Pandemia trouxe novos desafios ao Judiciário na análise da situação dos presos
Um ano após registrar a primeira vítima fatal do novo coronavírus, o Brasil contabiliza 277 mil mortes e 11,4 milhões de casos de pessoas infectadas. Em todo o mundo, segundo dados da universidade norte-americana Johns Hopkins, já houve 2,6 milhões de mortes e 119,5 milhões de casos de Covid-19.
A partir da primeira morte reconhecida oficialmente no Brasil, em 12 de março de 2020, a pandemia impôs enormes desafios, não apenas à saúde pública e à economia, mas também ao Poder Judiciário. Além de terem que se adaptar às medidas de distanciamento social, os tribunais foram acionados para enfrentar uma série de questões inéditas relacionadas à crise sanitária.
Desde o princípio, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) precisou se manifestar sobre as implicações da pandemia no sistema prisional, buscando o equilíbrio entre a prevenção da doença, a proteção dos direitos fundamentais do preso e o interesse social tutelado na decisão que levou ao encarceramento – seja para cumprimento de pena, seja em caráter provisório ou até mesmo pela falta de quitação de pensão alimentícia.
Ainda antes da publicação de regras específicas que orientassem os magistrados diante da Covid-19, o tribunal já havia decidido com base na pandemia: em 17 de março de 2020, o ministro Rogerio Schietti Cruz substituiu a prisão preventiva de Astério Pereira dos Santos, ex-secretário de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro, por medidas cautelares diversas, devido ao risco de contágio no presídio.
Na decisão, o ministro explicou que, na atual crise sanitária, a aplicação da Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal (STF) deve ser flexibilizada, salvo situações de necessidade "inarredável" da prisão preventiva – em especial, no caso de crimes cometidos com grande violência ou de pessoas que representem perigo evidente para a sociedade, ou ainda diante de indícios consistentes de risco de fuga, destruição de provas ou ameaça a testemunhas.
No caso de Astério Pereira dos Santos, a acusação é por corrupção e lavagem de dinheiro, sendo ele um dos supostos organizadores da arrecadação de propinas pagas por empresários a agentes públicos. O ministro destacou que os crimes imputados não foram praticados com violência ou grave ameaça contra pessoas.
"Deve-se fortalecer sobremaneira o princípio da não culpabilidade e eleger, com primazia, medidas alternativas à prisão processual, com o propósito de não agravar ainda mais a precariedade do sistema penitenciário e evitar o alastramento da doença nas prisões", afirmou o magistrado.
Para ele, a prisão antes da condenação "é o último recurso a ser utilizado neste momento de adversidade, com notícia de suspensão de visitas e isolamento de internos, de forma a preservar a saúde de todos" (HC 565.799).
Recomendação
No mesmo dia, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Recomendação 62/2020, estabelecendo uma série de regras a serem consideradas pelos juízes para a aplicação do direito penal no contexto da pandemia.
O texto sugere a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pela Covid-19 no âmbito dos estabelecimentos do sistema prisional e do sistema socioeducativo. Segundo o CNJ, as recomendações têm como finalidades a proteção da vida e da saúde das pessoas, a redução dos fatores de propagação do vírus e a garantia da continuidade da prestação jurisdicional.
Entre outros pontos, o normativo recomenda a reavaliação da prisão preventiva, que deve ser vista como medida de máxima excepcionalidade, com atenção para os protocolos das autoridades sanitárias. O conteúdo foi atualizado em outras duas recomendações do CNJ (68 e 78), em junho e setembro.
Imediatamente após a publicação da primeira recomendação, advogados de todo o país começaram a invocá-la em pedidos de habeas corpus, muitos dos quais chegaram ao STJ.
No dia 19 de março, a ministra Nancy Andrighi determinou que um devedor de pensão alimentícia deixasse a prisão civil em regime fechado, passando para a prisão domiciliar. Segundo a ministra, a Recomendação 62/2020 autorizou a substituição da prisão fechada do devedor de alimentos pelo regime domiciliar, para evitar a propagação da doença.
"Diante desse cenário, é preciso dar imediato cumprimento à recomendação do CNJ, como medida de contenção da pandemia causada pelo coronavírus", afirmou a magistrada (processo em segredo de Justiça).
Medida nacional
Na semana seguinte, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino deferiu um pedido da Defensoria Pública do Ceará e determinou que os presos por dívidas alimentícias daquele estado passassem para o regime domiciliar.
Segundo a DP, apesar das orientações do CNJ, a Justiça estadual ainda não havia transferido para o regime domiciliar os presos por dívida de pensão alimentícia, o que justificaria a atuação do STJ no caso. Para Sanseverino, a recomendação é clara ao estimular a adoção de medidas de proteção à saúde.
Uma das preocupações que levaram à edição do normativo, de acordo com o magistrado, é que a aglomeração de pessoas em unidades prisionais insalubres poderia dificultar os procedimentos mínimos de higiene e o isolamento rápido dos indivíduos com sintomas da Covid-19.
"Portanto, considerando o crescimento exponencial da pandemia em nosso país e no mundo, e com vistas a assegurar efetividade às recomendações do CNJ para conter a propagação da doença, concedo parcialmente a liminar para determinar o cumprimento das prisões civis por devedores de alimentos do estado do Ceará, excepcionalmente, em regime domiciliar", concluiu (processo em segredo de Justiça).
Um dia depois, o ministro Sanseverino estendeu os efeitos da liminar aos presos por dívidas alimentícias de todo o país. As condições de cumprimento da prisão domiciliar seriam estipuladas pelos juízes estaduais – inclusive quanto à duração –, levando em conta as medidas adotadas para a contenção da pandemia.
A Lei 14.010/2020, sancionada em junho, criou o Regime Jurídico Emergencial e Transitório (RJET) das relações jurídicas de direito privado no período da pandemia e estabeleceu, em seu artigo 15, que a prisão civil por dívida alimentar deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar – tal como determinado pelo ministro Sanseverino.
Grupo de risco
Um dos critérios da Recomendação 62/2020 para a adoção de regime menos gravoso que o fechado é a classificação do preso no grupo de risco da Covid.
Com base nessa orientação, em 27 de abril, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca determinou que um empresário cumprisse prisão no regime domiciliar, em razão da sua condição de saúde debilitada.
"A declaração pública da situação de pandemia pelo novo coronavírus – Covid-19 –, no dia 30 de janeiro de 2020, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), requer a adoção de medidas preventivas de saúde pública para evitar a propagação do vírus", justificou (HC 563.142).
Entendimento semelhante levou o magistrado a substituir a prisão preventiva de um idoso de 79 anos, integrante do grupo de risco, por medidas cautelares alternativas previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal (CPP).
Reynaldo Soares da Fonseca destacou a necessidade de reavaliação das prisões provisórias das pessoas em grupo de risco. No caso sob análise, ele disse haver informações de que o preso estava com a saúde debilitada, tendo, inclusive, passado mais de um mês de sua prisão preventiva internado em manicômio judiciário (RHC 122.966).
Exigência de fiança
Em 27 de março, o ministro Sebastião Reis Júnior atendeu um pedido da Defensoria Pública e determinou a soltura de todos os presos do Espírito Santo cuja liberdade provisória estivesse condicionada ao pagamento de fiança e ainda se encontrassem na prisão.
Segundo o magistrado, na crise da pandemia, condicionar a liberdade ao pagamento de fiança é medida "irrazoável".
A DP apontou que a superlotação dos presídios no Espírito Santo era "campo fértil" para a propagação do vírus, devendo ser aplicada a recomendação do CNJ que preconiza a máxima excepcionalidade das ordens de prisão preventiva.
No caso das seis pessoas cuja prisão em flagrante motivou a impetração do habeas corpus, o juiz entendeu pela ausência dos requisitos que autorizariam a conversão em preventiva, optando por aplicar medidas cautelares diversas e exigindo a fiança.
"Diante do que preconiza o CNJ em sua resolução, não se mostra proporcional a manutenção dos investigados na prisão, tão somente em razão do não pagamento da fiança, visto que os casos – notoriamente de menor gravidade – não revelam a excepcionalidade imprescindível para o decreto preventivo", afirmou o ministro, acrescentando que o Judiciário não pode ficar alheio aos problemas econômicos decorrentes da pandemia (HC 568.693).
Em 1º de abril, Sebastião Reis Júnior estendeu essa medida para todos os presos do país cuja liberdade estivesse condicionada a fiança.
Liberdade genérica
Também em abril, o ministro Nefi Cordeiro indeferiu o pedido da Defensoria Pública do Distrito Federal para colocar em prisão domiciliar todos os presos incluídos no grupo de risco do coronavírus – entre eles, idosos e pessoas com certas doenças.
Ele mencionou que, segundo o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), não havia omissão das autoridades locais que justificasse a concessão do regime domiciliar de forma indiscriminada.
O habeas corpus foi impetrado no STJ após o TJDFT negar liminar para a mesma finalidade. A Defensoria argumentou que as autoridades não teriam efetivado as medidas necessárias para conter a pandemia no cárcere – objeto da Recomendação 62/2020 do CNJ.
Nefi Cordeiro observou que a reavaliação da privação de liberdade daqueles que se encontram em cumprimento de pena ou prisão processual não pode prescindir da necessária individualização, "sendo indevida a consideração generalizada, avessa às particularidades da execução penal" (HC 570.634).
No mesmo sentido, o ministro Rogerio Schietti Cruz indeferiu um habeas corpus coletivo no qual a Defensoria Pública do Amazonas pedia a concessão de prisão domiciliar para todos os presos do regime fechado do Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, que fossem integrantes do grupo de risco.
"O temor demonstrado pela impetrante é louvável, mas deve ser analisado em cotejo com a missão do direito penal", declarou o ministro, acentuando o risco da liberação de presos perigosos e a necessidade de uma avaliação individualizada dos pedidos.
Segundo Schietti, o surgimento da pandemia não pode ser utilizado como "passe livre" para impor ao juiz das execuções a soltura geral de todos os encarcerados, sem o conhecimento da realidade de cada situação específica (HC 572.292).
Individualização
Durante as férias forenses de julho, o então presidente do STJ, ministro João Otávio de Noronha, indeferiu um pedido da Defensoria Pública para flexibilizar as condições de prisão de todos os detentos em caráter provisório que se enquadrassem no grupo de risco.
Na decisão, Noronha ressaltou que, apesar das orientações do CNJ, é necessária a demonstração individualizada e concreta de que o preso preenche os seguintes requisitos: inequívoco enquadramento no grupo de vulneráveis da Covid-19; impossibilidade de receber tratamento no presídio; e exposição a mais risco de contaminação no estabelecimento prisional do que no ambiente social.
No pedido de habeas corpus coletivo, os autores alegaram que a situação nas penitenciárias brasileiras era de calamidade e que haveria risco de proliferação desenfreada do coronavírus entre a população carcerária. Para eles, apesar dessa situação, não havia uma ação incisiva do poder público para proteger a saúde e a vida dos presos pertencentes ao grupo de risco.
Segundo o então presidente, em relação à aplicação da Recomendação 62/2020, o STJ firmou entendimento no sentido de que a flexibilização da prisão provisória não ocorre de forma automática, sendo necessário identificar a situação concreta do preso e a do estabelecimento em que ele está recolhido (HC 596.189).
Progressão
Ao analisar mais uma impetração de habeas corpus coletivo, em 24 de abril, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca indeferiu o pedido da Defensoria Pública de Santa Catarina para que fosse antecipada a concessão do regime aberto a todos os presos de Florianópolis que cumprissem pena no semiaberto e estivessem para atingir o prazo de progressão nos seis meses seguintes.
O ministro destacou que as orientações do CNJ não implicam a concessão generalizada de habeas corpus, pois é necessário analisar cada caso individualmente. A Recomendação 62 – explicou – aconselha a concessão de saída antecipada do semiaberto para gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por criança de até 12 anos ou por pessoa com deficiência, idosos, indígenas, pessoas com deficiência, presos do grupo de risco e os que estejam em presídios com ocupação superior à capacidade.
Em momento posterior, ao analisar o mérito do pedido, o magistrado reiterou que o pleito não poderia ser atendido de forma genérica.
Para Reynaldo Soares da Fonseca, as situações descritas pela DP não foram comprovadas – nem mesmo a alegação de que os pacientes se encontravam em ambiente superlotado. "A defesa formulou o pedido apenas de forma genérica, baseando-se em uma realidade geral brasileira, que infelizmente também não pode ser resolvida de uma forma geral", explicou.
Segundo ele, se até mesmo o juiz de primeira instância, mais perto dos fatos, não conseguiu julgar o pedido de forma genérica, devido à realidade diversa de cada preso, menos ainda poderia fazê-lo o STJ na análise de habeas corpus, "o qual exige celeridade, sem aprofundamento de questões fático-probatórias" (HC 574.978).
Outras hipóteses
As diretrizes da Recomendação 62 do CNJ também podem ser aplicadas a pessoas fora do grupo de risco. Em abril, o ministro Sebastião Reis Júnior deferiu liminar para conceder prisão domiciliar a uma mulher sentenciada com 23 anos de idade e sem doenças crônicas.
Para o relator, embora ela estivesse fora do grupo de risco da doença, sua situação se enquadrava nas disposições da recomendação.
No habeas corpus, a defesa apontou constrangimento ilegal na decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que negou a liminar. Segundo a defesa, a jovem – condenada a cinco anos e dez meses por tráfico de drogas, no regime inicial semiaberto – é mãe de criança menor de 12 anos e não cometeu crime com violência ou grave ameaça, mas nem assim o juiz da execução autorizou a prisão domiciliar.
Sebastião Reis Júnior destacou que a recomendação indica aos magistrados a concessão de saída antecipada às mães e mulheres responsáveis por crianças de até 12 anos, e também recomenda a concessão de prisão domiciliar a todas as pessoas em cumprimento de pena em regime aberto e semiaberto, mediante condições a serem definidas pelo juiz da execução (HC 570.608).
Descumprimento
Em dezembro, o presidente do STJ, ministro Humberto Martins, determinou que o juízo da Vara de Execuções Criminais de Rosário do Sul (RS) cumprisse imediatamente decisão do ministro Antonio Saldanha Palheiro que concedeu prisão domiciliar humanitária, em virtude da Covid-19, a um homem com Aids e tuberculose condenado por tráfico de drogas. A decisão foi proferida em uma reclamação.
Em março, seguindo as diretrizes da Recomendação 62/2020, o relator concedeu a prisão domiciliar até o julgamento definitivo do habeas corpus. Apesar da decisão do STJ, o juízo da execução determinou o retorno do réu ao cárcere, afirmando que a prisão domiciliar foi concedida em um processo, mas que ele se encontrava no cumprimento de pena por força de outro processo.
O juízo concluiu que o preso não deveria ter sido colocado em regime domiciliar, por haver pena ativa e com saldo restante pendente de cumprimento.
O presidente do STJ enfatizou que a concessão da prisão domiciliar não ficou restrita a essa ou aquela execução, mas foi concedida por questões humanitárias, nos termos recomendados pelo CNJ e tão somente enquanto perdurar a pandemia.
A decisão que autorizou o regime domiciliar – acrescentou Humberto Martins – levou em conta a condição de saúde do preso e o eventual risco de contrair também a Covid-19, e não a existência de uma ou mais execuções penais em andamento, sendo, portanto, aplicável a todo e qualquer processo em que estivesse envolvido (Rcl 41.284).
Esta notícia refere-se aos processos: HC 565799; HC 563142; RHC 122966; HC 568693; HC 570634; HC 572292; HC 596189; HC 574978; HC 570608 e Rcl 41284