Música, livros e ressocialização: possibilidades de remição de pena na visão do STJ

Música, livros e ressocialização: possibilidades de remição de pena na visão do STJ

Com uma população carcerária superior a 600 mil pessoas – a terceira maior do mundo –, o Brasil enfrenta o desafio de buscar saídas para reduzir a superlotação dos presídios sem que haja comprometimento do poder punitivo do Estado. Algumas das soluções em estudo envolvem a aplicação de penas alternativas à prisão e a redução do número de presos provisórios. A necessidade de medidas nessa direção foi reconhecida em março pela presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministra Laurita Vaz, em encontro com entidades de direitos humanos.

Outra proposta trazida ao debate sobre a crise no sistema carcerário é a ampliação das opções de trabalho e estudo nos presídios. A oferta de oportunidades de desenvolvimento para presos apresenta ganho duplo: para o Estado, é um caminho para combater a reincidência criminal; para o apenado, é uma chance de capacitação profissional e de diminuição da pena, como garante o artigo 126 das Lei de Execução Penal.

Em consonância com a Recomendação 44/2013 do Conselho Nacional de Justiça, o STJ tem ampliado as possibilidades de remição da pena mesmo nos casos de atividades educacionais e profissionais não previstas expressamente na lei. Apoiada em um sentido de ressocialização, a jurisprudência também é resultado das experiências positivas após a oferta de oportunidades para presos em regime fechado, a exemplo de projetos de leitura monitorada, nos quais, para garantir a diminuição da pena, o preso precisa produzir resenha sobre a obra lida.

Leitura

Nesses casos, o cômputo do prazo de dedicação à leitura é possível ainda que a unidade prisional já ofereça oportunidades de trabalho e de estudo regulares, como definiu a Quinta Turma em análise de habeas corpus de condenado que leu o livro A Cabana, de William P. Young, e apresentou texto analítico sobre a obra. Em primeira instância, o magistrado declarou remidos quatros dias de pena em virtude da leitura, mas o Tribunal de Justiça Militar de São Paulo reformou a decisão tendo em vista a existência de sistemas de qualificação profissional e escolar no interior do presídio.

“O simples fato de o estabelecimento prisional contar com oferta de trabalho e estudo não impede que a leitura seja fonte de remição de dias de pena. Com efeito, a Recomendação 44/13 do Conselho Nacional de Justiça, em seu artigo 1º, inciso V, limita-se a propor que os tribunais estimulem a remição por leitura notadamente aos presos sem acesso a trabalho e estudo, não erigindo óbice a que tal prática também seja implementada em unidades penitenciárias que já oferecem as demais espécies de atividades ensejadoras de remição”, apontou o ministro relator, Joel Ilan Paciornik, ao restabelecer a remição.

Autodidatismo

Além das ações monitoradas de leitura, a extensão das possibilidades de remição atinge também as hipóteses em que o preso estuda por conta própria. Foi a decisão da Quinta Turma ao julgar habeas corpus de detento que buscava o cômputo dos dias de estudo para aprovação no Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos e no Exame Nacional do Ensino Médio. 

O pedido de contagem havia sido negado em primeira e segunda instâncias pela Justiça do Distrito Federal, que concluiu que o preso tinha vínculo com instituição de ensino no interior do presídio e, por isso, não seria possível a remição do período de estudos autodidáticos. Todavia, de acordo com o relator do habeas corpus, ministro Ribeiro Dantas, a contagem adicional do período de estudos é permitida por incentivar a formação educacional e a readaptação do apenado ao convívio social. 

“Diante da possibilidade de interpretação extensiva in bonam partem, entende-se que cabe a remição até mesmo para presos que estudam por conta própria, não havendo se falar em afastamento da possibilidade da concessão da benesse aos apenados que estejam vinculados a atividades regulares de ensino no interior do estabelecimento”, apontou o ministro.

Coral

Assim como na aprendizagem escolar autodidática, o estudo da música envolve disciplina e dedicação – elementos que, além de possibilitar o aperfeiçoamento técnico e profissional, permitem o desenvolvimento social do preso. Alguns estudos também indicam que, quando trabalhado em grupo, o exercício musical faz ressurgirem valores fraternos e comunitários nos apenados. 

Por reunir características sistemáticas presentes tanto no trabalho quanto no estudo, a música foi reconhecida pela Sexta Turma como meio de remição de pena a preso que comprovou dedicar oito horas diárias ao trabalho em um coral em Vila Velha (ES). Segundo o colegiado, a atividade musical exercida pelo preso preencheu os requisitos centrais previstos na Lei de Execução Penal, como qualificação para fins profissionais e reintegração social. 

“A atividade musical realizada pelo reeducando profissionaliza, qualifica e capacita o réu, afastando-o do crime e reintegrando-o na sociedade. No mais, apesar de se encaixar perfeitamente à hipótese de estudo, vê-se, também, que a música já foi regulamentada como profissão pela Lei 3.857/60”, destacou o relator do recurso do apenado, ministro Sebastião Reis Júnior.

Capoeira

Apesar das possibilidades de interpretação extensiva das hipóteses de trabalho e estudo previstas pela Lei de Execução Penal, o STJ também já decidiu que a remição está relacionada à prática de atividades intelectuais que possibilitem a readaptação e a ressocialização do condenado.

Ao apreciar habeas corpus de preso que buscava a diminuição da pena por participar de aulas de capoeira, a Quinta Turma entendeu que a atividade tinha cunho meramente recreativo, que carecia do vínculo formal, inclusive devido à inexistência de avaliação regular dos participantes das aulas.

“No presente caso, como bem ressaltado pelo tribunal a quo, a participação do ora paciente em aulas de capoeira, ainda que contribua para sua ressocialização, não pode ser interpretada como frequência em curso de ensino formal, tendo em vista tratar-se de prática esportiva e não de atividade intelectual propriamente dita”, afirmou o ministro Gilson Dipp (hoje aposentado).

Limpeza de cela

O acompanhamento periódico e a comprovação de rendimento para fins de remição também se aplicam às atividades profissionais, como decidiu a Sexta Turma durante o julgamento de pedido de resgate da pena feito por preso que limpava a própria cela.

No pedido, o preso em regime fechado argumentou que não haveria distinção ou restrição às espécies de trabalho aptas a proporcionar a remição. Entretanto, o colegiado entendeu que a atividade laborativa deveria estar sob fiscalização do órgão de execução da pena, de forma que estivesse adequado à função de ressocialização.

“Na presente hipótese, há a indicação genérica de prestação de serviços, sem qualquer relatório dando conta de horários e atividades desempenhadas. Apenas se cita a prestação de serviços entre grades, que consistiriam em limpeza pessoal e da própria cela”, concluiu a desembargadora convocada Jane Silva.

Trabalho extramuros

Para efeito de remição de pena, o STJ também já decidiu que é possível o cômputo do trabalho realizado fora do presídio por detento em regime fechado ou semiaberto. O julgamento foi realizado sob o rito dos recursos repetitivos e, dessa forma, passou a orientar as demais instâncias da Justiça na solução de casos idênticos.

De acordo com o relator do recurso, ministro Rogerio Schietti Cruz, a Lei de Execução Penal não faz qualquer distinção, para fins de remição, sobre o local em que deve ser cumprida a atividade profissional – dentro ou fora do ambiente carcerário. No caso analisado, o apenado trabalhava em uma oficina mecânica particular no Rio de Janeiro.  

“Se o condenado que cumpre pena em regime aberto ou semiaberto pode remir parte da reprimenda pela frequência a curso de ensino regular ou de educação profissional, não há razões para não considerar o trabalho extramuros de quem cumpre pena em regime semiaberto como fator de contagem do tempo para fins de remição”, concluiu o ministro ao garantir o direito de remição ao preso.

Ementa

HABEAS CORPUS Nº 349.239 - SP (2016/0040378-8)

RELATOR : MINISTRO JOEL ILAN PACIORNIK

IMPETRANTE : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO

ADVOGADO : CAMILA GALVÃO TOURINHO

IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO

PACIENTE : MARCIO SILVA DE OLIVEIRA (PRESO)

HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. REMIÇÃO

POR LEITURA. ART. 126 DA LEI DE EXECUÇÕES PENAIS.

CONSTATAÇÃO DE IRREGULARIDADES ADMINISTRATIVAS NO

ÂMBITO DO PROJETO. RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO

PENITENCIÁRIA E DE SEUS SERVIDORES. IMPOSSIBILIDADE DE

PREJUÍZO AO APENADO DE BOA - FÉ. CONSTRANGIMENTO

ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA PARA

RESTABELECER A DECISÃO DO MAGISTRADO DAS EXECUÇÕES.

A possibilidade de remição de dias de pena por meio da

leitura foi confirmada no âmbito deste Superior Tribunal de Justiça,

adotando a Corte o entendimento de que se trata de analogia in bonam partem da remição por estudo, expressamente prevista no art. 126 da Lei de Execuções Penais.

O simples fato de o estabelecimento prisional contar com oferta de trabalho e estudo não impede que a leitura seja fonte de

remição de dias de pena. Com efeito, a Recomendação n. 44/13 do

Conselho Nacional de Justiça, em seu art. 1º, inciso V, limita-se a

propor que os Tribunais estimulem a remição por leitura notadamente

aos presos sem acesso a trabalho e estudo, não erigindo óbice a que

tal prática também seja implementada em unidades penitenciárias que

já oferecem as demais espécie de atividades ensejadoras de remição.

Os vícios administrativos identificados pelo Tribunal de origem não têm o condão de obstar o direito do apenado à remição.

Uma vez implementado o projeto de remição por leitura na unidade

prisional em que cumpre pena o paciente, não comprovada má-fé do

apenado e ausente dúvida fundada a respeito da efetiva leitura e

absorção da obra literária pelo sentenciado, impõe-se a concessão do direito ao apenado.

Eventuais irregularidades formais identificadas, atinentes

ao número e à qualificação dos avaliadores, bem como a notícia de

que não foi produzida uma escala de compatibilização de horários de

leitura com os de trabalho e estudo formais, reputam-se insuficientes

para anular ou descaracterizar a remição pretendida. Cumpre salientar

que, à luz do art. 130 da Lei de Execuções Penais, "constitui o crime

do artigo 299 do Código Penal declarar ou atestar falsamente

prestação de serviço para fim de instruir pedido de remição ", de modo

que a constatação de irregularidades no procedimento de apuração de

trabalho, estudo ou leitura do apenado gera responsabilidade no

âmbito da administração e de seus servidores, não repercutindo no

direito legalmente assegurado ao sentenciado de boa fé.

Ordem concedida, em consonância com o parecer

ministerial, para restabelecer a decisão de primeiro grau que deferira a

remição de 4 (quatro) dias de pena ao paciente.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima

indicadas, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça,

por unanimidade, conceder a ordem, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.

Os Srs. Ministros Felix Fischer, Jorge Mussi, Reynaldo Soares da

Fonseca e Ribeiro Dantas votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 04 de outubro de 2016(Data do Julgamento). 

Esta notícia foi publicada originalmente em um site oficial (STJ - Superior Tribunal de Justiça) e não reflete, necessariamente, a opinião do DireitoNet. Permitida a reprodução total ou parcial, desde que citada a fonte. Consulte sempre um advogado.
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