Lei anticrime e os impactos da progressão de regime na população prisional
Breve abordagem sobre o histórico do sistema de punição ao longo da história, com o fim de explicar as mudanças através de dados reais advindos do Pacote Anticrime, incluindo os impactos que vêm causando nas penitenciárias brasileiras na pandemia do Covid-19.
1. Introdução
Até o momento da ascensão da Igreja Católica, durante a Idade Média, não haviam códigos escritos de como agir diante de determinadas circunstâncias. Isso se aplica especialmente às formas de punição, segundo o autor Luiz Francisco Carvalho Filho: o encarceramento era um meio, mas não um fim de punição.
O Direito Canônico se utilizou do sistema Filadélfico para aplicar sua pena, também conhecido como sistema celular, no qual o apenado ficava trancado dentro de uma cela, sem contato com nenhum outro detento, apenas era permitido passeios rápidos no pátio da prisão junto da leitura da Bíblia.
Michel Foucault no primeiro capítulo de sua obra "Vigiar e Punir", faz uma breve abordagem sobre o suplício, um espetáculo violento dirigido por membros da igreja com o objetivo de punir o condenado sobre determinado crime, entretanto com a Revolução Francesa e o Iluminismo, contemporâneos como Cesare Beccaria adotaram uma postura de humanização penal, na qual o réu merecia uma pena proporcional ao dano causado.
Nesse contexto chegamos aos dias atuais, no qual o sistema de punição brasileiro é regido pelo Código Penal através do sistema progressivo, com base no bom comportamento com o objetivo de readaptar o criminoso para a sociedade e prevenir futuros crimes.
2. Lei Anticrime e a progressão de regime
A partir do ano de 2019, houve a entrada em vigor da Lei 13.964, denominada Lei Anticrime ou Pacote Anticrime, esta trouxe modificações no Código Penal, Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal.
Singularmente, no tocante a Progressão de Regime, previsto no Art. 112 da Lei de Execução Penal, a nova Lei Anticrime apresenta diferentes critérios quanto ao tempo mínimo de cumprimento de pena para a progressão de regime, portanto, um dos mais importantes pontos.
Anteriormente à entrada em vigor da Lei 13.964, haviam o seguinte disposto quanto ao tempo: A regra geral de 1/6 da pena, para crimes hediondos tendo réu como primário 2/5, e em caso de reincidência do réu, 3/5 da pena para progressão.
A partir da nova lei, teremos para progressão de regime o cumprimento de: 16% da pena se o réu for primário e o crime tiver ocorrido sem violência ou grave ameaça, 20% se o apenado for reincidente em crime sem violência ou grave ameaça, 25% se o apenado for primário e o crime houver com violência ou grave ameaça, 30% se houver reincidência com violência ou grave ameaça, 40% se o apenado for primário em crime hediondo, 50% se o apenado for primário em crime hediondo com resultado morte ou condenado por comando de organização e milícia criminosa, 60% se o apenado for reincidente em crime hediondo, 70% se o apenado for reincidente em crime hediondo com resultado morte.
Portanto, como disposto acima os percentuais de cumprimento de pena variam entre 16% a 70% para progressão de regime, o que torna mais severo os novos parâmetros.
3. Os efeitos do aumento de cumprimento de pena no sistema prisional
Entretanto as novas diretrizes desse aumento pena para progressão resultará em um maior super encarceramento, visto que este já é um problema existente no País. Segundo a organização não-governamental Human Rights Watch, estimou-se que no ano de 2018, a população carcerária no Brasil ultrapassaria os 840 (oitocentos e quarenta mil) presos, portanto, o terceiro país com maior número de presos, atrás somente dos Estados Unidos e da China.
O sistema prisional brasileiro, possui capacidade para 400 mil apenados, todavia, a realidade se encontra em condições totalmente adversas das previstas, em média um preso que possui a sua liberdade restringida e permanece sob a tutela do Estado gera em despesas R$ 1.800,00 (um mil e oitocentos reais) ao mês para as penitenciárias estaduais, e já nas federais R$4.800,00 (quatro mil e oitocentos reais), incluindo alimentação e permanência nas dependências prisionais.
Em resumo, o Estado é ineficiente na proteção dos direitos fundamentais do apenado, pois viola uma série de princípios e garantias constitucionais, sendo a principal delas a dignidade da pessoa humana, prevista expressamente no nosso ordenamento jurídico através do artigo 1 º da Constituição Federal:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
É preciso entender que esse princípio tem como objetivo solucionar conflitos, mas diante da problemática muito se discute a respeito, pois apesar do detento ser um cidadão à medida que ele perde sua liberdade a sociedade o exclui e muitos deixam de acreditar na sua reabilitação em razão da forma como ele permanece na prisão, além disso, a punição é velada dentro do Brasil, isso se deve aos fatos históricos que ainda são perceptíveis em decorrência da escravidão, o preconceito contra essas pessoas os deixaram a margem da sociedade, segundo uma pesquisa feita pela Câmara dos Deputados:
Entre os presos, 61,7% são pretos ou pardos. Vale lembrar que 53,63% da população brasileira têm essa característica. Os brancos, inversamente, são 37,22% dos presos, enquanto são 45,48% na população em geral. E, ainda, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em 2014, 75% dos encarcerados têm até o ensino fundamental completo, um indicador de baixa renda.
4. Os impactos da Covid-19 frente à progressão de regime no sistema prisional
Ao redor do mundo estão sendo elaborados diversos planos e estratégias desde o início da pandemia, visando o combate ao coronavírus, isso desequilibrou as mais variadas áreas da sociedade, incluindo de forma direta a população carcerária; isso se deve a dificuldade existente no acesso aos cuidados básicos de saúde.
Dráuzio Varella, formado em medicina pela USP, foi voluntário na casa de detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru, em seu Best seller "Estação Carandiru" o médico faz um relato sobre o contato que teve com as condições precárias de saúde do sistema penitenciário, principalmente durante a presença do HIV na casa.
No capítulo "Inferno de Joyce" o autor conta que os apenados faziam rodízios para dormir, tomavam banhos apenas duas vezes por semana e cada cela contava com apenas um vaso sanitário para uma média de vinte homens, segundo Dráuzio esse contato deixa cicatrizes até os dias atuais por conta da falta de estrutura, impunidade e profissionais despreparados e a falta de assistência médica nos presídios também torna deficiente o trabalho.
Segundo a Esnp/Fiocruz, menos de 1% dos apenados possuem acesso ao diagnóstico da Covid-19, e até a data de 20 de março de 2020, os Estados possuíam: cinco óbitos no Rio de Janeiro, doze óbitos em São Paulo, três óbitos em Pernambuco, e dois no Espírito Santo.
Todavia, visto o incontestável obstáculo do pleno acesso aos direitos básicos, é impossível a precisão exata, indicando os números muito superiores aos informados, dos reais casos e óbitos no sistema prisional pelo novo coronavírus, sendo de aproximadamente cinco vezes mais (cerca de 49 mil), baseando-se em mortes por pneumonia grave ou síndrome respiratória aguda.
Esse ambiente é decorrente da hipocrisia social, no qual o Estado tem como propósito restaurar o cidadão mas na verdade não se esforça para mudar essa realidade, as pessoas fecham os olhos diante daquilo que acham que não as prejudica.
Conclusão
É notória a evolução do sistema punitivo ao longo do tempo, entretanto ainda temos a falha do Estado na manutenção do sistema prisional e concomitantemente dos apenados, através de leis sancionadas pelo mesmo, que restringem e afunilam ainda mais os requisitos para o cumprimento da pena.
Fato este, que incontestavelmente se agravou com a crise sanitária mundial da Covid-19, que por si só já exige diversas medidas implementadas pelos governantes e legisladores, que conjuntamente à crise já existente não apresenta prioridade, em verdade, não surpreendendo, vez que dificilmente se torna pauta a ser discutida.
REFERÊNCIAS
Carvalho Filho, Luiz Francisco. A prisão. São Paulo: Publifolha, 2002. Pg. 21
Beccaria, Cesare, marchesi, di 1738-1794. Dos Delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2017.
Focault, Michel. Vigiar e Punir. Petropóles: Vozes, 1987.
Varella, Drauzio. Estação Carandiru/ Drauzio Varella. São Paulo: Companhia das letras, 1999
https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoespermanentes/cdhm/noticias/sistema-carcerario-brasileiro-negros-e-pobres-naprisao
https://cd.jusbrasil.com.br/noticias/320965057/racismo-e-negritude-preconceitoaberto-e-velado-bloco-3
https://portal.fiocruz.br/noticia/covid-19-nas-prisoes-foi-tema-do-centro-deestudos-da-ensp
https://www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/prender-mais-e-manterpreso-o-custo-da-proposta-de-bolsonaro-para-a-segurancae489eq94tc3iujetcxdd8z937/#:~:text=O%20Minist%C3%A9rio%20da%20Segur an%C3%A7a%20P%C3%BAblica,por%20ano%20com%20cada%20preso.