O artigo 28 do CPP e a figura do promotor natural

O artigo 28 do CPP e a figura do promotor natural

A aplicação pelo Juiz do artigo 28 do Código de Processo Penal como violação da figura do promotor natural e sua independência funcional.

Tempos atrás, nosso Escritório foi procurado pela namorada de um rapaz, preso em flagrante pela prática dos crimes de tráfico de drogas e receptação.

Em suma, o rapaz havia se deslocado até uma “boca” e efetuado a compra de um quilo de maconha – segundo ele, para consumo próprio, pois era final do ano e não queria ficar comprando “de pouquinho”. Como não possuía condições de levar a droga para casa sem ser percebido, pegou emprestado o carro do vendedor que, por sua vez, possuía alerta de furto, afinal, não podemos esperar nada menos que isso.

O rapaz, portanto, chegou em sua casa, estacionou o carro na garagem, guardou a droga no armário do seu quarto e foi dormir.

Poucas horas depois, o rapaz se deparou com a polícia militar dentro de sua garagem, fazendo averiguações no veículo. Desceu de encontro aos policiais e logo lhe foi dada voz de prisão, sendo algemado e colocado sentando ao chão.

Feito isto, os policiais adentraram na residência, segundo relato dos mesmos, com autorização do rapaz – até porque, quem seria louco o suficiente de não autorizar – revistaram todos os cômodos, armários e por aí vai, até que encontraram a droga recém adquirida.

Levado até a delegacia, procedimentos de praxe adotados, enquadrado pela prática do crime de tráfico de drogas e receptação, o Ministério Público no plantão opinou pela conversão da prisão em flagrante em preventiva, assim também entendendo o Juízo do plantão, ignorando completamente a existência de qualquer ilegalidade na prisão, pois se tratavam de crimes permanentes e já sabemos bem onde a coisa termina.

Impetrado habeas corpus, o rapaz foi colocado em liberdade, lhe sendo aplicadas as medidas alternativas diversas da prisão.

Pois bem! Distribuído regularmente o processo, encaminhado ao promotor vinculado à Vara, este, surpreendentemente apresentou denúncia tão somente pela prática do crime de receptação, afinal de contas constatou-se diversas ilegalidades na atuação da Polícia Militar, determinando o arquivamento do inquérito em relação ao crime de tráfico, vez que violadas diversas garantias constitucionais, o que macularia a prova colhida.

Com isso, o Juiz – que no final das contas é o dono da bola, do campinho e do apito – rejeitou a promoção de arquivamento do inquérito, uma vez que a residência só se considera asilo inviolável quando respeitada sua finalidade precípua de recesso do lar (sic). Ou seja, casa só é casa caso você não tenha drogas guardas lá, caso contrário...

Assim, sua Excelência invocou o famigerado artigo 28 do Código de Processo Penal, determinado remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça para que este designasse um promotor para fazer o trabalho não feito pelo anterior.

Assim, o rapaz foi enfim denunciado pela prática do crime previsto no artigo 33 da Lei n. 11.343/06 e, apenas a título de curiosidade, posteriormente sobreveio sentença condenando-o a pouco mais de 6 anos de reclusão. O rapaz permanece em liberdade provisória, aguardando julgamento do recurso de apelação e, muito provavelmente, caso mantida a sentença, será determinada sua prisão, já que a moda da vez é a execução provisória da pena.[1]

Feitas estas considerações iniciais, cumpre nas próximas linhas tecer alguns comentários acerca da figura do Promotor Natural e do artigo 28 do Código de Processo Penal, afinal, sendo o Ministério Público o titular da pretensão acusatória da ação penal, até que ponto deveria o Juiz rever os atos praticados pelo promotor – já que a ação penal nada mais é do que a invocação pela acusação (e tão somente), de que o Juiz exerça a jurisdição - determinando remessa de processo ao Procurador-Geral de Justiça e, até que ponto o promotor possui efetivamente liberdade e independência funcional, ou vivemos de fato numa cultura “punitivista”, em que vale tudo pela prisão.

Pode parecer uma questão muito simples de ser dirimida, até por já estarmos conformados com isto e por termos diversos precedentes inclusive da Suprema Corte, mas penso que devemos olhar para o tema com mais atenção.

Destarte, estabelece o artigo 28 do Código de Processo Penal que: “Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao Procurador-Geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.”

Trata-se, portanto, de uma forma de controle do arquivamento de inquérito policial efetuada pelo Poder Judiciário, em homenagem ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, sendo uma medida administrativa e não jurisdicional, portanto, anormal (Guilherme de Souza Nucci. Código de Processo Penal Comentado, p. 794).

Em síntese, deve o Promotor submeter o seu pedido ao juiz que, analisando o material recebido e as razões invocadas pelo órgão acusatório, pode acatar ou não.

Determinando o arquivamento, somente se reabre a investigação havendo novas provas. Desacolhendo o pedido, deve remeter o inquérito ou as peças de informação ao Procurador-Geral, que deliberará a respeito. Não se trata de uma avaliação de conveniência e oportunidade, mas de legalidade e justa causa para a ação penal. Caso o chefe do Ministério Público entenda que a razão está com o promotor, devolve o inquérito ou as peças ao juiz, insistindo no arquivamento e dando sua fundamentação. Nesse caso, está o magistrado obrigado a acolher o pedido, uma vez que não pode dar início à ação penal sem a participação ativa do Ministério Público. No entanto, acreditando que a razão se encontra com o magistrado, o Procurador-Geral pode denunciar diretamente – o que não costuma fazer – ou designar outro promotor para oferecer, em seu nome, a denúncia. Trata-se de uma delegação e, por esse motivo, o promotor designado não poderá se recusar a dar início à ação penal, sob pena de falta funcional. Ele age em nome do Procurador-Geral, razão por que não há como deixar de ofertar denúncia. Ainda, pode o Procurador-Geral requisitar diligências diretamente à autoridade policial para o seu esclarecimento, inclusive solicitando a produção de provas. Somente após a sua realização, irá se pronunciar quanto ao pedido de arquivamento feito pelo promotor.

Embora seja o Juiz obrigado a acatar a decisão do Procurador-Geral que insistir no arquivamento, estabelece o art. 12, XI, da Lei 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), que cabe ao Colégio de Procuradores de Justiça “rever, mediante requerimento de legítimo interessado, nos termos da Lei Orgânica, decisão de arquivamento de inquérito policial ou peças de informação determinada pelo Procurador-Geral de Justiça, nos casos de sua atribuição originária”.

Pois bem! Estabelecem tanto a Constituição da República quanto a Lei Orgânica do Ministério Público, que é um dos princípios basilares do órgão ministerial a sua independência funcional.

Por sua vez, a independência funcional significa que o membro do Ministério Público possui livre convencimento, não estando atrelado aos demais membros ou pronunciamentos anteriores. Vale dizer, portanto, que o membro do Ministério Público analisa o caso e atua conforme seu próprio entendimento, não sendo obrigado a agir conforme “a maioria”, até mesmo por possuir convicções e interpretações próprias, estando, em tese, livre para “fugir da casinha”.

Tanto é assim, que o próprio Supremo Tribunal Federal decidiu que a pretensão de um órgão do Ministério Público não vincula os demais (ARE 725.491 AgR, rel. min. Luiz Fux).

Em tese, isso também não viola o princípio do promotor natural, cujo tema já se discute há pelo menos 25 anos (HC 67.759, rel. min. Celso de Melo), tendo sido reconhecido somente no ano de 2011 (HC 102.147, rel. min. Celso de Melo).

Nesta oportunidade, o Ministro Celso de Melo reconhece a figura do promotor natural como forma de “tornar mais intensas as prerrogativas de independência funcional e de inamovibilidade dos integrantes do ‘Parquet’. A garantia da independência funcional, viabilizada, dentre outras, pela prerrogativa da inamovibilidade, reveste-se de caráter tutelar. É de ordem institucional (CF, art. 127, § 1º) e, nesse plano, acentua a posição autônoma do Ministério Público em face dos Poderes da República, com os quais não mantém vínculo qualquer de subordinação hierárquico-administrativa”. Vale dizer que, até mesmo por conta da independência funcional, também não há (deveria não haver) subordinação e hierarquia entre os próprios membros do Ministério Público.

Quando o Promotor, portanto, analisa as peças de informação e decide por não apresentar denúncia, o faz com base em sua independência funcional e no princípio do promotor natural (além de conhecer do direito e atuar como fiscal da lei, função precípua do Ministério Público, inclusive).

Quando o Juiz, por mero inconformismo (e por cultura punitivista), pois geralmente sequer fundamenta sua decisão, aplica o artigo 28 do Código de Processo Penal e remete os autos ao Procurador-Geral de Justiça, viola a independência funcional do promotor e a sua figura de promotor natural, violando, até mesmo, a sua figura no processo penal, que é a de julgador e não de acusador. O Juiz que assim age está fazendo o papel de acusador, usurpando a função do Ministério Público.

Por sua vez, recebidos os autos pelo Procurador-Geral de Justiça e, entendendo que o caso é de apresentação de denúncia, quando assim age nomeia promotor de exceção, principalmente porque este é obrigado a apresentar a denúncia, conforme quer o Procurador, violando a garantia do cidadão de não sofrer arbitrária persecução.

Veja-se, por absurdo, que os pedidos de arquivamento de inquéritos revertidos pelo Procurador-Geral de Justiça constam no boletim informativo do promotor, que por conta disto, pode ter prejudicada a movimentação na sua carreira. E por pior, pode até mesmo vir a sofrer procedimentos administrativos por conta da sua (falta de) atuação.

Como dito anteriormente, parece ser um tema batido, já resolvido pela jurisprudência e pela doutrina, mas é de se perguntar, principalmente em tempos de “Lava Jato”, onde tudo pode e nada se garante, se não está na hora de ser revisto esse posicionamento que contribui para uma ditadura judicial.

Notas

[1] Atualização: posteriormente ao início do presente texto, foi descoberto que o rapaz faleceu, por motivos desconhecidos.

Sobre o(a) autor(a)
Thomas Magnun Maciel Battu
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