O crime organizado e as causas impulsionantes da criminalidade

O crime organizado e as causas impulsionantes da criminalidade

Análise dos fatores que impulsionam a criminalidade, bem como medidas para combatê-la.

Inicialmente cumpre-nos destacar que o crime é um “fenômeno” tão antigo quanto a própria existência humana, de forma que escritos que incriminavam condutas não toleradas foram identificadas no código sumério de Ur-Nammu, que data de aproximadamente 2040 A.C, antes mesmo do código de Hamurabi que data aproximadamente de 1700 A.C.

Observa-se ao longo da história das civilizações, que o “crime” na acepção que temos hoje, passou e ainda passa por constante evolução, e de outra forma não poderia ser, haja vista ser o crime um comportamento humano que na acepção criminológica decorre de fatores biopsicossociais, que impulsionam a criminalidade.

Emile Durkheim juntamente com Robert Merton, ensinam na teoria da anomia que a ausência de leis, ou seja, toda situação social onde falta coesão e ordem, especialmente no tocante a normas e valores é que surge o crime.

Durkheim afirma “que o crime é um fenômeno normal e previsível em toda a sociedade, mas tais desvios são normais se limitados, controlados pelo poder público”. Dizia ainda “que sociedade sem crime é sociedade pouco desenvolvida, a delinquência obriga um desenvolvimento estatal no sentido de estruturação”.

Em sua obra “O suicídio” de 1897, traz uma regra geral quando o indivíduo ou um grupo perde as referências normativas que orientavam a sua vida, ele se sente livre de vínculos sociais tendo comportamentos antissociais e autodestrutivos.

Nesse sentido, atualmente sob o prisma da legislação brasileira podemos conceituar o crime sobre três aspectos, quais sejam, o material, sendo toda ação ou omissão que lesa ou expõe a perigo de lesão bens jurídicos penalmente tutelados, ressalte-se que aqui a reserva legal não é suficiente, servindo como fator de legitimação do direito penal em um estado democrático de direito.

O formal, que é a conduta trazida em lei com ameaça de sanção penal, o que bem se observa no art. 1° da lei de introdução do código penal, este conceito tem na análise da doutrina mais moderna que diz o art. 1º da LICP apenas distinguir crime de contravenção penal o que com o advento da lei 11343/2006 (lei de drogas) encontra-se ultrapassado, ressalte-se que definir o que é crime, é portanto tarefa da doutrina e não do legislador, isso porque, o crime está em constante transformação, pois acompanha o desenvolvimento da sociedade, como bem demostra a inadequação do referido conceito, diante do advento da lei n° 11.343/06.

Já o conceito analítico baseia-se nos elementos que formam a estrutura do crime, ou seja, possui foco nos requisitos do crime.

Basileu Garcia afirmava que o crime era composto por fato típico, antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade, defendia a corrente quadripartida, que com o devido respeito deve ser afastada, pois a punibilidade é uma consequência do crime, ou seja, é a possibilidade jurídica de aplicação da sanção penal. Por este entendimento a extinção da punibilidade, prevista no código penal brasileiro, iria fazer com que um crime previsto deixasse de ser crime.

Para a corrente tripartida ou tricotômica que tem como expoentes Francisco Assis Toledo, Nelson Hungria e Hans Welzel os elementos do crime são, fato típico, antijurídico e culpabilidade.

Aqui devemos tomar um certo cuidado, pois há doutrinadores que equivocadamente afirmam que um conceito tripartido importa obrigatoriamente na adoção da teoria clássica, de forma que quem aceita o conceito tripartido pode ser clássico ou finalista, pois o próprio Hans Welzel criador do finalismo penal adota a teoria tripartida.

A principal diferença entre os clássicos e finalistas está na alocação do dolo ou da culpa e não se é bipartida ou tripartida. Assim temos que no sistema clássico, será obrigatoriamente tripartido, e no sistema finalista, podem adotar os dois.

Por fim René Ariel Dotti, maior expoente do conceito bipartido, diz que na referida teoria deve ser excluída da composição do crime a culpabilidade, visto que se trata de pressuposto para a aplicação da pena. Nesta esteira assevera o professor Flavio Monteiro de Barros (FMB):

“Culpabilidade é o juízo de reprovação que recai sobre a conduta típica e ilícita realizada por agente imputável com possibilidade de conhecer a ilicitude do fato e de evitar a prática do fato criminoso é um juízo de censura decisivo à fixação da pena que recai sobre o agente e não sobre o fato criminoso não se pode dizer que o fato é culpável, culpável é o agente ”.

Temos, portanto, que na visão analítica do crime o Código Penal de 1940 adotava em sua redação original, a teoria tripartida de crime, relacionado a teoria clássica da conduta. A situação se alterou com a lei n° 7209/84 em que ficou a impressão que o conceito é bipartido, relacionado a teoria finalista, posto que no título II da parte geral traz a expressão “do crime” já o título III fala “da imputabilidade penal” separando o crime da culpabilidade.

E mais, quando o Código Penal tratou das excludentes de ilicitude (art. 23) afirmou que “não há crime”, quando tratou das causas que excluem a culpabilidade a exemplo o artigo 26 da referida legislação diz que o autor é “isento de pena”, no art. 180, §4º do CP o texto traz “ a receptação é punível ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveu a coisa.

Assim, no que se refere a evolução do conceito de crime é possível concluir que para a teoria bipartida a culpabilidade é um pressuposto de aplicação da pena, pois se a culpabilidade fosse elemento do crime aquele que dolosamente, adquirisse um produto de roubo cometido por um menor não cometeria receptação pois se o menor não comete crime, pela ausência de culpabilidade o receptador não teria adquirido um produto deste crime.

Pelo exposto denota-se que de fato a legislação penal pátria está em constante evolução conforme dito inicialmente, haja vista que até o conceito de crime passou por significativa mudança.

No entanto a criação de leis com vistas a atender a demanda do crime, não me parece ser a medida mais adequada para o seu combate, posto que princípios vetores do direito penal que norteiam a aplicação da lei no caso concreto, e ressalte-se a extrema importância destes para a manutenção das instituições democráticas, tais como o devido processo legal, a razoável duração dos processos, economia processual, devido processo legislativo, o estado democrático de direito, apesar de essenciais, acabam por tornar demasiadamente demorado a criação de uma lei apta a fazer frente ao crime, o que de certa forma favorece a sua evolução, pois esta se dá de forma muito rápida e não atende a critério algum, pois tem em sua essência o desvio de conduta que difere de tudo aquilo que se prioriza no convívio social.

Tal evolução se aprimorou de forma tão impressionante que adquiriu estrutura assemelhada a empresarial, com divisão de tarefas, especialistas do crime com campo de concentração especifico e “modus operandi” como nunca visto antes, tais formas de atuação, é o que temos hoje por crime organizado, que trataremos mais detalhadamente adiante.

Anteriormente ao advento da lei n° 12850/13, não se tinha um conceito de crime organizado. De tal forma que ficou a cargo da doutrina e da jurisprudência a nos dizer o que seria tal fenômeno.

Sabe-se que o direito penal exige que os conceitos sejam feitos com exatidão, não admitindo dessa forma, conceitos amplos. Ocorre que temerário seria dar um conceito exato para o que seria o crime organizado, pois o crime evolui com a sociedade e se adapta às mudanças de tal forma a evoluir sempre muito rapidamente. Por outro lado, deixá-lo vago, ofenderia o princípio da taxatividade, bem como levaria a impunidade.

Desta forma com o intuito de evitar a criação de um conceito estrito, a doutrina considerando ser melhor realizar a identificação dos elementos constitutivos do crime organizado.

Em outras palavras, cada estado do Brasil vive uma realidade diferente, logo, torna inviável estabelecer um conceito, pois para isso seria necessário abranger todas as hipóteses de infração cometida pelas organizações criminosas, por exemplo, ameaça, roubo, homicídio, estelionato, tráfico de drogas, etc.

Destaca-se, todavia, que o conceito dado pela Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional (também chamada de Convenção de Palermo) integra o ordenamento jurídico pátrio. Isto porque, essa convenção foi ratificada pelo Brasil, pelo Decreto Legislativo n. 231/2003 e também foi promulgada pelo Decreto n. 5.015 de 12 de março de 2004. (ANDREUCCI, Ricardo Antonio, Legislação penal especial, p. 573, 5ª edição, Ed. Saraiva, São Paulo).

Com isso, o Brasil passou a ter um conceito acerca do Crime Organizado. Ressalta-se que até aqui ainda não existia um conceito legal, mas este supramencionado pode ser utilizado para caracterizar o que realmente seria organização criminosa.

Dessa forma, como bem destacado pelo doutrinador Antonio Scarance Fernandes, a falta de conceito legal impossibilita a restrição de direitos daqueles que estão sendo investigados, acusados, condenados, com fundamento no fato de pertencer a organização criminosa, pois afirma que não se pode utilizar de medidas excepcionais sem que se atenda o pressuposto da legalidade. (FERNANDES, Antonio Scarance et al. Crime organizado: aspectos processuais, Ed. RT, 2009)

Aliás, não é só o conceito que se faz necessário, pois ao ratificar a Convenção de Palermo, conforme lembra o autor Antônio Sérgio Altieri Pitombo, “o Brasil obrigou-se a criminalizar a conduta de ‘participar em um grupo criminoso organizado’ como tipo legal distinto dos crimes perpetrados na atividade criminosa”. (PITOMBO, Antônio Sérgio Altieri de Moraes, Organização criminosa: nova perspectiva do tipo legal. São Paulo: RT, 2009, p. 108)

Não obstante, muito embora o ordenamento jurídico já tenha equiparado crime organizado a associação criminosa, trata-se de institutos que em suas essências são diferentes.

Diferenciar estes dois institutos é essencial para o seu entendimento uma vez que o conceito de associação criminosa está no seu tipo penal, qual seja o disposto no art. 288 do Código Penal foi alterado pela lei 12.850/13 para essa nova redação.

“Associação criminosa:

Art. 288. Associarem-se três ou mais pessoas, para fim especifico de cometer crimes.

Pena – reclusão, de um a três anos.

Parágrafo único. A pena aplica-se até a metade, se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente.”

Agora, no que tange as organizações criminosas a nova lei do crime organizado define a associação de quatro ou mais pessoas com estrutura organizada.

Com a leitura da expressão “Crime Organizado” entende-se pela não caracterização deste tipo de modalidade criminosa, bem como, os institutos da sua respectiva lei para as contravenções penais, ou seja, a simples leitura da expressão “Crime Organizado” já deixa claro que se trata tão somente de crime e não de contravenção penal. (ANDREUCCI, Ricardo Antonio, Legislação penal especial, p. 574, 5ª edição, Ed. Saraiva, São Paulo).

Anteriormente quando em vigor a lei nº 9.034/95, esta que tratava do crime organizado, não utilizava a palavra “crime”, e sim “ilícitos”. Então dava uma margem muito grande para discussões doutrinaria e jurisprudências pois conforme já é sabido, o direito penal considera como ilícitos (gênero) tanto as contravenções penais como os crimes (espécies).

É por isso que Fernando Capez sustentava a aplicação desta lei para as contravenções penais: “embora somente exista quadrilha ou bando para a prática de crimes, conforme redação expressa do art. 288 do CP, nada impede que tal agrupamento, formado para a prática de crimes também resolva se dedicar ao cometimento de contravenções penais” (CAPEZ, Fernando, Curso de Direito Penal – Legislação penal especial, São Paulo: Saraiva, 2006, v. 4, p.234)

Já o professor Ricardo Antonio Andreucci discordava dessa posição e afirmava que o crime de quadrilha ou bando se referia tão somente ao cometimento de crimes e não de contravenções penais. Dessa forma, como o direito penal veda a analogia in mallan partem não é possível tal aplicação para as contravenções penais. Este professor afirmava também que o Brasil ao ratificar a Convenção de Palermo, ficou reconhecido que as organizações criminosas são aquelas que agem com o fim de cometer “infrações graves” (art. 2º da referida Convenção), assim definida como “ato que constitua infração punível com uma pena privativa de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior”.

Assim, com a promulgação da lei 12.850 de agosto de 2013 que veio para ratificar a doutrina majoritária no sentido que o crime organizado não comporta de forma alguma as contravenções penais.

De fato, a referida legislação cumpre seu objetivo no combate ao crime organizado, haja vista a sua grande utilização em casos de grande repercussão, como “mensalão”, “lava-jato” dentre tantas outras.

Ocorre que apesar de mostrar-se efetiva em sua aplicação, sabemos que terá eficácia somente enquanto o crime não mostrar novas faces, pois conforme demostrado neste texto o combate deve se dar não só com a produção de leis, que apesar de possuir extrema relevância, não se mostra eficaz a longo prazo, pois conforme já dito o crime está em constante evolução e, diga-se de passagem, rápida evolução.

O combate ao crime organizado e a todas as suas outras formas, nos moldes que temos hoje, se mostra insuficiente por manter o foco no criminoso e não as causas que impulsionam a criminalidade.

Tal fato foi a muito tempo evidenciado e demostrado nos estudos de Emile Durkheim e Robert Merton, em que toda situação social onde falta coesão e ordem existirá crime.

Assim, trazendo os ensinamentos de Durkheim e Robert Merton para a realidade brasileira, é possível verificar com base em suas teorias, as causas que geram e impulsionam a criminalidade, posto que no Brasil, observa-se a inexistência de políticas públicas sociais básicas, pois não há educação de qualidade, saúde, saneamento, moradia, segurança dentre tantas outras necessidades que não estão disponíveis para todos, isso em razão das desigualdades sociais, do menosprezo político, da corrupção desmedida e da impunidade, e é neste contexto que se faz presente a fata de coesão e ordem, que fundamentam a citada teoria da anomia.

Portanto é possível concluir que apesar de essenciais à manutenção das instituições democráticas brasileiras, as leis, o processo legislativo, os políticos, e os métodos adotados paliativamente para fazer frente ao crime de modo geral e ao crime organizado de forma mais especifica, não é suficiente sequer para trazer segurança à população, que aliás nos dizeres do artigo 144, “caput” da constituição federal, “é obrigação do Estado e direito e responsabilidade de todos”, pois não será a lei penal, que fará possível o combate à criminalidade, haja vista que as pessoas e as sociedades por elas compostas está em franco desenvolvimento.

É preciso além de criar leis aptas a enfrentar o crime, combater as causas que o geram, com políticas públicas adequadas, não só no aspecto processual penal, mas também no campo social, de forma que a tríade das ciências criminais, quais sejam, direito penal, criminologia e políticas públicas, sejam de fato enxergadas de forma única e aplicadas efetivamente, o que até os dias mais atuais não se vê.     

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDREUCCI, Ricardo Antonio, Legislação penal especial, 5ª edição, Ed. Saraiva, São Paulo;

BALTAZAR, José Paulo Junior, Crimes Federais, 6ª edição, Ed. Livraria do advogado, Porto Alegre, 2010;

CONSERINO, Cassio Roberto, Crime organizado e institutos correlatos, São Paulo: Atlas, 2011;

GOMES, Luiz Flávio, Crime Organizado: enfoques criminológico jurídico (Lei 9.034/95) e político criminal, 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997;

MENDRONI, Marcelo Batlouni, Crime organizado: aspectos gerais e mecanismos legais, 3ª edição, São Paulo: Atlas, 2010;

MINGUARDI, Guaracy, O Estado e o crime organizado – São Paulo: IBCCrim, 1998;

PITOMBO, Antônio Sérgio Altieri de Moraes, Organização criminosa: nova perspectiva do tipo legal. São Paulo: RT, 2009;

PRADO, Luiz Regis, Direito Penal Econômico. São Paulo: Ed. RT, 2009, 3ª edição.;

Jornal Folha de São Paulo, http://acervo.folha.com.br/fsp/2011/5/3/2.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ur-Nammu

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Filipe Ferreira da Silva
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