Interceptação telefônica: prova lícita?

Interceptação telefônica: prova lícita?

Estabelece uma breve comparação de um famoso livro de Franz Kafka com o que se entende por ausência de razoabilidade e proporcionalidade na vida do ser humano.

Às vezes, aquilo que parece inquestionável merece um pouco mais de atenção. Quantas vezes não lemos o art. 5o da Constituição Federal, e nunca paramos para pensar a respeito de certas garantias e direitos que nos foram dados? Quantas vezes simplesmente aceitamos o que está ali disposto e não paramos para entender a sua real utilidade prática?

Esta breve comparação, permite-nos enxergar melhor a relatividade de certos direitos, principalmente no que se refere à privacidade:

A Metamorfose, de Franz Kafka, à primeira vista, pode parecer um livro infantil. Ao iniciar a leitura, o leitor descuidado pode demorar a perceber a profundidade da obra. Porém, por baixo de toda essa sutileza, encontramos nas entrelinhas um exemplo delicado e, ao mesmo tempo, marcante do que a arbitrariedade é capaz de provocar na vida das pessoas.

Gregor Samsa, personagem principal de A Metamorfose, acorda pela manhã e passa a se questionar sobre a sua existência; nunca descobre a razão de sua agonia e percebe que ninguém mais se aproxima dele, nem mesmo sua família. Esse livro nos mostra até que ponto o desespero do ser humano pode chegar quando não encontra respostas para perguntas básicas.

Comparando a vida do personagem de A Metamorfose com a nossa, como vítimas do arbítrio do Estado, é como se Gregor fosse sempre abandonado pela Justiça, deixado para trás e esquecido, embora sempre procurasse entender o porquê de tanto sofrimento. Portanto, a ausência da razoabilidade significa presença de injustiça, arbítrio do Estado e irracionalidade.

A ausência de razoabilidade nos lembra imediatamente os tempos da Ditadura e o quanto foi difícil a conquista dos nossos direitos. Mas será que esses direitos devem ser sempre considerados de forma absoluta? Será que devemos defender, sempre, até mesmo os direitos individuais daqueles que nunca lutaram ou zelaram por eles?

Assim, podemos nos questionar: até onde, atualmente, a razoabilidade é considerada quando tratamos da admissibilidade de provas ilícitas no processo penal? Embora nem mesmo esteja disposto literalmente na Constituição, o princípio da Proporcionalidade está intimamente ligado ao da Razoabilidade, chegando até mesmo a ser confundido com este. Quando se trata de provas ilícitas, esses princípios devem ser usados quando se precisa observar o que "vale" ou "pesa" mais, se é o direito a ser protegido ou o crime a ser desvendado.

Se pararmos para pensar, é muito injusto absolver alguém sobre quem temos plena certeza de sua culpabilidade, ainda que essa certeza tenha advindo de meios inidôneos. Até que ponto a privacidade de um suspeito deve ser considerada? Se uma certa prova foi colhida de maneira ilícita e só através dela se pôde chegar à certeza da autoria de um cidadão sobre um crime gravíssimo, não há justificativa suficiente para que essa prova não seja admitida.

Muitos julgados do STF vão contra a admissão de qualquer tipo de prova ilícita, com o objetivo de proteger os direitos dispostos no art, 5o da nossa Constituição. Porém, essa conduta não estaria facilitando a impunidade? Reconhecidamente, a prova ilícita "pro reo" já vem sendo admitida freqüentemente, mas o objeto de presente estudo é questionar o porquê da não aceitação das provas ilícitas pro societate em situações extremas. Devemos partir do preceito de que todos os direitos e garantias dos cidadãos devem ser interpretados cuidadosamente, pois a maneira como estão configurados na Carta Magna podem nos conduzir a certos erros. Se considerarmos todo direito humano como absoluto, estaremos desamparando a sociedade por completo, e a intimidade há de ser considerada um direito relativo, assim como outros.

Não estamos aqui pretendendo defender a utilização de meios extremos, como a tortura, para obtenção de provas contra o réu, mas apenas concretizar a idéia de que a violação da intimidade de um suspeito, mesmo obtida sem autorização judicial, pode e deve ser aceita como prova.

Falando especificamente sobre interceptações telefônicas, sabemos que aquelas realizadas com autorização judicial prévia são lícitas e normalmente aceitas no processo. O problema surge quando se trata de interceptações feitas clandestinamente.

O STF já tem entendido que não há qualquer violação constitucional ao direito de privacidade quando “a gravação de conversa telefônica for feita por um dos interlocutores ou com sua autorização e sem o conhecimento do outro, quando há investida criminosa desde último” (HC 75.338/RJ, Rel. Min. Nelson Jobim, DJU 25.09.98). Assim, o Supremo Tribunal Federal tem aceitado como lícitas as provas colhidas através de escuta telefônica, mesmo sem autorização judicial, em alguns casos, desde que a conversa tenha sido gravada por um dos interlocutores. Porém, se a referida gravação foi feita por um terceiro, a prova é considerada ilícita: “a prova obtida mediante a escuta gravada por terceiro de conversa telefônica alheia é considerada ilícita em relação ao interlocutor insciente da intromissão indevida, não importando o conteúdo do diálogo assim captado” (HC 80949/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14.12.2001).

Diante de julgados como esses, a meu ver, não interessa tenha sido a conversa gravada por terceiro ou por um dos interlocutores; o que importa, na verdade, é a finalidade da gravação. Se ela tem um intuito benéfico para a sociedade, de ajudar na comprovação de delitos, não há porque não aceitá-la como válida no processo.

É necessário agir. Uma sociedade desamparada e sem respostas para suas perguntas passa a não crer mais no poder do Estado de fazer justiça, gerando revoltas e inquietação. O sentimento da população nesse momento torna-se semelhante ao de Gregor Samsa, em A Metamorfose: solidão, abandono.

Nosso direito procura sempre atingir um ideal de Justiça. Portanto, deixando de lado a razoabilidade e defendendo a impunidade estaremos nos afastando cada vez mais do mundo ideal que desejamos construir. Precisamos pensar no que é justo para todos e não aplicar restritamente uma norma pensando em apenas um dos lados. Sempre tivemos em mente que o réu deve ser poupado quando houver dúvida quanto à sua culpa, o que não se deve levar em conta em todos os casos, pois precisamos estar sempre alerta para as provas que surgirem, sejam quais forem. Muitas vezes, um crime pode ser solucionado através da produção de uma prova que fere um direito individual consagrado em nossa Constituição, como a privacidade, por exemplo, porém a aceitabilidade dessa prova, certamente, trará maiores benefícios à sociedade do que a sua recusa. O Direito precisa evoluir, e a idéia de Justiça deve prevalecer. Não podemos sacrificar a segurança de toda a população para preservar a privacidade de uma só pessoa.

Sobre o(a) autor(a)
Lidia Villarim Martins
Estudante de Direito
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