Instituto da colaboração premiada no ordenamento penal brasileiro: um enfoque principiológico

Instituto da colaboração premiada no ordenamento penal brasileiro: um enfoque principiológico

Análise sobre o instituto da colaboração premiada no ordenamento brasileiro, sob a ótica dos princípios do processo penal, bem como análise do crime de perjúrio, a possibilidade de sua recepção pelo ordenamento jurídico e o seu benefício para a colaboração.

1 INTRODUÇÃO

“Eu só posso levá-lo para a verdade. Eu não posso fazer você acreditar nela.” (Raymond Reddington).

É justamente no espírito da epígrafe supracitada, a qual se constitui em uma das frases célebres do personagem Raymond Reddington do seriado norte-americano The Blacklist (A lista negra), que a colaboração premiada ganha destaque. A figura do colaborador, como peça fundamental do grande quebra-cabeça do instituto da colaboração, bem como a sua efetiva participação perante a justiça, permite vir à tona a possibilidade da elucidação de crimes e ações de organizações criminosas que colocam em cheque a segurança pública e a ordem nacional.

Esse instituto oportuniza uma alternativa para que o acusado obtenha benefícios ao longo do processo penal. O colaborador precisa, além de confessar o delito, expor os seus comparsas, descrevendo a individualização das condutas ou apresentando os fatos de que tem conhecimento acerca de cada um dos envolvidos, para que, de fato, obtenha os benefícios da justiça por sua “contribuição” ao fim desejado, qual seja, cessar a conduta criminosa e, consequentemente, garantir a segurança pública.

Segundo o Artigo 7º da Lei 12.850/13 – Lei da Organização Criminosa, o acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia, ou seja, o contraditório e a ampla defesa só serão exercidos depois de concluídas as diligências decorrentes das informações obtidas com a colaboração premiada. Além da postergação do contraditório e da ampla defesa, o acusado, uma vez que se compromete a cooperar com a atuação policial, abre mão de um direito constitucional, que é o de permanecer em silêncio, e revela tudo o que sabe.

Nesse contexto, surge a presente pesquisa, que tem por objeto estudar a colaboração premiada no ordenamento jurídico pátrio, verificando se o referido instituto não fere princípios basilares que regem o processo penal.

São diversos os autores que compartilham da ideia da eficácia da colaboração premiada no combate a criminalidade organizada. Nessa corrente, podem-se destacar Guilherme de Souza Nucci, com o Manual de Processo Penal e Execução Penal, José Alexandre Marson Guidi, com a obra Delação Premiada no Combate ao Crime Organizado, que são teses inéditas sobre o tema, e Luiz Flávio Gomes, com o artigo Corrupção Política e Delação Premiada.

Como metodologia de abordagem, utiliza-se o método hipotético-dedutivo, visto que o presente artigo surge da premissa do desenvolvimento de um problema de pesquisa formulado, fazendo-se uma análise principiológica para colocar em xeque a constitucionalidade do instituto da colaboração frente aos princípios do processo penal.

Como metodologia de procedimento, utiliza-se o método histórico, tendo em vista que será realizada uma pesquisa histórica das origens do instituto na legislação pátria, o que permitirá uma melhor compreensão sobre a maneira com que a colaboração premiada evoluiu até alcançar os parâmetros atuais. Como técnica de pesquisa, utiliza-se a teórica, com consulta a livros que abordam a temática abordada, bem como monografias e artigos depositados na internet, o que possibilita uma gama de material que será fundamental para a análise pretendida.

A estrutura deste artigo começa com a análise da origem da colaboração premiada no ordenamento brasileiro, sendo verificado ainda o valor probatório da colaboração. Caminhando pelas previsões legais, será abordada a Lei nº 8.072/90, (Lei dos Crimes Hediondos) que introduziu o instituto da colaboração no Brasil. Além disso, será examinado o alcance normativo do instituto com o advento da Lei nº 9.807/99 (Proteção a Vítimas e Testemunhas) e a amplitude dos procedimentos do instituto da colaboração premiada com o advento da Lei nº 12.850/13 (Organização Criminosa).

Não poderia deixar de estar presente em um estudo como este uma breve reflexão sobre a análise da possibilidade de recepção do crime de perjúrio no ordenamento brasileiro como uma ferramenta que contribui para a eficácia da colaboração e que inibe os colaboradores a mentirem em seus depoimentos ou omitirem aspectos importantes dos acontecimentos.

2.1 COLABORAÇÃO PREMIADA – ASPECTOS GERAIS

Neste tópico será tratado o surgimento da colaboração premiada no ordenamento brasileiro, bem como será citada às leis especiais que abordam esta temática. Além disso, será analisado o valor probatório do instituto da colaboração. 

2.1.1 Surgimento da colaboração premiada no direito brasileiro

A origem da colaboração premiada no Brasil remonta às Ordenações Filipinas, que vigoraram de janeiro de 1603 até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830.

Segundo Damásio de Jesus (2006, p. 09-10), o Código Filipino traduzia o crime como “Lesa Majestade”, cuidando especificamente do tema que previa: “Como se perdoará aos malfeitores que derem outros à prisão”.

Devido à sua questionável ética, uma vez que incentivava uma traição, ou seja, uma forma antiética de comportamento social, o instituto acabou abandonado, reaparecendo somente na década de 1990, com a Lei dos Crimes Hediondos, sendo posteriormente regulamentado por vários diplomas legais.

Além da Lei dos Crimes Hediondos, que deu origem à colaboração premiada como é conhecida hoje, o ordenamento comporta o instituto da colaboração em leis especiais dispersas, notadamente, as seguintes: Decreto-Lei nº 2.848/40 (Código Penal Brasileiro), Lei nº 7.492/86 (Lei de crimes do colarinho branco), Lei nº 8.137/90 (Lei de crimes contra ordem tributária), Lei nº 9.613/98 (Lei contra a lavagem de dinheiro), Lei nº 9.807/99 (Lei de proteção à testemunha e à vítima de crime), Lei nº 11.343/06 (Lei antitóxico) e a Lei nº 12.850/2013 (Lei da organização criminosa).

Importa destacar que as referidas normas comportam mecanismos distintos para que o colaborador se beneficie do prêmio, portanto não há um padrão no tratamento do instituto da colaboração premiada, de sorte que a intenção do legislador pátrio de reprimir a criminalidade surgiu eivada de imperfeições nas regras que asseguram a colaboração premiada, em princípio, pela falta de harmonia entre os regramentos acima citados.

2.1.2 Valor probatório da colaboração premiada

Prova, na persecução penal, é o ato que visa à obtenção da veracidade de um fato ou da prática de um ato, tendo como base a formação do convencimento da entidade julgadora acerca da existência ou inexistência de determinada situação factual.

Assim, provar é conduzir o destinatário do ato (o juiz, no caso dos litígios jurídicos) a se convencer da verdade acerca de um fato. Em outras palavras, provar é conduzir a inteligência a descobrir a verdade (THEODORO JÚNIOR, 2004).

A lei não estabelece valor às provas, nem hierarquia entre elas. Para análise da valoração probatória da colaboração premiada no Brasil, cabe ao julgador, no caso concreto, atribuir o valor correspondente a cada prova obtida no processo, valorando-a de acordo com sua consciência, mas de forma fundamentada para permitir às partes concluir de que forma o magistrado chegou àquele entendimento, possibilitando assim o contraditório, o eu configura o princípio da livre convicção motivada que impera em nosso ordenamento jurídico (LEAL, 2010).

Sobre essa temática, é interessante analisar a posição de Paulo Rangel (2005, p. 465):

O sistema da livre convicção não estabelece valor entre as provas, pois nenhuma prova tem mais valor do que a outra nem é estabelecida uma hierarquia entre elas... a confissão do acusado deixa de constituir prova plena de sua culpabilidade. Todas as provas são relativas; nenhuma delas terá valor decisivo, ou necessariamente maior prestígio que outra. Porém, o juiz está obrigado a motivar sua decisão diante dos meios de prova constantes nos autos. Não há possibilidade de o juiz decidir de acordo com provas que não constam nos autos do processo, pois as partes tem o direito subjetivo constitucional de conhecer as razões de decidir do magistrado para, se assim entenderem, exercer o direito de duplo grau de jurisdição.

No ordenamento jurídico brasileiro, quaisquer provas já seriam suficientes para condenação, desde que o juiz as considere como tal e as mesmas não sejam consideradas como uma prova ilícita. Nesse sentido, até mesmo a colaboração premiada desprovida de qualquer outra prova poderia ser suficiente para condenação, mas não é o que ocorre.

Segundo Távora e Alencar (2011, p. 414-415):

É possível que, no transcorrer do interrogatório, além de confessar a infração, o interrogado decline o nome de outros comparsas. Esta é a delação, que serve validamente como prova, notadamente quando corroborada pelos demais elementos colhidos na instrução. Contudo, para que obtenha o status probatório, deve se submeter ao contraditório, oportunizando-se ao advogado do delatado que faça reperguntas no transcorrer do interrogatório, adstritas ao conteúdo da delação.

No mesmo sentido, Fernando Capez (2008, p. 374) ensina:

Consiste na afirmativa feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido na polícia. Além de confessar a autoria de um fato criminoso, igualmente atribui a um terceiro a participação como seu comparsa. O delator, no caso, preenchidos os requisitos legais, é contemplado com o benefício da redução obrigatória da pena, conforme Leis n. 8072/90 (lei dos Crimes Hediondos), 9.034/95 (Lei do Crime Organizado), 9.807/99 (Lei de Proteção a testemunhas) e 11.343/2006 (Lei de Drogas – [...]).

Ademais, é necessário que o acusado, além de atribuir a conduta delituosa à outra pessoa, deve admitir também ter ele participado do ato, caso contrário, a colaboração premiada não se configura (NUCCI, 2011).

Conclui-se assim que a colaboração premiada ocorre na hipótese de o acusado, durante o interrogatório, confessar o crime e, além disso, “entregar” os outros agentes. Ainda, o contraditório dos delatados deve ser respeitado para que a colaboração tenha valor probatório.

2.2 PREVISÃO LEGAL DA COLABORAÇÃO PREMIADA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Este tópico aborda as previsões legais mais relevantes ao instituto da colaboração premiada.

2.2.1 Colaboração premiada na lei dos crimes hediondos

Vários diplomas legais dispõem acerca da Colaboração Premiada, dentre eles, temos a Lei nº 8.072/90, denominada “Lei dos Crimes Hediondos", que foi a primeira a introduzir o assunto no cenário jurídico brasileiro:

Art. 8º. Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do Código Penal, quando se tratar de crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo.

Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços.

Efetivamente, o instituto da colaboração premiada foi adotado no ordenamento jurídico brasileiro por meio da lei que trata dos crimes hediondos, cujo objetivo é possibilitar a desarticulação de quadrilhas, bandos e organizações criminosas, facilitando a investigação criminal e evitando a prática de novos crimes por tais grupos.

Observa-se que o legislador foi infeliz na redação do artigo da lei, pois, conforme pode-se inferir da leitura, somente os participantes e/ou associados dos crimes considerados hediondos são “contemplados” pela redução da pena, deixando a entender que os outros crimes que não são hediondos não têm o mesmo tratamento.

Ocorre que essa divergência chegou ao campo doutrinário, visto que vários autores defendem a extensão do benefício para quaisquer crimes cometidos por quadrilha ou bando, independentemente de ser hediondo ou não. Coaduna desse entendimento, por exemplo, os juristas Geraldo Prado e Willian Douglas, os quais afirmam que, embora pese a redação infeliz da lei, o instituto deve ser aplicado em caso de qualquer quadrilha, aplicando-se de forma analógica a regra em questão. Os juristas ainda entendem que não haveria razão para diminuir-se a pena daqueles que delatam quadrilhas que praticam crimes mais graves e não se fazer o mesmo no que atine às chamadas "quadrilhas de bagatela".

Já para outros juristas, vale o que está na lei. Segundo o jurista Silva Franco, para efeito de minoração penal, só faz jus os crimes descritos na Lei 8072, e, se a quadrilha for destinada a outros crimes, que não hediondos ou equiparados, não haverá diminuição de pena. No mesmo viés, tem-se o jurista Antônio Lopes Monteiro, que acredita que para efeito da redução da pena só vale os crimes hediondos e os equiparados.

Convém ressaltar também que a minoração da pena, ou seja, o quantum de diminuição (entre um terço e dois terços) referido na lei, está relativamente ligada com a maior ou menor contribuição do delator para o desmantelamento da quadrilha, segundo assevera Franco (1995).

Ainda que pese o fato de que a lei tenha restringido a redução da pena à quadrilha que praticasse crimes de natureza hedionda ou equiparados, atualmente, a discussão perdeu relevância devido ao alcance normativo gerado pela Lei nº 12.850/2013 (Lei de Organização Criminosa).

2.2.2 Colaboração premiada na lei de proteção às vítimas e testemunhas

A Lei 9.807/99, que regula o Sistema de Proteção a vítimas e testemunhas, trouxe um novo marco para o instituto da colaboração premiada. Antes de essa lei ser editada, a colaboração era aplicável somente aos tipos penais descritos nas leis especiais que previam tal instituto. Outrora, com o advento da referida norma, esse benefício foi estendido a todos os tipos penais, visto que, nesse diploma, não há nenhuma espécie de menção à aplicabilidade do instituto a algum crime específico, nos termos do Art. 13 e 14 da Lei 9.807/99, ipsis litteris:

Art.13. Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado:

I - a identificação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa;

II - a localização da vítima com a sua integridade física preservada;

III - a recuperação total ou parcial do produto do crime.

Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso.

Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços.

Embora parte da doutrina defenda que a Lei 9.807/99 tenha sido editada com foco no tipo penal previsto no Art. 159 do CP, ou seja, extorsão mediante sequestro, a posição majoritária entende que a aplicação da delação premiada passou a ser geral e irrestrita, uma vez que tal instrumento normativo não especificou expressamente para quais tipos penais estaria destinado (MENDES, 2012).

Além da extensão dos benefícios da colaboração aos outros tipos penais, a lei trouxe a novidade do perdão judicial. Ao tratar da possibilidade de concessão do perdão judicial, conforme previsto no Art. 13 da Lei 9.807/99, decorrente da colaboração premiada, Rogério Greco (2010, p. 685) compartilha da ideia da universalidade do perdão judicial para quaisquer infrações penais:

Pela redação do mencionado art. 13, tudo indica que a lei teve em mira o delito de extorsão mediante sequestro, previsto no art. 159 do Código Penal, uma vez que todos os seus incisos a ele se parecem amoldar. Contudo, vozes abalizadas em nossa doutrina já se levantaram no sentido de afirmar que, na verdade, a lei não limitou a sua aplicação ao crime de extorsão mediante sequestro, podendo o perdão judicial ser concedido não somente nesta, mas em qualquer outra infração penal, cujos requisitos elencados pelo art. 13 da Lei nº 9.807/99 possam ser preenchidos.

Pelos ditames da lei, para a concessão do perdão judicial, é necessária, além da contribuição em relação à elucidação das circunstâncias do crime, a primariedade do acusado. Sendo assim, aqueles que são reincidentes em práticas criminosas não são alcançados pelo perdão judicial, mas nada impede que eles sejam beneficiários da redução da pena se colaborarem efetivamente com a justiça.

2.2.3  Colaboração premiada na lei de organização criminosa

De todas as hipóteses legais antes enumeradas, a Lei nº 12.850/13 (que trata da organização criminosa) é a lei que dá maior amplitude ao instituto da colaboração premiada, por isso, no que tange aos procedimentos da colaboração, deverão ser observados o rito próprio desta lei, especialmente, os relacionados aos artigos 4º ao 6º, com incidência imediata naqueles que respeitam os aspectos processuais e naqueles de caráter material para os delitos praticados na sua vigência.

Ao dar uma nova roupagem ao instituto da colaboração premiada, a Lei 12.850 prescreve alguns requisitos que devem ser observados para a obtenção do acordo de colaboração:

Art. 4º.O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:

I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;

II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;

III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;

IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;

V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. § 1º.Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração.

§ 2º.Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). [...]

Para que sejam aplicados os benefícios legais negociados entre o colaborador e o Estado, devem ser observados os requisitos elencados nos Incisos I a V do Artigo 4º da Lei nº 12.850/13. Os requisitos supracitados são alternativos e não cumulativos, de forma que a obtenção de apenas um deles já dá ensejo à formalização do acordo. Vale ressaltar também que a eficácia da colaboração é condição fundamental para a concessão dos benefícios descritos no termo de acordo (MENDONÇA, 2013).

Ainda de acordo com a Lei nº 12.850/13, o § 7 do Artigo 4º traz alguns pressupostos que devem ser observados para a formalização da colaboração:

Art. 4 § 7º Realizado o acordo na forma do § 6º, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor.

No processo de formalização da colaboração, a lei menciona a regularidade, a legalidade e a voluntariedade como pressupostos para a validação do acordo. A voluntariedade do colaborador é fundamental para a consolidação do acordo, pois pode haver o cometimento de excessos na busca de uma confissão do acusado ou indiciado, caracterizando assim a ilicitude da prova alcançada em decorrência da impossibilidade da obrigação do acusado de se autoincriminar ou colaborar com as investigações (SILVA, 2014).

Por sua vez, a legalidade do acordo remete à harmonização entre os termos do acordo e o ordenamento jurídico vigente. Nesse caso, deverá o magistrado proceder à análise do documento que contém as especificidades do acordo e verificar se estão em sincronia com a lei e com a Constituição. Como exemplos de infrações de legalidade estão o acordo proposto por delegado de Polícia sem a ratificação do Ministério Público ou a ausência do defensor nas tratativas referentes ao acordo (LIMA, 2014).

Já a regularidade, ou efetividade da colaboração, é caracterizada pelo dever de colaboração permanente do delator, que deve permanecer à disposição das autoridades até o deslinde do processo judicial (SILVA, 2014).

Em termos gerais, a Lei 12.850/13 aumentou os benefícios concedidos ao colaborador, prevendo não apenas a redução da pena, como também o perdão judicial e a substituição da pena restritiva de liberdade pela restritiva de direitos. A referida lei também ampliou significativamente o rol de resultados para a concessão de possíveis benefícios e, além disso, estabeleceu direitos ao colaborador, tal como instituiu requisitos de validade do termo de acordo com a colaboração celebrada.

2.3 ENFOQUE PRINCIPIOLÓGICO DA COLABORAÇÃO PREMIADA

Nesta parte será feita a análise da colaboração premiada frente aos princípios do processo penal.

2.3.1      A ética e a moral na colaboração premiada

Em tempos de crise ética e moral em estamos vivendo, surge a necessidade de se analisarem as mais variadas questões morais. E o direito não fica longe dessa análise, pois ele faz parte do resultado da evolução histórica e da consequência de determinados paradigmas sociais que norteiam uma sociedade.

Ao partirmos desse pressuposto, isto é, de que o Direito é, ao mesmo tempo, parte e objeto, verificamos que toda norma ou instituto jurídico deve ter suas premissas questionadas, não quanto a sua justiça, mas no que se refere à sua legitimidade.

Tratando do assunto, Luiz Flávio Gomes (2005, p. 18) aduz:

A traição não é uma virtude, não deve ser estimulada, entretanto, em termos investigatórios não se pode deixar de reconhecer que ela eventualmente pode ser útil. O modelo eficientista de Justiça na pós-modernidade está preocupado, de qualquer maneira, mais com sua eficácia prática (com resultados práticos) que com princípios éticos. Por isso é que se pode dizer que o instituto da delação premiada tende a ter cada vez mais aplicação.

Ao se referir ao instituto da colaboração premiada, Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 398) lista alguns pontos discutíveis:

São pontos negativos da delação premiada: a) oficializa-se, por lei, a traição, forma antiética de comportamento social; b) pode ferir a proporcionalidade da aplicação da pena, pois o delator receberia pena menor do que os delatados, cúmplices que fizeram tanto ou até menos que ele; c) a traição, em regra, serve para agravar ou qualificar a prática de crimes, motivo pelo qual não deveria ser útil para reduzir a pena; d) não se pode trabalhar com a ideia de que os fins justificam os meios, na medida em que estes podem ser imorais ou antiéticos; e) a existente delação premiada não serviu até o momento para incentivar a criminalidade organizada a quebrar alei do silêncio, que, no universo do delito, fala mais alto; f) o Estado não pode aquiescer em barganhar com a criminalidade; g) há um estímulo a delações falsas e um incremento a vinganças pessoais.         

Entretanto, o doutrinador não para por aí. Na tentativa de sustentar a viabilidade do instituto, Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 399) continua e rebate pontualmente cada uma das negativas apontadas, mostrando e demonstrando a validade da colaboração premiada:

[...] São pontos positivos da delação premiada: a) no universo criminoso, não se pode falar em ética ou em valores moralmente elevados, dada a própria natureza da prática de condutas que rompem com as normas vigentes, ferindo bens jurídicos protegidos pelo Estado; b) não há lesão à proporcionalidade na aplicação da pena, pois esta é regida, basicamente, pela culpabilidade (juízo de reprovação social), que é flexível. Réus mais culpáveis devem receber pena mais severa. O delator, ao colaborar com o Estado, demonstra menor culpabilidade, portanto, pode receber sanção menos grave; c) o crime praticado por traição é grave, justamente porque o objetivo almejado é a lesão a um bem jurídico protegido; a delação seria a traição de bons propósitos, agindo contra o delito e em favor do Estado Democrático de Direito; d) os fins podem ser justificados pelos meios, quando estes forem legalizados e inseridos, portanto, no universo jurídico; e) a ineficiência atual da delação premiada condiz com o elevado índice de impunidade reinante no mundo do crime, bem como ocorre em face da falta de agilidade do Estado em dar efetiva proteção ao réu colaborador; f) o Estado já está barganhando com o autor de infração penal, como se pode constatar pela transação, prevista na Lei nº 9.099/95. A delação premiada é, apenas, outro nível de transação; g) o benefício instituído por lei para que um criminoso delate o esquema no qual está inserido, bem como os cúmplices, pode servir de incentivo ao arrependimento sincero, com forte tendência à regeneração interior, o que seria um dos fundamentos da própria aplicação da pena; h) a falsa delação, embora possa existir, deve ser severamente punida; i) a ética é juízo de valor variável, conforme a época e os bens em conflito, razão pela qual não pode ser empecilho para a delação premiada, cujo fim é combater, em primeiro plano, a criminalidade organizada.

Analisar o instituto da colaboração como antiético é um tanto quanto incontroverso, pois podemos suscitar um questionamento: existe ética no crime organizado? Se houvesse uma resposta para essa problemática, certamente, ela seria negativa. José Alexandre Marson Guidi (2006, p. 147) também não acredita na "ética criminosa" ao dizer que: “é incorreto afirmar que se o criminoso se arrepender e delatar seus comparsas estará agindo contra a ética, pois ele assim estará agindo se não o fizer”.

2.3.2 Princípio da dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental do Estado Democrático de Direito a essa categoria erigido por ser um valor central do direito que preserva a liberdade individual e a personalidade, portanto, um alicerce de todo o ordenamento jurídico pátrio.

O princípio da dignidade da pessoa humana está disposto no Art. 1º, Inciso III da Constituição Federal de 1988 (ipsis litteris):

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: 

[...] III- a dignidade da pessoa humana.

De acordo com os ensinamentos de Nelson Nery Junior (2006, p.118), temos que:

O princípio da dignidade da pessoa humana é tão importante que a própria Constituição o coloca como um dos fundamentos da República. É o primeiro e mais importante, a razão de ser da proteção fundamental do valor da pessoa. Apresenta-se como fundamento axiológico do direito.

Corroborando o assunto, Ingo Sarlet (2004, p. 107-109) preleciona:

O princípio da dignidade da pessoa humana, expressamente enunciado pelo art. 1º, inc. III, da nossa CF, além de constituir o valor unificador de todos os direitos fundamentais, [...] também cumpre função legitimatória do reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, decorrentes ou previstos em tratados internacionais [...] Com o reconhecimento expresso, no título dos princípios fundamentais, da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado Democrático (e Social) de Direito (art. 1º, inc. III da CF), o Constituinte de 1987/88, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal do próprio Estado, reconheceu expressamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não ao contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não o meio da atividade estatal.

Para que o Estado se utilize da colaboração premiada, deve haver o exame de sua proporcionalidade e adequação ao fim a que se propõe, qual seja, a investigação criminal. Destarte, deve-se verificar qual interesse merece prevalecer: a segurança pública ou a dignidade da pessoa humana, uma vez que o Estado passa a negociar com o criminoso, transformando-o em um possível objeto de troca.

Diante disso, parte da doutrina sustenta que o uso da delação premiada não respeita a dignidade da pessoa humana. Isso porque, segundo essa corrente, a negociação do Estado com o delator objetiva a aferição de uma investigação criminal eficaz, o que transforma o ser humano em um objeto de troca, igualando-o a uma mercadoria qualquer (SANTOS, 2007).

Esse entendimento não se sustenta, haja vista que, para manter a segurança pública, o Estado não necessita violar o princípio da dignidade da pessoa, ou seja, eles não se excluem mutuamente. Assim, não se configura a violação da dignidade da pessoa humana porque, na colaboração, o criminoso não é obrigado a “negociar”, sendo esse um ato de iniciativa pessoal. As leis que tratam dos benefícios concedidos ao colaborador colocam como característica indispensável a voluntariedade e/ou espontaneidade do agente. Assim, não há qualquer ato de violência em relação ao sujeito. Mesmo que o acordo seja sugerido por terceiros, respeita-se a liberdade de escolha do indivíduo e a decisão última é dele, não se interferindo em seu ânimo para delatar ou não (COSTA, 2008).

Além disso, tem-se também a preservação do direito constitucional ao silêncio do preso, visto que a espontaneidade e/ou voluntariedade é condição indispensável para a efetividade da colaboração.

2.3.3 Princípio do contraditório e da ampla defesa

Conforme prevê o Artigo 5º, Inciso LV da Constituição Federal, o princípio do contraditório é a possibilidade de as partes envolvidas no processo terem direito de se manifestarem, devendo haver um equilíbrio na relação estabelecida entre a pretensão punitiva do Estado e o direito à liberdade e à manutenção do estado de inocência do acusado.

Para o professor Alexandre de Moraes (2008, p.366), contraditório e ampla defesa caminham juntas:

Ampla defesa é a segurança do réu, para trazer ao processo todos os elementos que possam de qualquer forma esclarecer a verdade ou até mesmo se calar, quando necessário. Na medida que o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, ou seja, quando for produzido qualquer ato no bojo do processo deve caber igual direito à parte de se manifestar.

No que se refere ao momento do contraditório, Antônio Scarance Fernandes (2010, p. 67-68) explica:

A constituição não exige, nem nunca exigiu, que o contraditório fosse prévio ou concomitante ao ato em razão de existirem atos privativos de cada uma das partes. E exemplifica sua assertiva com seguinte situação: as medidas cautelares em geral e também as perícias, determinadas durante a investigação sem a audiência do suspeito ou indiciado e sem participação do advogado.

E continua o professor:

Nestes casos, a observância do princípio do contraditório é feita depois, quando for dada a oportunidade ao acusado de, na fase processual, contestar a providência cautelar ou de combater a prova pericial realizada no inquérito. Fala-se em contraditório diferido ou postergado.

Segundo Antônio Carlos Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco (2010, p. 63), com o processo instaurado, a colaboração premiada deve passar pelo contraditório, pois:

Não existe acusação nesta fase [do inquérito policial], onde se fala em indiciado (e não acusado, ou réu), mas não se pode negar que após o indiciamento surja o conflito de interesses, com litigantes (art. 5º, inc. LV, CF). Por isso, se não houver contraditório, os elementos probatórios do inquérito não poderão ser aproveitados no processo [...] além disso, os direitos fundamentais do indiciado hão de ser plenamente tutelados no inquérito.

Conclui-se assim que o contraditório na delação não deixa de ocorrer, pelo contrário, entende-se que, nos casos de delação premiada, o contraditório não pode ser garantido desde logo sob pena de total insucesso, por isso tem sua aplicação diferida (KOBREN, 2006).

2.3.4 Princípio do nemo tenetur se detegere (não produzir provas contra si mesmo)

O princípio do direito de não produzir prova contra si mesmo é consagrado pela nossa constituição como um princípio fundamental do indivíduo que esteja na posição de investigado ou acusado.

Nesse sentido, João Claudio Couceiro (2004, p.152) aduz:

O direito ao silêncio integra um direito maior de todo homem a não colaborar na produção de qualquer prova que procure prejudicá-lo. Este direito de não colaborar pode ser compreendido, no que se refere à audiência do imputado, em direito de não ser ouvido e direito de calar. O direito ao silêncio e o direito de não ser interrogado são espécies do direito de não de não colaborar, não ser confundido entre si.

No que se refere à colaboração, temos as palavras de Maria Elizabeth Queijo (2003, p. 55) que esclarece o seguinte:

Para que ela possa ser válida e possa servir como meio de prova, é imprescritível que o delator tenha ciência do negocio jurídico que estará estabelecendo, das suas repercussões e alcances, bem como tenha sido efetuado em condições de plena liberdade psíquica, não podendo haver coação, fraude ou violência, ou linguagem que leve ao erro o imputado. Deverá também, a autoridade e um advogado, que esteja na investigação e seja de sua confiança, esclarecer sobre a não obrigação de colaborar. Porém querendo ele colaborar, deverá expressar sua livre vontade e consentimento.

O colaborador que expõe fatos de um terceiro o faz na condição de réu, sendo a incidência do princípio de não produzir provas contra si mesmo um direito inerente a ele. Todavia, é direito seu também abrir mão desse direito. Sendo assim, não há de se falar em violação do presente direito, pois somente ocorre a violação quando o direito é desrespeitado, o que não ocorre com o colaborador, já que o mesmo abdica do seu direito para obter outras vantagens que ele julga mais interessantes.

Além de ter o direito de não produzir provas contra si mesmo, o colaborador tem deveres. E um dos deveres é o compromisso de dizer a verdade. Nesse momento, é importante abrir um adendo e analisar que, embora não haja ofensas a princípios processuais penais consagrados na constituição, a colaboração premiada tem percalços quando se analisam os casos concretos. E um desses percalços gira em torno do próprio colaborador que, ao fazer a sua colaboração, não tem a obrigatoriedade de falar a verdade.

Muito do sucesso de uma colaboração premiada gira em torno da ajuda do colaborador. Aquilo que ele vai dizer, e até mesmo o que ele não vai dizer, será de suma importância no processo. Se houver mentiras, há obstáculos. Por óbvio, o que já foi dito é aproveitado no processo, mas não há uma punição para o colaborador mentiroso, perdendo ele apenas os benefícios premiais da sua colaboração. Nesse sentido, é necessário adentrar na análise do crime de perjúrio. 

2.4 PERJÚRIO NO DIREITO BRASILEIRO

Neste item será abordado o crime de perjúrio e a sua possibilidade de inserção no ordenamento penal brasileiro.

2.4.1 Perjúrio x Outros crimes tipificados no código penal brasileiro

Perjúrio é um juramento falso ou violação de um juramento feito. No âmbito jurídico, o perjúrio consiste no crime aplicado ao acusado que falta com a verdade no processo quando está em compromisso de dizer a verdade.

No Brasil, guardadas as devidas proporções, temos o crime de falso testemunho, que tem uma abordagem diferente do perjúrio, porque, no falso testemunho, o réu é excluído do rol das pessoas que cometem o crime, como consta no Artigo 342 do Código Penal:

Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral[...]

Então, é possível inferir que o acusado tem o direito de mentir no processo penal brasileiro? De acordo com a redação atual do Código Penal, é possível interpretar dessa forma, mas é impositivo destacar também que as afirmações falsas do acusado não podem violar os direitos de terceiros que não fazem parte da organização, pois o Código Penal prevê crimes específicos para os casos em que o investigado ou a parte faz afirmação falsa contra terceiros, como os crimes de calúnia e denunciação caluniosa.

Calúnia. Artigo 138 CP: Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime [...]

Denunciação Caluniosa. Art. 339 CP. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente[...]

2.4.2 Ausência do crime de perjúrio como um possível entrave na colaboração premiada

O Ordenamento Jurídico Brasileiro não tipifica, em seu bojo, o delito de perjúrio, apesar de estar em tramitação um Projeto de Lei (PL 4.192/15) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ da Câmara). O referido texto do Projeto de Lei prevê o seguinte:

Art. 343-A. Fazer afirmação falsa como investigado ou parte em investigação conduzida por autoridade pública ou em processo judicial ou administrativo:

Pena – prisão, de um a três anos.

§ 1º As penas aumentam-se de um sexto a um terço se o crime é cometido em investigação criminal ou em processo penal.

§ 2º O fato deixa de ser punível se, antes do julgamento no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade.

Ocorre que o Projeto de Lei esbarra num possível conflito com o direito constitucional ao silêncio e com o direito de não se autoincriminar, sendo, a priori, inviável no ordenamento brasileiro.

Em relação ao direito ao silêncio, de acordo com o Código de Processo Penal, temos que:

Art. 186 CPP. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

O perjúrio esbarra também no princípio constitucional de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Esse direito é conhecido como o princípio nemo tenetur se detegere e está consagrado na CF/88:

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

Essa máxima remonta não só a quem estiver preso, mas a toda pessoa que estiver sendo acusada. Assim, ninguém que se recusar a produzir prova contra si pode ser prejudicado juridicamente.

Todavia, é imprescindível salientar que, nos EUA, a 5ª Emenda à Constituição também prevê o direito ao silêncio e à não autoincriminação. Logo, há no sistema jurídico norte-americano o crime de perjúrio em harmonia com os direitos supracitados. Por conseguinte, caso o réu faça afirmação falsa, estará concretizado o crime de perjúrio. Assim, nos EUA, o perjúrio é crime até para o réu. Naquele país, além de testemunhas e peritos, os acusados também são obrigados a jurar que vão dizer “a verdade e apenas a verdade” ao longo do processo.

Além disso, se formos analisar o perjúrio sob a ótica da colaboração premiada, não há ofensa aos princípios constitucionais ora citados, visto que o colaborador não perde os seus direitos, mas ele apenas abdica desses direitos por outros que ele mesmo julga mais importantes.

A ausência do perjúrio como crime pode ser ainda um obstáculo para que a colaboração premiada seja plena. Ocorre que o colaborador tem o dever de dizer a verdade, por assim dizer, um compromisso, mas não uma obrigação, porque não há lei que regulamenta a sua conduta. Isso pode fazer com que a colaboração não seja tão efetiva, haja vista que o colaborador passa a ter o “direito” de omitir aspectos importantes e falar apenas o que lhe convém. Por isso, é de suma importância analisar o projeto de lei com mais atenção com o objetivo de possibilitar a inserção do perjúrio na legislação pátria.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo partiu da premissa de que um instituto penal, assim como qualquer outro, deve ser reiteradamente analisado ao longo do espaço e do tempo para fazer jus tanto à sua viabilidade quanto à sua constitucionalidade. O direito não é imutável, pelo contrário, muda o tempo todo. Uma lei que foi declarada constitucional e inserida no ordenamento jurídico num momento específico, pode, posteriormente, ter a sua constitucionalidade revogada ou até mesmo questionada.

Uma leitura mais apressada sobre o instituto da colaboração leva ao entendimento de que ele fere algum dos princípios do processo penal, todavia, quando se confronta o instituto da colaboração com os princípios processuais penais, não há óbices. Ademais, pode haver interpretações divergentes quanto à sua utilização, as quais, em sua maioria, giram em torno de questões morais ou éticas, mas, quando a análise se aprofunda no campo dos princípios, não há de se falar em agressão a nenhum princípio processual penal, muito menos à inviabilidade que impeça a efetiva utilização do instituto. Não é de se olvidar ainda que, quando o legislador delimita as regras para a colaboração premiada, ele não tem como fim a contemplação do interesse do colaborador ao propenso benefício, pelo contrário, a finalidade era e sempre foi o interesse superior da coletividade e a segurança jurídica.

Nesse sentido, o presente artigo analisou a viabilidade do instituto da colaboração. E a análise principiológica, proposta como o alicerce deste trabalho, nada mais é que a verificação da constitucionalidade da colaboração frente aos princípios processuais penais e, porque não dizer, frente à própria Constituição Federal.

Ao analisar o instituto da colaboração premiada, foi necessário fazer alguns adendos que serviram para levar a discussão de sua viabilidade a um âmbito efetivo. Como primeiro aspecto, é necessário que fique claro que as pessoas que são delatadas, se constituem, em tese, em partícipes ou cooperadores de uma rede criminosa. O segundo ponto relevante gira em torno do interesse social. Aqui, não se analisa a ética pela via crucis do delator, pois, no crime, não há ética, mas o olhar tem que estar voltado para a sociedade, pois o réu, ao delatar, esta sendo ético com a sociedade. E um terceiro ponto, tem-se que a colaboração é pautada em indícios que serão investigados posteriormente, quando será feita a prova de admissibilidade dos mesmos. Sendo assim, a colaboração não é uma prova em si mesma se não vier acompanhada de outras provas.

Pelo caminho percorrido por este trabalho, conclui-se pela constitucionalidade do instituto da colaboração frente aos princípios processuais penais, porém, em que pesem as críticas que sofre, o presente estudo é favorável à aplicabilidade dos procedimentos da colaboração premiada não de forma aleatória e sem critérios, mas de forma gradual e específica pautada na transparência das provas obtidas e na efetiva contribuição do colaborador, mas que seja feita, observando-se as particularidades de cada caso.

Embora não haja ofensas a princípios processuais penais, a colaboração premiada se depara com percalços que necessitam ser superados ou, na melhor das hipóteses, melhorados. Nesse cenário de promover uma eficácia ainda maior ao presente instituto é que surge o crime de perjúrio. Emerge, assim, a título de reflexão, a sugestão para que o projeto de Lei que criminaliza o perjúrio no ordenamento brasileiro seja visto com bons olhos, tendo em vista a sua importância na colaboração premiada.

E, por fim, este artigo sinaliza para a necessidade de se criar uma lei específica que aborde a colaboração premiada nas suas diversas nuances, ou seja, um instrumento que complemente as formalidades procedimentais da Lei de Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/13) que, atualmente, traz os pressupostos e requisitos para a formalização da colaboração. Isso é importante para que a colaboração premiada não se torne uma via de mão dupla, ou seja, porta de entrada e a de saída das prisões, em que se prende para delatar e delata-se para sair da cadeia.

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