A (i)licitude da prova do DNA decorrente da extração de material genético de objetos descartados pelo agente

A (i)licitude da prova do DNA decorrente da extração de material genético de objetos descartados pelo agente

Não há falar em autorização judicial para a coleta do objeto contendo o material orgânico destinado à extração e identificação do DNA, já que a hipótese não requer a expedição de mandado de busca e apreensão (arts. 240 e seguintes do CPP).

Antes de adentrarmos na discussão do tema objeto deste artigo, imaginem a seguinte situação: “você é suspeito de ter praticado o crime de estupro e o Delegado de Polícia, a fim de cumprir o disposto no art. 6º, III, V e VII, do CPP, resolve interrogá-lo nos autos do inquérito policial. Ao iniciar o interrogatório, a autoridade policial, ‘com o intuito de deixá-lo mais calmo’, lhe oferece um copo d’água, que é utilizado durante todo o ato. Finalizado o interrogatório, você dispensa o copo plástico no lixo ou deixa o objeto em cima da mesa, e vai embora. Na sequência, o Delegado de Polícia coleta o copo plástico e o envia para os peritos oficiais. Estes, por sua vez, extraem o DNA da saliva contida no copo, com o fim de compará-lo com o material genético encontrado no corpo ou nas roupas da vítima”.

Fica, agora, a seguinte pergunta: o laudo pericial produzido a partir do copo plástico descartado se trata de prova lícita? 

Para resolvermos a questão, é importante registrar que a interpretação abrangente do art. 5º, LXIII, da CF/1988, que versa sobre o “direito ao silêncio”, garante ao investigado o direito de não produzir prova contra si mesmo (direito à não autoincriminação ou nemo tenetur se detegere). Afinal, trata-se de um modo de autodefesa. 

O “direito ao silêncio” é, conforme afirma o doutrinador Luiz Flávio Gomes, uma parte do todo, porque essa garantia constitucional “[...] constitui somente uma parte do direito de não autoincriminação. Como emanações naturais diretas desse direito (ao silêncio) temos: (a) o direito de não colaborar com a investigação ou a instrução criminal; (b) o direito de não declarar contra si mesmo; (c) o direito de não confessar e (d) o direito de não falar a verdade” (Princípio da não autoincriminação: significado, conteúdo, base jurídica e âmbito de incidência. Site . Acesso em 23/1/2020). 

Em suma, “o princípio do ‘nemo tenetur se detegere’, como direito fundamental, objetiva proteger o indivíduo contra excessos cometidos pelo Estado, na persecução penal, incluindo-se nele o resguardo contra violências físicas e morais, empregadas para compelir o indiciado a cooperar” (Queijo, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 55). 

Necessário, ainda, destacar que, embora o Código de Processo Penal não faça distinção, há provas que podem ser obtidas de formas invasivas e não invasivas. A primeira depende da colaboração do agente (ex.: coleta de sangue do investigado para a realização de exame de DNA); a segunda, ao contrário, não depende da colaboração do investigado (ex.: coleta de impressões digitais na cena do crime). 

Disso, extrai-se que o consentimento do agente importa somente para aquelas provas que dependam da sua colaboração, em que não se enquadra o caso em apreço.

Assim, a partir do momento em que o investigado descartou, ou seja, abandonou o copo plástico com a saliva expelida pelo próprio corpo, não possui mais domínio ou posse sobre o material orgânico, nem mesmo sobre o objeto. Isso vale, também, para cigarros utilizados e dispensados pelo fumante, cabelos deixados em uma escova, pedaços de unhas deixadas em um salão de beleza, talheres utilizados e descartados etc. 

Sobre o assunto, colhe-se da obra do doutrinador Rogério Sanches Cunha:

Partes desintegradas do corpo humano: não há, nesse caso, nenhum obstáculo para sua apreensão e verificação (ou análise ou exame). São partes do corpo humano (vivo) que já não pertencem a ele. Logo, todas podem ser apreendidas e submetidas a exame normalmente, sem nenhum tipo de consentimento do agente ou da vítima. [...] ([cf. Castanho Carvalho e, quanto ao último caso, STF, Recl. 2.040-DF, Rel. Min. Néri da Silveira, j. 21.02.02] - Processo Penal I - v. 10).

O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o Habeas Corpus n. 354068, decidiu que “não há que falar em violação à intimidade já que o investigado, no momento em que dispensou o copo e a colher de plástico por ele utilizados em uma refeição, deixou de ter o controle sobre o que outrora lhe pertencia (saliva que estava em seu corpo)”. Em complemento, explicou que “inexiste violação do direito à não autoincriminação, pois, embora o investigado, no primeiro momento, tenha se recusado a ceder o material genético para análise, o exame do DNA foi realizado sem violência moral ou física, utilizando-se de material descartado pelo paciente, o que afasta o apontado constrangimento ilegal” (STJ. HC n. 354068, julgado em 13/3/2018. Relator: Min. Reynaldo Soares da Fonseca).

De outra parte, ao menos no exemplo estudado, não há falar em autorização judicial para a coleta do objeto contendo o material orgânico destinado à extração e identificação do DNA, já que a hipótese não requer a expedição de mandado de busca e apreensão (arts. 240 e seguintes do CPP).

Ademais, é dever da autoridade policial “colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias” (art. 6º, III, do CPP).

Por outro lado, como a prova envolve a obtenção do perfil genético do indiciado por meio do material biológico coletado para fins de comparação com amostras da vítima, cujos dados permanecerão no banco de dados do Estado, creio que a perícia deva ser autorizada pelo juízo, sob pena de nulidade, conforme disposto no art. 3º, IV, c/c art. 5º, parágrafo único, da Lei n. 12.037/2009 (Lima, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único. – 6. ed. ver., atual. e ampl. – Salvador: Juspodvim, 2018, pgs. 304 e 306). 

Dessa forma, não vejo, em casos como esse, violação ao disposto no art. 1º, III, e art. 5º, caput, X e LXIII, da CF/1988, porque a prova realizada não depende do consentimento do investigado nem do seu comportamento ativo, ou seja, de sua colaboração efetiva e consciente.

Logo, considerando que, avaliados no caso concreto, o interesse público e a busca da verdade real no processo penal devem estar acima do direito a não autoincriminação, conclui-se que é lícita a prova do DNA decorrente da análise do material genético encontrado em objetos descartados ou abandonados pelo agente, especialmente quando a prova, obtida por método não invasivo, não foi obtida mediante coerção ou violação dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.

Sobre o(a) autor(a)
Fabiano Leniesky
Fabiano Leniesky, OAB/SC 54888. Formado na Unoesc. Advogado Criminalista. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal. Pós-graduado em Advocacia Criminal. Pós-graduado em Ciências Criminais. Pós-graduado em Direito Probatório...
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