O direito sucessório na filiação socioafetiva

O direito sucessório na filiação socioafetiva

Análise dos direitos sucessórios no concernente à filiação afetiva, também chamada de posse de estado de filho, bem como do direito dos descendentes herdeiros e a igualdade perante os filhos consanguíneos ou adotivos.

I - Introdução

O conceito do instituto família sofreu significativas mudanças com o passar dos anos, e já não pode ser considerado o mesmo de séculos, ou até mesmo décadas atrás. Utilizando-se de um pensamento mais retrógrado, apenas se considera família a entidade formada por um pai, uma mãe e seus filhos. Porém a sociedade demonstra que esta não é a efetiva realidade, pois há a existência de diversas formações de família, como as monoparentais, anaparentais, pluriparentais, formadas por união estável, por casamento, entre diversas outras. 

Com o advento da Constituição Federal em 1988 instituiu-se a igualdade entre todos os cidadãos, e em decorrência disso, ao viger o Código Civil em 2002 instaurou-se o princípio da igualdade entre os filhos. 

Por meio deste princípio, as discriminações que ocorriam no Código Civil de 1916 não eram mais aceitas no ordenamento jurídico, tais como os termos: filho adotivo, em discriminação ao consanguíneo; filho bastardo, em casos de relacionamentos extraconjugais que gerassem frutos. De acordo com a nova lei, qualquer discriminação não seria aceita, e isso gerou reflexos nos direitos dessas proles, como, por exemplo, direito a alimentos, guarda ou sucessão. 

Além dessas possibilidades de filiação consanguínea e adotiva, uma nova forma de paternidade vem sendo admitida como legítima, e, deste modo, podendo ser regulada pelo Direito: A socioafetividade. Para este modelo de paternidade, o laço consanguíneo que ata duas pessoas não é relevante, tampouco a lei que os define como pais e filhos. O que importa neste caso é a afeição mútua e o sentimento de “ser pai” ou “ser filho” que uma pessoa sente pela outra. 

A socioafetividade ainda encontra muitos obstáculos no concernente aos direitos e deveres destas pessoas, e também quando ela envolve a multiparentalidade. Neste caso, há uma concomitância entre os pais biológicos e os afetivos, sendo que esta confusão de direitos é até mesmo matéria de Jurisprudência em nossos tribunais. Apesar de ser uma matéria relativamente nova no campo legal, as situações de famílias formadas por socioafetividade já existem a tempos, e somente agora o direito tenta alcançar o avanço da sociedade.

O presente artigo tratará, portanto, da Socioafetividade, e como os direitos sucessórios influenciam nesta nova modalidade de paternidade. 

II – Filiação Socioafetiva

Para compreender o instituto de filiação socioafetiva é necessário falar sobre posse de estado de filho. Essa posse de estado ocorre quando as pessoas usufruem de alguma condição jurídica que não corresponde integralmente com a verdade dos fatos. Como no caso da filiação socioafetiva, há a posse do estado de filho, intimamente ligada à posse do estado de pai, este último designado por Fabíola Santos Albuquerque. O estado de filiação, juridicamente, não é verdadeiro, pois nestes casos não existe adoção ou consanguinidade que os una. Porém, a aparência fática permite que todos acreditem nesta filiação, e a tutela da aparência é o que gera juridicidade a esta realidade inexistente. 

Embora a filiação afetiva seja aceita na sociedade brasileira, e passe a ser reconhecida como família no direito atual, ela não se encontra expressamente tutelada no ordenamento jurídico. Para que ela seja reconhecida, é necessária a presença de alguns requisitos, segundo os dizeres de Maria Berenice Dias: Tractatus: quando o filho é tratado como tal pelos pais, e assim apresentado; Nominatio: O filho usa o nome da família e se apresenta como integrante deste círculo; e Reputatio: Socialmente ele é reconhecido como pertencente à família de seus pais. Segundo Paulo Lôbo, estes três requisitos não precisam estar presentes conjuntamente, sempre se favorecendo o estado de filiação em casos de dúvida. 

Com a finalidade de se reconhecer a posse do estado de filho, o direito considera suficientemente satisfatória a aparência. Isto ocorre, pois, a condição de filiação baseada nos laços de afeto se torna mais importante do que o caráter de consanguinidade ou adoção. O vínculo afetivo que une as pessoas recebe um valor jurídico muito maior. A filiação é um elemento essencial para a formação da identidade e definição de uma personalidade de uma pessoa. É considerada uma adoção de fato. O pai socioafetivo é aquele que esteve presente na vida do filho nos bons e nos maus momentos, criando com ele um vínculo afetivo que lei alguma poderia quebrar. 

É possível notar que o laço consanguíneo, que antes era fator determinante para se caracterizar a paternidade, não é mais relevante. Valoriza-se mais o laço afetivo que une duas pessoas. O parentesco psicológico tem maior importância, nesses casos, do que a verdade biológica. 

Em alguns Estados, a filiação socioafetiva poderá ser reconhecida sem que seja necessário mover uma ação judicial, sendo levada a efeito diretamente perante o Cartório de Registro Civil, apenas. Para que isto ocorra, não pode haver paternidade registral, e basta a anuência por escrito do filho maior de idade. 

III – O Direito Sucessório na filiação socioafetiva:

A sucessão a que se faz menção este artigo é a utilizada em sentido estrito no direito, que designa uma transmissão de titularidade de direitos em decorrência da morte de alguém. Disciplina apenas o patrimônio do de cujus, ou seja, o ativo e o passivo do autor da herança aos seus sucessores. Fica claro aqui que as dívidas deixadas pelo morto também se transmite aos herdeiros, no limite da herança. Não se pode esquecer que o direito sucessório se refere apenas à morte, então, está relacionado às pessoas naturais, pois as jurídicas não têm capacidade de disposição de última vontade. 

O princípio da saisine, talvez o mais importante para o direito sucessório, está previsto no artigo 1.784 do Código Civil, que dispõe que a herança se transmite, desde logo, aos herdeiros. O próprio de cujus, no momento de sua morte, transmite aos seus sucessores a posse e a propriedade da herança. A transmissão se torna coincidente ao momento da abertura da sucessão, e também à morte. É necessário, porém, que o herdeiro exista ao tempo da relação, ou que esteja, ao menos, concebido, de modo que não é possível transmitir algo a quem não nasceu ainda, ou já está morto; e que tenha capacidade de herdar. Ela é válida tanto para os herdeiros naturais, como para os legatários. 

A primeira classe de herdeiros presente na vocação hereditária é a dos descendentes. Eles figuram como herdeiros necessários e antecedem o direito dos ascendentes e dos cônjuges, sendo que estes últimos podem concorrer com os descendentes. Excluem os direitos de herdar das classes seguintes, ascendentes, cônjuges e colaterais, pois esse chamamento a receber a herança é sucessivo e excludente. A escolha dos descendentes como os primeiros na classe de herdeiros se dá por razões de afetividade, e por serem eles os mais jovens à época da morte. 

Sendo os descendentes os primeiros aptos a receberem a herança, deve se analisar novamente o princípio da igualdade entre os filhos. Como já dito, não se admite diferenciação entre os filhos, sejam eles consanguíneos, adotivos, ou que possuam posse de estado de filho. Já mencionado, a tutela jurídica dada à afetividade se torna maior do que a disponibilizada para o direito consanguíneo, já que, por muitas vezes, há mais afeto, amor e reconhecimento daquele que não é parente do que daquele que gerou o indivíduo.

Há uma resolução do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) acerca deste assunto. É o enunciado 6: Do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental. A posse de estado regulamenta realidades fáticas não existentes na realidade natural, mas que adquirem suporte e relevância jurídica. O filho afetivo não poderá ser impedido de ter o reconhecimento de um direito apenas pela falta de formalização. 

Maria Berenice Dias se posiciona da mesma maneira diante do assunto em seu Manual de Direito de Famílias, e também no Manual das Sucessões. O direito sucessório é um dos relacionados à filiação, sendo assim, o reconhecimento dos direitos sucessórios ao filho afetivo é visível. Esta tese também pode ser defendida quando se analisa os filhos de criação. Eles são enquadrados na filiação socioafetiva, que, segundo Paulo Lôbo, corresponde a “veementes presunções de fatos já certos”. Se é considerado como filho, deverá ser considerado como herdeiro. 

Este reconhecimento está baseado nos princípios do melhor interesse da criança e do adolescente, quando o filho é menor de idade; ou, se ele for maior, no princípio da dignidade da pessoa humana, pois, segundo Maria Berenice, geraria um parentesco de “segunda classe”, o que não é admitido. 

IV – Conclusão

Diante de todo o exposto, pode se chegar à conclusão de que a filiação afetiva, também conhecida por posse de estado de filho, garante todos os direitos e deveres que uma filiação consanguínea ou adotiva garantiria. E isto tem seus reflexos no direito sucessório, ramo em que os descendentes do de cujus são os primeiros a contemplar o direito à herança. Não há dúvidas após a resolução 6 do IBDFAM, já que qualquer discriminação violaria um dos princípios básicos do direito de família: o da igualdade jurídica dos filhos. Vale lembrar que, ao mesmo tempo em que estes herdeiros recebem os direitos da herança, devem receber também seus encargos e deveres. 

Sobre o(a) autor(a)
Verônica de Souza Ferreira
Graduação e Licenciatura Plena em Letras - 2013 (Barão de Mauá - Ribeirão Preto) Graduação em Direito - 2014 a 2018 (UNAERP - Universidade de Ribeirão Preto - Campus Ribeirão)
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