Conexões jurídicas internacionais: o direito comparado como fundamento das decisões do STJ

Conexões jurídicas internacionais: o direito comparado como fundamento das decisões do STJ

Corte responsável por dar a última palavra sobre a legislação federal brasileira, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) é frequentemente chamado a decidir sobre situações jurídicas inéditas no Brasil, originadas de uma sociedade em constante transformação. Especialmente em casos novos e complexos, o tribunal muitas vezes recorre ao direito comparado, analisando o sistema jurídico, as leis e a jurisprudência de outros países em busca de referências que possam ajudar no exame da controvérsia em julgamento.  

Embora o sistema jurídico brasileiro tenha origem romano-germânica, os ministros do STJ, quando se socorrem do direito comparado, também analisam normas e decisões de países da Common Law, com destaque especial para os Estados Unidos – exemplo da possibilidade de comunicação entre sistemas distintos, cada vez mais intensa na globalização.

Refúgio

Em 2012, no REsp 1.174.235, a Segunda Turma recorreu ao direito comparado para analisar o caso de um israelense que, tendo ingressado no Brasil com visto de turista, solicitou a permanência no país como refugiado. Após ter a solicitação negada pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), ele ajuizou ação sob o fundamento de que o conflito armado na Faixa de Gaza era notório e, por isso, deveria receber o status de refugiado de forma automática.

Relator do recurso, o ministro Herman Benjamin destacou que, nos países signatários da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados – celebrada em Genebra em 1951 –, o juiz limita sua cognição às questões de legalidade referentes ao pedido de concessão de refúgio e à sua revisão.

O ministro tomou como exemplo a Austrália, que, por ser um típico país de fluxo imigratório, é signatária da convenção desde 1958 e se tornou uma das nações que mais contribuem para o desenvolvimento dos institutos de direito internacional relativos ao asilo e ao refúgio.

Herman Benjamin explicou que, na Austrália, a autoridade administrativa encarregada da análise inicial dos requerimentos de refúgio é o Departamento de Imigração e Cidadania, e as decisões denegatórias são revistas pelo Tribunal de Revisão dos Refugiados, cujos acórdãos são apreciados em última instância pelo Tribunal Administrativo de Apelações.

Já na esfera jurisdicional, apontou o relator, as decisões de última instância administrativa são revistas pela Justiça Federal australiana, que examina apenas os aspectos relacionados ao procedimento, como a observância do contraditório e do devido processo legal.

O ministro também citou casos apreciados pela Corte Superior da Austrália sobre a não aplicabilidade da convenção para proteger exilados por causa de brigas entre clãs ou tribos, além da impossibilidade de incidência do tratado para dar assistência a vítimas de anarquia e perturbação da ordem pública.

Soberania

No mesmo recurso, o ministro analisou julgamento do Tribunal de Justiça Europeu no qual se apreciou possível descumprimento, pela Alemanha, das diretrizes comunitárias sobre a concessão de refúgio.

Nesse caso, descreveu Benjamin, a corte europeia entendeu que as normas devem ser interpretadas no sentido de que uma pessoa perderá o seu estatuto de refugiado quando os fatos que motivaram a concessão do asilo não mais subsistirem de forma duradoura. Na apreciação de alterações do quadro que motivou a concessão do asilo, o tribunal ponderou que as autoridades devem verificar se os agentes de proteção no país abandonado tomam medidas razoáveis para impedir eventuais perseguições.

"Por outro lado, não se pode deixar de ressaltar que o instituto do refúgio constitui uma exceção ao exercício ordinário do controle territorial das nações, uma das mais importantes prerrogativas de um Estado soberano", disse o ministro.

Com base nesse cenário jurídico internacional, o relator apontou, na hipótese dos autos, a existência de fortes indícios de que o pedido de refúgio tenha sido, na verdade, uma tentativa de imigração por via transversa, sem submissão às regras do Estatuto do Estrangeiro, especialmente pelas informações de que o israelense não residia na Faixa de Gaza, mas sim a 200 quilômetros da área de conflito.

"Feitas essas considerações, não há como subverter a lógica estatuída na Convenção do Estatuto dos Refugiados, sob pena de estimular o desvirtuamento do instituto em questão. Ressalto, por fim, que não se trata de fechar as portas do país para a imigração. Estrangeiros sempre foram bem-vindos no Brasil. A questão nodal é o modo pelo qual o procedimento deve se pautar, para evitar que a imigração ordinária seja transformada em refúgio, enfraquecendo a força política e ética deste último", concluiu o ministro.

Reserva do possível

Também sob relatoria do ministro Herman Benjamin, em 2014, a Segunda Turma julgou recurso do Estado de Mato Grosso contra decisão da Justiça estadual que o obrigava a adotar providências e apresentar previsão orçamentária para reformar a cadeia pública de Mirassol D'Oeste ou construir uma nova unidade penitenciária, em razão da situação de risco para os presos no local.

Entre seus argumentos, o estado invocou o princípio da reserva do possível para defender a não interferência do Poder Judiciário nas políticas públicas do Executivo, já que os recursos orçamentários são limitados.

Herman Benjamin reconheceu que, de fato, as limitações orçamentárias são um entrave para a efetivação dos direitos sociais. Entretanto, o relator lembrou que o princípio da reserva do possível, de origem alemã, não pode ser utilizado de forma indiscriminada, principalmente quando estiverem em jogo direitos associados à vida e à integridade física.

Segundo o relator, a situação é completamente diferente nos países pobres ou em desenvolvimento, como no Brasil, onde não foram asseguradas à maioria dos cidadãos condições básicas para uma vida digna. Por esse motivo, Herman Benjamin entendeu que o princípio da reserva do possível não pode se opor, de forma mecânica, ao princípio do mínimo existencial.

"Desse modo, somente depois de atingido esse mínimo existencial é que se poderá pensar, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outros projetos se deve investir. Claro, se não se pode cumprir tudo o que assegurado pela Constituição, deve-se, ao menos, garantir aos cidadãos esse piso basilar de direitos essenciais à vida, entre os quais, sem a menor dúvida, há de se incluir padrão mínimo de dignidade às pessoas encarceradas em estabelecimentos prisionais", finalizou o ministro ao negar o recurso do Estado de Mato Grosso (REsp 1.389.952).

Direitos autorais

No âmbito do direito privado, em 2015, a Quarta Turma discutiu suposta violação de direitos autorais e a responsabilidade da Google pela retirada de anúncios de produtos pirateados na extinta rede social Orkut. Em recurso, a Google questionava sua condenação a pagar indenização e também a obrigação imposta pelas instâncias ordinárias de retirar os conteúdos do ar e fornecer os IPs dos usuários envolvidos.

Além de analisar pontos do então recente Marco Civil da Internet, o ministro Luis Felipe Salomão trouxe no voto casos da Justiça norte-americana nos quais que se debateu em que medida a estrutura do provedor de internet ou sua conduta culposa ou dolosamente omissiva contribuíram para a violação de direitos autorais. "Essa tem sido a investigação realizada em diversos casos no direito comparado, a envolver o cada dia mais presente conflito entre direito autoral e novas tecnologias e, em última análise, a colisão entre direitos privados e coletivos", explicou.

No primeiro caso, julgado em 1984, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu sobre litígio no qual a Universal alegou que a Sony produzia videocassetes que gravavam ilegalmente filmes transmitidos em canais de televisão de sua propriedade. Entretanto, a Suprema Corte entendeu que a principal finalidade dos donos dos videocassetes era copiar o programa desejado para assisti-lo no horário mais cômodo, o que não configuraria violação de direitos autorais.

O segundo caso apresentado pelo ministro foi o do Napster, ferramenta de compartilhamento de músicas que abalou o mercado fonográfico no final dos anos 90. Baseada na proposta de acesso gratuito às obras musicais, a plataforma foi levada à Justiça norte-americana pelas gravadoras, que alegaram violação de direitos autorais.

No litígio relacionado ao Napster, Salomão lembrou que a Corte de Apelação do Nono Circuito, localizada na Califórnia, aplicou a teoria da responsabilidade contributiva – por entender que houve intencional encorajamento aos usuários para que praticassem o ato ilícito de obter músicas sem pagamento – e a teoria da responsabilidade vicária – por concluir que o Napster obteve lucro com a ilegalidade cometida pelos usuários.

Aplicando essas teorias do direito comparado, o ministro entendeu não ter havido responsabilidade da Google no compartilhamento indevido de conteúdo no Orkut, já que a rede social não tinha como característica a distribuição ilegal de criações protegidas.

"Por essa linha de raciocínio, a arquitetura da rede social Orkut não provia materialmente os usuários com os meios necessários à violação de direitos. O ambiente virtual não constituía suporte essencial à prática de atos ilícitos, como ocorreu nos casos do Napster e do Grokster, que tinham estrutura substancialmente direcionada à violação da propriedade intelectual", apontou o ministro (REsp 1.512.647).

Punitive damages

Ao discutir, no REsp 1.354.536, o episódio de derramamento de cerca de 43 mil litros de amônia no rio Sergipe, ocorrido em 2008, a Segunda Seção analisou a possibilidade de responsabilização por danos morais da empresa que provocou o acidente e de pagamento de indenização aos pescadores afetados pelo impacto ambiental, que resultou na morte de animais como peixes e camarões.

Em seu voto, o ministro Luis Felipe Salomão citou lições da doutrina no sentido de que, no caso da compensação de danos morais decorrentes de dano ambiental, a função preventiva essencial na responsabilidade civil é a eliminação de fatores capazes de produzir riscos intoleráveis, já que a função punitiva cabe ao direito penal e administrativo.

Segundo o ministro, os principais critérios para arbitramento da compensação devem ser a intensidade do risco criado e a gravidade do dano, devendo o magistrado levar em consideração o tempo durante o qual a degradação persistirá e se o dano é ou não reversível.  

"Assim, não há falar em caráter de punição à luz do ordenamento jurídico brasileiro – que não consagra o instituto de direito comparado dos danos punitivos (punitive damages) –, haja vista que a responsabilidade civil por dano ambiental prescinde da culpa, e que revestir a compensação de caráter punitivo propiciaria o bis in idem (pois a punição imediata é tarefa específica do direito administrativo e penal)", esclareceu.

Salomão admitiu haver o entendimento de que a valoração do dano moral deveria ser pautada pela punição do agente causador do dano, corrente que tem sua origem exatamente no instituto norte-americano dos danos punitivos.

Entretanto, citando estudiosos de outra linha, o ministro apontou que a importação desse instituto seria equivocada, em razão das diferenças entre o sistema de responsabilidade norte-americano e o brasileiro: no modelo estadunidense, os punitive damages não são estipulados com a finalidade de promover o ressarcimento de um dano, resultado relacionado aos danos compensatórios – que, nos Estados Unidos, englobam os chamados "danos econômicos" e os "danos não econômicos", o que corresponderia, no Brasil, aos danos materiais e morais.

"Com efeito, na fixação da indenização por danos morais, recomendável que o arbitramento seja feito com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa, ao nível socioeconômico dos autores, e, ainda, ao porte da empresa recorrida, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de sua experiência e do bom senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso", afirmou Salomão.

Verossimilhança preponderante

Em 2013, no REsp 1.320.295, a Terceira Turma analisou acórdão de segundo grau que, com base na teoria da verossimilhança preponderante, condenou uma montadora a pagar indenizações em virtude de acidente causado pela quebra de uma roda de veículo. A discussão no recurso da montadora era se a aplicação da teoria ofenderia a regra de distribuição do ônus da prova.

Relatora do recurso especial, a ministra Nancy Andrighi destacou que o tribunal local elencou uma série de circunstâncias favoráveis ao acolhimento do pedido da vítima. A principal delas foi o fato de que a própria montadora, antes do acidente, resolveu substituir as rodas utilizadas no modelo de veículo acidentado por causa do risco de fissuras. Essa falha, segundo a corte estadual, foi exatamente a que se detectou no caso dos autos.

Por essa razão, segundo a ministra, o acórdão estadual invocou a teoria da verossimilhança preponderante, construída por doutrina de direito comparado, sobretudo na Suécia e na Alemanha.

A ministra explicou que, de acordo com a teoria, em contraponto à regra do ônus da prova, bastaria um grau mínimo de probabilidade da existência do direito alegado para amparar uma decisão favorável.

Embora a teoria seja compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, Nancy Andrighi ressaltou ser necessário que a decisão judicial esteja amparada em elementos de prova dos autos – ainda que indiciários. Em contrapartida, caso permaneça a incerteza do juiz, a ministra apontou que ele deve decidir com base na regra do ônus da prova. 

"No particular, infere-se da leitura do acórdão recorrido que os fatos alegados no curso da fase de instrução foram examinados pelo tribunal de origem e que a prova produzida foi devidamente valorada, de modo que a formação da convicção dos julgadores fundou-se nas circunstâncias fáticas reveladas pelo substrato probatório que integra os autos", finalizou a ministra ao negar provimento ao recurso.

Excesso de prazo

Na esfera do direito penal, em junho deste ano, a Sexta Turma analisou recurso em habeas corpus em que dois acusados de homicídio, presos desde 2019 e ainda não submetidos ao tribunal do júri, pediam para aguardar o julgamento em liberdade, apontando excesso de prazo da prisão preventiva.

Em seu voto, a ministra Laurita Vaz esclareceu que o Brasil não é exemplo isolado da orientação jurisprudencial segundo a qual a demora na instrução criminal não leva automaticamente ao reconhecimento de constrangimento ilegal na prisão.

No sistema processual penal federal dos Estados Unidos, a ministra lembrou que o Speedy Trial Act of 1974 afasta expressamente o reconhecimento de antijuridicidade em razão dos atrasos para a conclusão de processos nos casos de foragidos ou quando há necessidade de exames psiquiátricos do réu.

Além disso, a relatora destacou que o juiz de primeiro grau esclareceu que o júri seria realizado tão logo os prazos processuais fossem normalizados em razão da pandemia da Covid-19. "Como se vê, é razoável concluir que a causa já poderia ter sido julgada caso a pandemia causada pelo novo coronavírus não constituísse motivo de força maior que levou a atraso justificado para a realização do júri. Não há, portanto, incúria na condução do feito", concluiu a ministra (RHC 126.169).

Esta notícia refere-se aos processos: REsp 1174235; REsp 1389952; REsp 1512647; REsp 1354536; REsp 1320295 e RHC 126169.

Esta notícia foi publicada originalmente em um site oficial (STJ - Superior Tribunal de Justiça) e não reflete, necessariamente, a opinião do DireitoNet. Permitida a reprodução total ou parcial, desde que citada a fonte. Consulte sempre um advogado.
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