.681, Decreto com força de lei, datado de 7/12/1912.
Ali estava a normatização da responsabilidade civil no transporte ferroviário no Brasil, pela primeira vez em nossa história.
Como não havia normatização do contrato de transporte de coisas ou pessoas por outros meios que não o ferroviário, nem norma acerca da responsabilidade civil, essa mesma norma acabou sendo utilizada pelos Tribunais brasileiros para dirimir problemas advindos do contrato de transporte pelos outros meios. Assim, por analogia, o regramento ali estabelecido acabou sendo aplicado aos demais meios de transporte coletivos, como para as empresas de carris urbanos (bondes) e para as empresas de ônibus.(Arnoldo Wald, Curso de Direito Civil Brasileiro, Obrigações e Contratos, v.II, p.520)
Na ocasião, o Código Civil Brasileiro era ainda elaborado, à luz da legislação civil da França, da Itália, da Alemanha. O então projeto de Código Civil, coordenado por Clóvis Beviláqua, trazia para o direito pátrio regras e inspirações vigentes na Europa. Dispensável referir-se às inúmeras e até intermináveis discussões doutrinárias que o projeto do codex civilista acarretou entre os mais consagrados e respeitados juristas brasileiros de então. O fato é que o Código Civil foi promulgado e, a partir de 1916, passou a produzir seus efeitos jurídicos.
O Transporte e o Código Civil de 16
Apesar das controvérsias e idéias amplamente debatidas, o contrato de transporte acabou não constando do Código Civil. Nada trouxe sobre essa especificidade aquele importante diploma legislativo.
Com isso, os contratos de transporte, de forma geral, passaram a ser regidos pelos princípios gerais do direito das obrigações e pelos princípios gerais dos contratos, além, é claro, daquelas disposições constantes da Lei de Introdução ao Código Civil.
Aquela norma codificada não trouxe, entre as normas expressamente revogadas, o Decreto 2.681/12. Não o fez também tacitamente, já que não havia disposições em contrário. Assim, aquela norma, por ser norma especial, continuou vigendo, nos moldes do que determina o artigo 2º do Decreto-Lei 4.657/42, a Lei de Introdução ao Código Civil (LICC).
Baseando-se justamente na LICC, que estabelece em seu artigo 4º que por analogia os juízes podem decidir os casos em que a lei for omissa, os Tribunais brasileiros continuaram a aplicar aquela norma especial para outros casos relativos aos contratos de transporte, mesmo estando em vigência, a partir de 1916, o então novo Código Civil.
A Codificação do Contrato de Transporte
O novo Código Civil, de 2002, é que trouxe, pela primeira vez, a normatização do contrato de transporte em geral. Os artigos 730 usque 756 regulam a matéria. O transporte de coisas, especificamente, encontra-se entre os artigos 743 ao 756.
Como já visto, inúmeras foram as normas esparsas editadas desde o Código Comercial, como os Decretos 2.681/12, 1.836/96, 98.443/89 (que tratam do transporte ferroviário), os Decretos 92.353/86, revogado pelo Decreto 952/93, 96.044/88, Inst. Normativa do DRF 84/91, Portaria 285/2000 do Min. dos Transportes (transporte rodoviário), Dec. 116/67, 64.387/69, Dec.lei 2.404/87, Dec. Lei 2.414/88, Leis 7.742/89, 8.632/90, 10.206/2001, 8.630/93 e 10.233/2001 (transporte aquaviário), além de muitas outras, sem falar das relativas ao transporte aéreo, que se avolumam. (Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, vol.3, pp.415-416)
O fato a ser destacado é que somente no novel codex é que o contrato de transporte, apesar de sua importância, utilidade e abrangência, recebeu tratamento unitário. Não obstante o acerto do legislador em incluir esse tema, fê-lo, todavia, de forma singela no que tange ao transporte de coisas, vez que remitiu para futura regulamentação as especificidades de cada um dos meios utilizados para tal fim. De qualquer modo, houve notável ganho jurídico com a inserção desse tema dentre os contratos típicos constantes do Código Civil.
O contrato de transporte de coisas é aquele em que o contratado, o transportador, se obriga perante o outro contratante, o expedidor, a levar e entregar determinada coisa a um destinatário determinado, também chamado de consignatário. Tal pacto se dá mediante paga, que gera um documento chamado ‘nota de conhecimento’, ‘conhecimento de frete’, ou simplesmente, conhecimento. É assim que o CC o denomina.
Esse documento é, na verdade, uma cártula, um título de crédito com força executiva, matéria regulada nos artigos 621 usque 631 do Código de Processo Civil, sobre a Entrega de Coisa Certa. Nesse título tem de haver a especificação da coisa, atendendo aos ditames do Direito das Obrigações regulado a partir do artigo 233 do Código Civil. É, assim, coisa certa, e a prestação do transportador só se extinguirá com a efetiva entrega da coisa ao destinatário.
O conhecimento, cuja origem remonta ao Século XIII, ganhou relevância no novo Código, e passou a ser formalidade obrigatória para a formalização do contrato de transporte de coisas. O artigo 744 é expresso ao torná-lo requisito formal: “Ao receber a coisa, o transportador emitirá conhecimento com a menção dos dados que a identifiquem, obedecido o disposto em lei especial.”
Aqui se vê uma das remissões que o Código fez à legislação posterior, crítica já apontada. O fundamental, porém, é que sem a expedição da nota de conhecimento o contrato não se perfaz, não produzindo seus efeitos esperados. O contrato de transporte é de natureza bilateral, oneroso, comutativo e consensual. Além disso, é contrato típico, cuja forma é prescrita em lei, ao menos em termos genéricos. Assim, o não atendimento a algum dos requisitos formais maculam e viciam o pacto, que não produzirá os efeitos desejados pelos contraentes.
A dispensabilidade da emissão do conhecimento, a partir do novo Código, passa a contrariar o princípio da autonomia da vontade. Segundo sucinta e definição de Silvio Rodrigues, “é a prerrogativa conferida aos indivíduos de criarem relações na órbita do direito, desde que se submetam às regras impostas pela lei e que seus fins coincidam com o interesse geral, ou não o contradigam.” (Silvio Rodrigues, Direito Civil, vol.3, p.15). Assim, tendo-se em vista que a emissão do conhecimento passou a ser obrigatória, não haverá contrato de transporte sem esse documento.
A Responsabilidade Civil do Transportador com o CCB/02
Da mesma forma como, desde a edição do Decreto 2.681, em 1912, a responsabilidade civil do transportador ferroviário é objetiva, o Código de 2002 também adotou tal entendimento. Ao contrário do que ocorrera antes, com duas normas vigendo simultaneamente, embora sem se derrogarem, mas criando certas dificuldades ou dando azo a interpretações das mais diversas nos Tribunais de todo o país, sempre dependendo muito dos detalhes e características de cada caso, houve pacificação para a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva no contrato de transporte ferroviário.
O novo diploma trás, especialmente em seus artigos 750 e 756 c/c com o parágrafo único do art. 927, a adoção da responsabilidade civil objetiva do transportador de coisas no contrato de transporte, permitindo que nossos Tribunais caminhem, de agora em diante, com maior harmonia nas decisões a esse tema pertinentes.
Com isso, o legislador pátrio trouxe evolução à matéria, ao incluir esse tipo de contrato dentre aquelas presentes no Título do Direito das Obrigações.