STJ aplica Lei de Propriedade Industrial e reconhece proteção à soja transgênica da Monsanto

STJ aplica Lei de Propriedade Industrial e reconhece proteção à soja transgênica da Monsanto

Em julgamento de Incidente de Assunção de Competência (IAC 4), a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou a tese de que as limitações ao direito de propriedade intelectual constantes do artigo 10 da Lei 9.456/1997 – aplicáveis somente aos titulares de Certificados de Proteção de Cultivares – não são oponíveis aos detentores de patentes de produtos ou processos relacionados à transgenia cuja tecnologia esteja presente no material reprodutivo de variedades vegetais.

Com a tese, firmada por unanimidade de votos, o colegiado negou recurso interposto por sindicatos rurais do Rio Grande do Sul que questionavam a necessidade de pagamento de royalties à Monsanto, responsável pelo desenvolvimento da soja transgênica Round-up Ready (Soja RR), nos casos de replantio em campos de cultivo, venda da produção como alimento ou matéria-prima e, com relação aos pequenos produtores, doação a outros produtores ou troca de sementes reservadas.

O recurso também tinha como interessados diversos outros sindicatos e associações de produtores, além da Associação Brasileira de Sementes e Mudas, da Associação das Empresas de Biotecnologia na Agricultura e Agroindústria, e da Associação Brasileira de Mutuários e Consumidores. Também integravam os autos o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e o Ministério Público do Rio Grande do Sul. 

Não havia determinação de suspensão nacional de processos, porém, a partir de agora, os juízes e tribunais de todo o país deverão observar a tese em suas decisões, conforme prevê o artigo 927, inciso III, do Código de Processo Civil.

Manipulada geneticamente pela Monsanto, a Soja RR é capaz de gerar mudas resistentes a herbicidas formulados à base de glifosato, proporcionando significativo ganho de produção. Após obter a patente do processo de criação das sementes, a multinacional estabeleceu um sistema baseado em royalties, taxas tecnológicas e indenizações pela utilização das sementes. 

Entretanto, para os sindicatos, o tema não deveria ser analisado do ponto de vista da Lei de Propriedade Industrial, mas sim sob a ótica da Lei de Cultivares. Segundo as entidades sindicais, independentemente do pagamento de qualquer taxa à Monsanto, deveriam ser permitidas a reserva de sementes, a venda de produtos e a multiplicação de sementes para doação ou troca. 

Proteção de patente

Em primeiro grau, o juiz julgou parcialmente procedentes os pedidos dos sindicatos para que a Monsanto se abstivesse de cobrar royalties ou taxa tecnológica sobre a comercialização da produção da soja transgênica a partir da safra 2003/2004. 

A sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Para o tribunal, não haveria como aplicar as disposições contidas na Lei de Proteção de Cultivares à hipótese dos autos, pois a Soja RR está protegida por meio de patentes devidamente expedidas pelo INPI, devendo ser respeitados os direitos dos titulares.

Privilégio do agricultor

Em análise do recurso dos sindicatos gaúchos, a ministra Nancy Andrighi destacou que a Lei de Propriedade Industrial, em seu artigo 18, inciso III, prevê a possibilidade de patentes de microrganismos transgênicos – o que permite que processos e produtos alimentícios, farmacêuticos e químicos possam ser tutelados por esse diploma legal. A ministra lembrou, todavia, que o patenteamento de microrganismos encontrados na natureza e de outros seres vivos é expressamente vedado pela própria LPI. 

A relatora também ressaltou que, cumpridos determinados requisitos estabelecidos pela Lei de Proteção de Cultivares em relação à homogeneidade, à distinguibilidade e à estabilidade da variedade vegetal, e após todo um procedimento especial, o Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC) está autorizado a outorgar o Certificado de Proteção de Cultivar, que garante ao titular os direitos sobre o material de reprodução ou multiplicação vegetativa da planta, em prazo que pode ser estendido por até 18 anos.

Por outro lado, lembrou a ministra, a Lei de Proteção de Cultivares também prevê situações em que, como forma de dar equilíbrio à exclusividade outorgada pelo Certificado de Proteção de Cultivar, são impostas certas limitações à proteção dos direitos do melhorista. É o caso do chamado "privilégio do agricultor" – exceção que confere aos agricultores o direito de livre acesso, em determinadas circunstâncias que não configurem exploração comercial, à variedade comercial protegida. 

Com base nessa limitação aos direitos de certificado, destacou a ministra, é que os sindicatos buscaram judicialmente o não pagamento de royalties à Monsanto. 

Sem incompatibilidade

No entanto, Nancy Andrighi afirmou que os royalties cujo pagamento os entes sindicais pretendem afastar referem-se ao uso reprodutivo de sementes que contêm a tecnologia patenteada, o que também atrai a incidência da Lei de Propriedade Industrial ao caso, sem que haja primazia da Lei de Proteção de Cultivares sobre a LPI.

"Patentes e proteção de cultivares, como visto, são diferentes espécies de direitos de propriedade intelectual, que objetivam proteger bens intangíveis distintos. Não há, por isso, incompatibilidade entre os estatutos legais que os disciplinam, tampouco prevalência de um sobre o outro, pois se trata de regimes jurídicos diversos e complementares, em cujos sistemas normativos inexistem proposições contraditórias a qualificar uma mesma conduta", disse a ministra.

Segundo a relatora, o âmbito de proteção a que está submetida a tecnologia desenvolvida pela Monsanto não se confunde com o objeto da proteção prevista na Lei de Cultivares (o material de reprodução ou multiplicação vegetativa da planta). "As patentes não protegem a variedade vegetal, mas o processo de inserção e o próprio gene por elas inoculado na semente de soja", afirmou. 

Princípio da exaustão

No tocante à Lei de Propriedade Industrial, a ministra explicou que, enquanto o artigo 42 garante ao titular da patente o direito de impedir que terceiros façam uso do produto ou processo, o artigo 43 estabelece limites ao exercício desse direito – a exemplo do inciso VI, que exclui da proteção, em relação a patentes relacionadas com matéria viva, os terceiros que utilizem, ponham em circulação ou comercializem um produto patenteado que haja sido licitamente introduzido no comércio pelo detentor da patente ou licença, "desde que o produto patenteado não seja utilizado para multiplicação ou propagação comercial da matéria viva em causa".

Esse conceito, segundo a relatora, positiva o "princípio da exaustão": uma vez que o titular tenha auferido o benefício econômico da exclusividade – como no caso da venda do produto patenteado –, cessam os direitos do titular da patente sobre ele.  

Entretanto, no ponto central da controvérsia, Nancy Andrighi destacou que a parte final do inciso VI do artigo 43 da LPI prevê expressamente que não haverá exaustão na hipótese de o produto patenteado ser utilizado para multiplicação ou propagação comercial da matéria viva em causa. 

"A toda evidência, a opção legislativa foi a de deixar claro que a exaustão, quando se cuida de patentes relacionadas à matéria viva, atinge apenas a circulação daqueles produtos que possam ser enquadrados na categoria de matéria viva não reprodutível, circunstância que não coincide com o objeto da pretensão dos recorrentes", realçou a relatora ao fixar a tese e negar o recurso dos sindicatos.

Alta produtividade

Em voto-vista apresentado à Segunda Seção, o ministro Marco Buzzi destacou a dimensão do setor agrícola brasileiro, que tem conseguido elevar a sua produtividade – em 2019, é esperada uma colheita de grãos superior a 227 milhões de toneladas – sem que tenha ocorrido aumento expressivo da área plantada, o que demonstra a alta capacidade produtiva do agronegócio e as inovações tecnológicas no desenvolvimento das sementes, como as criadas pela Monsanto. 

No caso dos autos, o ministro Buzzi destacou que, se o processo inventivo biotecnológico relativo às sementes RR é patenteável – tanto que o registro foi concedido pelo INPI –, não há como excluir dessa possibilidade os efeitos decorrentes da proteção industrial, relacionados à defesa da patente, a exemplo da autorização de uso, bem como o pagamento de royalties.

"Assim, sem deixar de estimular o agricultor no desenvolvimento e melhoramento genético de plantas (cultivares), com o objeto de melhor adaptá-las às variadas condições de solo, clima e regiões do país, de modo a possibilitar o incremento na produtividade da lavoura, de rigor a observância da eventual existência de patente de invenção, devidamente registrada no INPI, a incidir sobre sementes utilizadas na atividade do melhorista", afirmou o ministro ao acompanhar o voto da relatora.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.610.728 - RS (2016/0171099-9)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : SINDICATO RURAL DE SERTÃO
RECORRENTE : SINDICATO RURAL DE SANTIAGO
RECORRENTE : SINDICATO RURAL DE PASSO FUNDO
RECORRENTE : FEDERACAO DOS TRABALHADORES NA AGRICULTURA NO RIO
GRANDE DO SUL
ADVOGADOS : DENIS BORGES BARBOSA E OUTRO(S) - RJ023865
NERI PERIN E OUTRO(S) - RS025883
JANE LÚCIA WILHELM BERWANGER - RS046917
RAUL MURAD RIBEIRO DE CASTRO - RJ162384
LIVIA BARBOZA MAIA E OUTRO(S) - RJ182505
FERNANDA FERNANDES DA SILVA - RJ195640
RECORRIDO : MONSANTO CO
ADVOGADOS : GOMERCINDO LINS COITINHO E OUTRO(S) - RS002743
ROBERTO FERREIRA ROSAS E OUTRO(S) - DF000848
MARCOS VELASCO FIGUEIREDO E OUTRO(S) - RJ061424
LUIZ HENRIQUE OLIVEIRA DO AMARAL - RJ052759
RECORRIDO : MONSANTO DO BRASIL LTDA
ADVOGADOS : ROBERTO FERREIRA ROSAS E OUTRO(S) - DF000848
MARCOS VELASCO FIGUEIREDO E OUTRO(S) - RJ061424
LUIZ HENRIQUE OLIVEIRA DO AMARAL - RJ052759
CARINE PIGATTO TERMIGNONI - RS048110
IVO GABRIEL CORRÊA DA CUNHA E OUTRO(S) - RS003999
RAMIRO CORRÊA DA CUNHA - RS062264
BIBIANA DA SILVA OLIVEIRA BOTTIN CAYE - RS078887
INTERES. : SINDICATO RURAL DE GIRUÁ
ADVOGADO : NERI PERIN - RS025883
INTERES. : SINDICATO RURAL DE ARVOREZINHA
ADVOGADO : NERI PERIN - RS025883
INTERES. : SINDICATO RURAL DE JATAÍ
ADVOGADO : JOÃO RAFAEL DAL MOLIM E OUTRO(S) - RS050489
INTERES. : ASSOCIAÇÃO DOS AGRICULTORES DE DOM PEDRITO
ADVOGADO : ANDERSON RICARDO LEVANDOWSKI BELLOLI - RS081110
INTERES. : ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SEMENTES E MUDAS - ABRASEM
ADVOGADOS : DANIEL USTÁRROZ E OUTRO(S) - RS051548
ANTONIO JANYR DALL AGNOL JUNIOR E OUTRO(S) - RS005693
MARCOS VELASCO FIGUEIREDO E OUTRO(S) - DF022224
INTERES. : AGROBIO - ASSOCIAÇÃO DE EMP BIOTECNOLOGIA AGRICULTURA
AGROINDÚSTRIA
ADVOGADOS : ADMA PEDRO DIAMENTI - SP329928
PATRICIA FUKUMA JANNINI E OUTRO(S) - SP107635

FLAVIA DANIELA TOLEDO ANTONANZAS - SP273821
INTERES. : ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MUTUÁRIOS E CONSUMIDORES - ABMC
ADVOGADO : ROBERTO SOLIGO - MS002464
INTERES. : INSTITUTO BRASILEIRO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL
ADVOGADOS : NEWTON SILVEIRA E OUTRO(S) - SP015842
WILSON SILVEIRA E OUTRO(S) - SP024798
INTERES. : ABPI ASSOCIACAO BRASILEIRA DA PROPRIEDADE INTELECTUAL - "AMICUS CURIAE"
ADVOGADOS : LUIZ EDGARD MONTAURY PIMENTA - RJ046214
RODRIGO AFFONSO DE OURO PRETO SANTOS - RJ079659
INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
EMENTA
INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA. RECURSO ESPECIAL.
PROPRIEDADE INTELECTUAL. AÇÃO COLETIVA. SOJA ROUNDUP READY. TRANSGENIA. 

LEI DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL. LEI DE PROTEÇÃO DE
CULTIVARES. ART. 10. INOPONIBILIDADE AO TITULAR DE PROTEÇÃO
PATENTÁRIA. DUPLA PROTEÇÃO. INOCORRÊNCIA. SISTEMAS PROTETIVOS
DISTINTOS. PRINCÍPIO DA EXAUSTÃO. CIRCUNSTÂNCIA ESPECÍFICA QUE
FOGE À REGRA GERAL. PREVISÃO LEGAL EXPRESSA.
1. O propósito recursal é definir se produtores de soja podem, sem que haja
violação dos direitos de propriedade intelectual das recorridas, reservar
livremente o produto da soja transgênica Roundup Ready (soja RR) para
replantio em seus campos de cultivo, vender a produção desse cultivo como
alimento ou matéria-prima e, com relação apenas a pequenos produtores,
doar a outros pequenos produtores rurais ou com eles trocar as sementes
reservadas.
2. A Lei de Propriedade Industrial – em consonância com as diretrizes
traçadas no plano internacional e na esteira do dever imposto pela norma
do art. 5º, XXIX, da Constituição de 1988 – autoriza o patenteamento de
micro-organismos transgênicos, a fim de garantir, ao autor do invento,
privilégio temporário para sua utilização.
3. Patentes e proteção de cultivares são diferentes espécies de direitos de
propriedade intelectual, que objetivam proteger bens intangíveis distintos.
Não há incompatibilidade entre os estatutos legais que os disciplinam,
tampouco prevalência de um sobre o outro, pois se trata de regimes
jurídicos diversos e complementares, em cujos sistemas normativos
inexistem proposições contraditórias a qualificar uma mesma conduta.
4. A marcante distinção existente entre o regime da LPI e o da LPC
compreende, dente outros, o objeto protegido, o alcance da proteção, as
exceções e limitações oponíveis aos titulares dos respectivos direitos, os
requisitos necessários à outorga da tutela jurídica, o órgão responsável pela

análise e emissão do título protetivo e o prazo de duração do privilégio.
5. O âmbito de proteção a que está submetida a tecnologia desenvolvida
pelas recorridas não se confunde com o objeto da proteção prevista na Lei
de Cultivares: as patentes não protegem a variedade vegetal, mas o
processo de inserção e o próprio gene por elas inoculado nas sementes de
soja RR. A proteção da propriedade intelectual na forma de cultivares
abrange o material de reprodução ou multiplicação vegetativa da planta
inteira, enquanto o sistema de patentes protege, especificamente, o
processo inventivo ou o material geneticamente modificado.
6. Ainda que a LPI veicule o princípio da exaustão como norma geral
aplicável a produtos patenteados, há de se destacar que seu art. 43, VI,
parte final, prevê expressamente que não haverá exaustão na hipótese de
tais produtos serem utilizados para “multiplicação ou propagação comercial
da matéria viva em causa”.
7. A toda evidência, a opção legislativa foi a de deixar claro que a exaustão,
quando se cuida de patentes relacionadas à matéria viva, atinge apenas a
circulação daqueles produtos que possam ser enquadrados na categoria de
matéria viva não reprodutível, circunstância que não coincide com o objeto
da pretensão dos recorrentes.
8. Diante disso, a tese firmada, para efeito do art. 947 do CPC/15, é a
seguinte: as limitações ao direito de propriedade intelectual
constantes do art. 10 da Lei 9.456/97 – aplicáveis tão somente aos
titulares de Certificados de Proteção de Cultivares – não são
oponíveis aos detentores de patentes de produto e/ou processo
relacionados à transgenia cuja tecnologia esteja presente no
material reprodutivo de variedades vegetais.
RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Superior
Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos
autos, prosseguindo o julgamento, após o voto-vista antecipado do Sr. Ministro Marco
Buzzi acompanhando a Sra. Ministra Relatora, a Seção, por unanimidade, negou
provimento ao recurso especial , nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.
Para os efeitos do art. 947 do CPC/15, foi firmada a seguinte tese: as
limitações ao direito de propriedade intelectual constantes do art. 10 da Lei 9.456/97 –

aplicáveis tão somente aos titulares de Certificados de Proteção de Cultivares – não são
oponíveis aos detentores de patentes de produto e/ou processo relacionados à transgenia
cuja tecnologia esteja presente no material reprodutivo de variedades vegetais. Os Srs.
Ministros Marco Buzzi (voto-vista), Luis Felipe Salomão, Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti,
Antonio Carlos Ferreira, Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro

votaram com a Sra. Ministra Relatora. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Paulo de Tarso
Sanseverino.
Brasília (DF), 09 de outubro de 2019(Data do Julgamento).
MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO
Presidente
MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora

Esta notícia foi publicada originalmente em um site oficial (STJ - Superior Tribunal de Justiça) e não reflete, necessariamente, a opinião do DireitoNet. Permitida a reprodução total ou parcial, desde que citada a fonte. Consulte sempre um advogado.
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