Lavagem de dinheiro por meio de empréstimos bancários: uma prática coerente?

Lavagem de dinheiro por meio de empréstimos bancários: uma prática coerente?

O delito de lavagem de dinheiro é uma das espécies delitivas de maior popularidade social quando referimo-nos aos crimes de colarinho branco – entendidos como os crimes praticados pelos sujeitos que compõem as classes sociais mais abastadas.

O delito de lavagem de dinheiro é uma das espécies delitivas de maior popularidade social quando referimo-nos aos crimes de colarinho branco – entendidos como os crimes praticados pelos sujeitos que compõem as classes sociais mais abastadas – sendo assim, apesar da população em sua maioria não o praticar – ao menos em quantidade e frequência relevante – possui constante contato através dos noticiários televisivos que estampam operações policiais conjuntas de enorme “êxito defraudador”.

Neste contexto, sabendo-se que o crime em comento é acompanhado, no mais das vezes, por imputações de corrupção passiva, sonegação fiscal, contabilidade paralela e organização criminosa – este último utilizado quase como um coringa pelos órgãos acusatórios em fatos que anunciam a prática criminosa por mais de um sujeito – perfaz-se, portanto, de importante instrumento a disposição dos agentes delitivos para garantir a fruição do proveito criminoso.

À vista disto, sua complexidade supera os elementos pragmáticos insculpidos no bojo do dispositivo regulamentador, não sendo suficiente, para a sua compreensão, a mera leitura ou referência aos verbos nucleares do tipo previstos no Art.1º da Lei nº 9.613/98, considerando a sua fragmentariedade operacional.

Isto é, o avanço das práticas criminosas ocasionou o necessário aperfeiçoamento dos mecanismos destinados a garantir a reinserção dos proveitos delituosos na economia formal, através do fracionamento dos atos voltados à ocultação e dissimulação da origem ilícita dos ativos, bens ou valores.

De acordo com o Art. 1º da norma em comento, constitui crime de lavagem:

Art. 1o Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.[i]

Por conseguinte, apesar da lei que institui o crime de lavagem de dinheiro possuir redação originária de 1998 – embora alterada pela Lei nº 12.683/12 – as dinâmicas de ocultação do capital ilícito não seguem mais os trâmites conhecidos pelos órgãos de persecução da década de noventa, como a emblemática, quase folclórica, lavagem de dinheiro através da compra de bilhetes premiados de loteria. 

Por este motivo, o desenvolvimento dogmático dos crimes que compreendem a disciplina do Direito Penal Econômico, em especial a lavagem de dinheiro, necessita de aprofundado e constante aperfeiçoamento por parte dos operadores e acadêmicos das ciências jurídicas, tendo em conta a apressada expansão do leque de condutas possíveis e aptas a tipificar os crimes que demandam esta tutela estatal.

Isto posto, importante trazer a estudo uma forma de ocultação de bens e valores recentemente levada ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça na Ação Penal 940/DF, em que a Corte Cidadã refletiu acerca da suposta prática de lavagem de dinheiro por determinada Desembargadora do TJBA, a qual estaria se utilizando de empréstimos bancários obtidos ao longo dos anos, totalizando cifras milionárias, para a ocultação de ativos maculados.

Segue trecho de ementa da decisão:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA.  PERAÇÃO FAROESTE. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. LAVAGEM DE DINHEIRO. ESQUEMA DE NEGOCIAÇÃO DE DECISÕES JUDICIAIS E ADMINISTRATIVAS NO ÂMBITO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA BAHIA. PRELIMINARES. PEDIDOS DE DESMEMBRAMENTO DE DENUNCIADOS SEM FORO NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. EXISTÊNCIA DE CONEXÃO. INVESTIGAÇÕES AINDA EM CURSO. ENVOLVIMENTO DE MAGISTRADOS DE 1º E 2º GRAUS DO ESTADO DE ORIGEM. NECESSIDADE DE MANUTENÇÃO DO SIMULTANEUS PROCESSUS. REJEIÇÃO DO PEDIDO. CERCEAMENTO DE DEFESA. ACESSO À INTEGRALIDADE DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS. ACESSO FRANQUEADO E RENOVAÇÃO DO PRAZO PARA DEFESA. PRELIMINAR SUPERADA. NULIDADE DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS POR AFRONTA À SUBSIDIARIEDADE DO MEIO DE OBTENÇÃO DA PROVA. INVESTIGAÇÕES JÁ AVANÇADAS E COM JUSTA CAUSA SUFICIENTE PARA DECRETAÇÃO DA MEDIDA. REJEIÇÃO DA PRELIMINAR. NULIDADE DE BUSCA E APREENSÃO SEM PRESENÇA DE REPRESENTANTE DA OAB. EXTENSÃO DA GARANTIA PARA LOCAIS DIVERSOS DO ESCRITÓRIO. NECESSIDADE DE PROVA DE CARACTERIZAÇÃO DO LUGAR COMO DESTINADO PRIMORDIALMENTE AO EXERCÍCIO DA PROFISSÃO. OBJETOS APREENDIDOS RELACIONADOS A POSSÍVEIS CRIMES PRATICADOS PELO ADVOGADO. POSSIBILIDADE. REJEIÇÃO DA PRELIMINAR. ALEGAÇÕES DE INÉPCIA DA DENÚNCIA. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. AFASTAMENTO APENAS DA CAUSA DE AUMENTO DO ART. 2º, § 4º, IV, DA LEI N. 12.850/2013. JUSTA CAUSA. EXISTÊNCIA DE ELEMENTOS DE INFORMAÇÃO SUFICIENTES AO RECEBIMENTO DA INICIAL ACUSATÓRIA. TESES DEFENSIVAS. INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL E PRERROGATIVAS PROFISSIONAIS. IMPOSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO PARA BLINDAR ATIVIDADE CRIMINOSA. REGISTROS TELEFÔNICOS. POSSIBILIDADE DE CONFIGURAÇÃO COMO INDÍCIO DE AUTORIA DIANTE DO CONTEXTO. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. HIERARQUIA. ELEMENTO ACIDENTAL. EMPRÉSTIMOS. POSSIBILIDADE DE CONFIGURAÇÃO COMO INDÍCIO DE LAVAGEM DE DINHEIRO. DELITOS ANTECEDENTES. INDÍCIOS DA ORIGEM ILÍCITA. SUFICIÊNCIA. PESSOAS JURÍDICAS EM NOME PRÓPRIO OU DE FAMILIARES PRÓXIMOS. EXERCÍCIO DA ATIVIDADE ADVOCATÍCIA. POSSIBILIDADE DE CONFIGURAÇÃO DE LAVAGEM DE DINHEIRO. EMPRÉSTIMO DO NOME E DA POSIÇÃO JURÍDICA. TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA. APLICABILIDADE. ART. 29 DA LEI COMPLEMENTAR Nº 35/79 - LOMAN. MEMBROS DO PODER JUDICIÁRIO. AFASTAMENTO CAUTELAR DAS FUNÇÕES DO CARGO. PRESENÇA DOS REQUISITOS LEGAIS. MEDIDAS CAUTELARES REFERENDADAS PELO PRAZO DE 1 (UM) ANO, A CONTAR DA DATA DO AFASTAMENTO EM 5/2/2020. DENÚNCIA PARCIALMENTE RECEBIDA.
7. A realização por período prolongado de sucessivos contratos de empréstimo pessoal para justificar ingressos patrimoniais como se renda fossem, sem que se esclareça a forma e fonte de pagamento das parcelas, acrescidas de juros, e sem que isso represente, em nenhum momento, uma correspondente redução do padrão de vida do  devedor, é apta a configurar, em tese, ato de dissimulação da origem ilícita de valores, elemento constituinte do delito de lavagem de dinheiro, que extrapola o mero recebimento dissimulado de vantagens indevidas.[ii]

Desta forma, a Corte Superior vocacionou o entendimento de que é possível a ocultação da origem espúria do capital através da contração continuada de empréstimos consignados junto a instituições financeiras, como forma de legitimar a entrada, no patrimônio do agente ocultador, de parcelas significativas de ativos incompatíveis com a renda licitamente percebida e passível de comprovação documental.

Deste modo, o agente delitivo utilizaria do sistema bancário como um ente intermediário para justificar o ingresso dos bens ou valores, visto que, ao contrair empréstimos bancários, haveria uma entrada de capital líquido em seu patrimônio financeiro, aptos a serem reinseridos na economia formal.

Entretanto, a problemática facilmente contornada pelo raciocínio desenvolvido pelos julgadores da Ação Penal em referência encontrar-se-ia no fato de que qualquer operação de empréstimo consignado corresponderia também a um passivo imediato e maior do que o ativo que ingressa nas contas bancárias do mutuário, visto que sobre os valores acordados a título de empréstimo incidiria também a aplicação dos juros e índices de correção monetária inerentes ao negócio.

Nada obstante, pela perspectiva adotada, os contratos de empréstimo consignado sucessivos que constituem indícios da prática de ocultação ou dissimulação de bens ou valores ilícitos é acompanhado da subsequente quitação das parcelas creditícias, sem que se revele qualquer dificuldade por parte do agente em sua desoneração, bem como a ausência de diminuição em seu padrão de vida. 

Neste sentido, segue trecho do acórdão:

Como se vê, a realização por período prolongado de sucessivos contratos de empréstimo pessoal para justificar ingressos patrimoniais como se renda fossem, sem que se esclareça a forma e fonte de pagamento das parcelas, acrescidas de juros, e sem que isso represente, em nenhum momento, uma correspondente redução do padrão de vida do devedor é apta a configurar, em tese, ato de dissimulação da origem ilícita de valores, elemento constituinte do delito de lavagem de dinheiro, que extrapola o mero recebimento dissimulado de vantagens indevidas.

Todavia, a adequação típica da conduta de contrair empréstimos bancários com a finalidade de ocultação da origem ilícita dos valores encontra relevante dificuldade probatória.

Porquanto, na medida em que não se pode apurar qual é o capital maculado pela mera observância física de suas características qualiificadoras (cor, cheiro, formato, etc) mas tão somente quanto a sua origem (pecunia non olet), concluir-se-ia que, na dúvida acerca dos valores utilizados para a quitação das parcelas de empréstimo bancário (se sujos ou não), resolve-se a contenda em favor do réu (in dubio pro reo).

Queremos dizer: a única forma de apurar a origem lícita do capital manejado para solver a dívida mutuária contraída pelo agente seria o desconto em folha de pagamento pois, caso contrário, não se poderia concluir que os valores estariam sendo pagos com o próprio valor contraído a título de empréstimo, por outros empréstimos de familiares e amigos, ou simplesmente se o sujeito decidiu sacar o dinheiro da própria conta e pagar o boleto bancário em dinheiro, noutra agência.

Contudo, há que se considerar que a tese defensiva ventilada na persecução penal em comento indica empréstimos obtidos com  a finalidade de tratamentos médico-hospitalares, de forma que não justifica – ao menos a priori – a não diminuição do padrão de vida da acusada em virtude do comprometimento de grande parte de seus rendimentos mensais.

Nada obstante, percebe-se que a prática da lavagem de capitais por intermédio de empréstimos consignados ainda é por si só obscura e intrincada, demandando maior aprofundamento dogmático e reflexão por parte do operador do direito, tendo em conta que, conforme mencionado, trata-se de crime de elevada complexidade e constante aperfeiçoamento, demandando extensa e cuidadosa dilação probatória para, ao fim da instrução, superar os meros indícios da prática de condutas que indiquem os verbos nucleares do tipo.

Referências

[i] BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 9.613, de 3 de Março de 1998. Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9613compilado.htm. Acesso em: 29 ago. 2020. 

[ii] STJ. Apn nº 940/DF, Rel. Min. OG Fernandes. Corte Especial. Julgado em 06/05/2020. Dje 13/05/2020.

[iii] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários a nova lei 9.613/1998, com as alterações da lei nº 12.683/2012. 3ª Edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2016.

[iv] COSTA, Álvaro Mayrink da. Curso de Direito Penal, parte geral. 1ª edição. 2015. GZ Editora.

[v] FILIPPETTO, Rogério. Lavagem de dinheiro. Editora Lumen Iuris. 2011.

Sobre o(a) autor(a)
Leonardo Tajaribe Jr.
Advogado Criminalista. Especialista em Direito Penal Econômico (COIMBRA/IBCCRIM). Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal (UCAM).
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