Modulação temporal de efeitos no PIS/COFINS
O STF decidiu ser inconstitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/COFINS. Porém, pende de julgamento o pedido de modulação de efeitos. Questiona-se a possibilidade de se utilizar argumentos financeiros e de se invocar a segurança jurídica como fundamentos para a modulação no caso.
O Supremo Tribunal Federal decidiu, em Recurso Extraordinário com Repercussão Geral, pela inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) (RE 574.706/PR).
O julgamento, aguardado há mais de uma década pelos contribuintes, teve seu acórdão publicado em outubro de 2017. Todavia, remanesce pendente a decisão acerca da modulação temporal de efeitos, pedido feito pelo fisco em sede de Embargos de Declaração.
Como regra, as decisões de inconstitucionalidade proferidas pelo Supremo Tribunal Federal possuem efeitos ex tunc, ou seja, desde o momento do nascimento da norma declarada inconstitucional.
A modulação de efeitos, ao contrário, representa a possibilidade de a Corte restringir a eficácia temporal de suas decisões, determinando que estas surtam efeitos apenas a partir do trânsito em julgado, ou de outro momento fixado.
As decisões com efeitos temporalmente modulados, assim, possuem eficácia ex nunc. O instituto da modulação de efeitos está previsto no art. 27 da Lei nº 9.868/99 (dispõe sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade) e no art. 11 da Lei nº 9.882/99 (que dispõe sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental).
O art. 927, § 3°, do Código de Processo Civil, também faz referência ao instituto.
Embora prevista inicialmente para o controle concentrado de constitucionalidade, excepcionalmente, o Supremo Tribunal Federal entende ser possível aplicar a modulação de efeitos ao controle difuso (RE 353.657/PR e RE 370.682/SC).
Os efeitos de uma decisão podem vir a ser modulados por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social. As razões de segurança jurídica relacionam-se com a necessidade de proteger a confiança do cidadão em casos de quebra, de alteração da jurisprudência dominante da própria Corte.
Já a modulação com fundamento em excepcional interesse social busca salvaguardar a ordem social, evitando rupturas drásticas e desestabilizações.
O instituto vem para resguardar o interesse do cidadão e para evitar um caos no ordenamento jurídico.
No Recurso Extraordinário 574.706/PR, a Procuradoria da Fazenda Nacional pediu, em sede de Embargos de Declaração, que fossem modulados os efeitos da decisão, a fim de que a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS passasse a valer apenas após julgados os Embargos.
Os argumentos utilizados para fundamentar o pedido de modulação são essencialmente financeiros.
A União alega que a declaração de inconstitucionalidade sem modulação traria um impacto financeiro de aproximadamente R$ 250 bilhões, valor correspondente ao montante a ser restituído aos contribuintes.
Ademais, aduz existir dificuldades para operacionalizar a devolução, caso se entenda pela não modulação, visto que são diversas as receitas submetidas ao PIS e à COFINS.
As alegações apresentadas pela Fazenda Nacional suscitam várias indagações, como, por exemplo, a suficiência de argumentos financeiros (consequencialistas) para fundamentar a modulação de efeitos e a possibilidade de o próprio Estado invocar a segurança jurídica para proteger-se de ato inconstitucional por ele editado.
Por diversas razões, que serão abaixo explicitadas, entende-se que os efeitos da decisão que julgou inconstitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS não devem ser temporalmente modulados.
Os argumentos consequencialistas estão cada vez mais presentes em decisões do Supremo Tribunal Federal, sobretudo em tempos de crise nas finanças públicas.
Tais fundamentos devem ser considerados pela Corte, entretanto, precisam ser sérios.
Em relação aos impactos financeiros que a União alega sofrer com a decisão de inconstitucionalidade, a seriedade exigida resta comprometida.
A fórmula empregada para se chegar aos R$ 250 bilhões é obscura e não foram explicitados os mecanismos de cálculo utilizados.
Em pesquisa realizada , ficou demonstrado que o suposto prejuízo suportado pela União está muito distante da realidade, e que até mesmo a Receita Federal foi incapaz de explicar com exatidão os procedimentos matemáticos adotados para se atingir o montante citado.
Ademais, para modular os efeitos de uma decisão, é preciso que um dos dois requisitos autorizativos esteja presente: é preciso demonstrar a existência de excepcional interesse social ou de necessidade de proteção à segurança jurídica.
Importante destacar que interesse social não se confunde com interesse meramente financeiro do Estado. O argumento consequencialista, que toma por base o impacto financeiro sofrido pelo Estado, por si só, não comprova a presença de interesse social.
Isso porque, caso fosse adotado o entendimento contrário, toda a vez que o poder público fosse condenado em montante elevado, seria possível argumentar que a cobrança traria prejuízo ao erário que, em última instância, é constituído por recolhimentos de toda a sociedade.
Ou seja, toda a vez que o Estado suportasse condenação proeminente, a sociedade sofreria prejuízo, afirmação que se mostra incongruente. O argumento consequencialista, ao trazer uma ilusória visão de proteção aos interesses da sociedade, oculta sua verdadeira intenção de tutelar o interesse financeiro do Estado.
Dessa forma, não serve, por si só, como justificativa para a modulação.
Quanto à segurança jurídica, também não se mostra viável sua invocação pelo fisco. Primeiro, porque o Supremo Tribunal Federal já vinha decidido em diversas ocasiões pela inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS, embora em recursos com eficácia apenas inter partes.
O entendimento favorável ao contribuinte já vinha sendo firmado há alguns anos, de forma que as alegações de surpresa ou de resultado inesperado por parte do fisco mostram-se inverossímeis.
O Estado já deveria ter se preparado financeiramente para eventual condenação na demanda em comento. Segundo, o Estado não pode invocar a segurança jurídica para pedir a modulação de efeitos porque é ele que detinha e detém o poder impositivo para fazer surgir a relação tributária, e o exerceu em desconformidade com a Constituição.
O Estado não pode tirar proveito de suas próprias ilicitudes, impedindo que os contribuintes sejam restituídos dos valores indevidamente cobrados por conta de uma norma inconstitucional.
A modulação de efeitos de uma decisão que declara a inconstitucionalidade não pode privilegiar o Estado, responsável por instituir a norma considerada contrária à Constituição.
Caso o Supremo Tribunal Federal entenda por aplicar a modulação de efeitos, estar-se-á permitindo o enriquecimento ilícito do Estado, que incrementou seus recursos com base em norma inconstitucional.
O Estado não pode se valer da própria torpeza, ou seja, editar lei inconstitucional e, após, sob o argumento da segurança jurídica, requerer que a receita que indevidamente ingressou em seus cofres não seja restituída aos contribuintes.
Além disso, a segurança jurídica é direito fundamental do contribuinte, insculpido no art. 5°, caput, da Constituição Federal, não podendo ser utilizado contra ele. É uma salvaguarda conferida ao cidadão, visando proteger a confiança por ele depositada no ordenamento jurídico e nos atos estatais.
Busca manter a confiabilidade do indivíduo nos atos da administração, assegurando a previsibilidade e a estabilidade destes e coibindo excessos.
Dessa forma, no caso em comento, a segurança jurídica é fundamento que não pode ser invocado para proteger o Estado, até porque foi ele próprio quem criou a norma declarada inconstitucional.
Por fim, outro motivo que justifica a não modulação temporal dos efeitos da decisão é o efeito pedagógico desta deliberação.
Caso se decida pela modulação de efeitos, atribuindo eficácia ex nunc à decisão, indiretamente, estar-se-á incentivando o Estado a editar normas inconstitucionais, sem os cuidados apropriados. Isso porque, se o Estado não for obrigado a restituir os valores indevidamente arrecadados, permanecerá com aquele montante, sendo favorecido com a situação.
Seria compensatório editar uma lei inconstitucional, porque, mesmo que injustamente cobrado, o tributo não seria ressarcido ao contribuinte. Dessa forma, com a modulação temporal de efeitos, haveria um incentivo à repetição da conduta inadequada.
O Supremo Tribunal Federal possui enorme responsabilidade na tomada da decisão acerca da modulação temporal dos efeitos no RE 574.706/PR, tendo em vista o impacto que trará à confiança do cidadão no ordenamento jurídico e no próprio Poder Judiciário.
Espera-se que, pelos motivos acima expostos, a Corte Suprema do país decida por não modular temporalmente os efeitos da decisão, determinando que os valores indevidamente recolhidos sejam restituídos aos contribuintes na forma apropriada.
Essa solução é a que melhor se coaduna com os direitos e garantias fundamentais do contribuinte assegurados pela Constituição.
Referências
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