A insignificância no Direito Penal moderno

A insignificância no Direito Penal moderno

Visamos analisar uma aplicação do princípio da insignificância com vistas a não gerar a banalização criminosa e a injustiça na condenação.

I) OS FUNDAMENTOS JURÍDICOS DO DIREITO PENAL MODERNO MÍNIMO



O Direito Penal moderno tem com fundamento basilar a intervenção mínima deste ramo nas condutas humanas. A área penal deve ser vista sob a ultima ratio, ou seja, a última solução para o problema jurídico apresentado para apreciação e enquadramento, e isso se dá pela aspereza da resposta apresentada pelo sistema penal a condutas que violem seus preceitos típicos, com a cominação da pena que passa da restrição ou limitação da liberdade humana até a multa penal.

A fragilização do microsistema penal se dá em virtude do legislador expandir sua margem solucionadora dos desequilíbrios sociais. A ampliação ilimitada dos horizontes do direito penal, para que solucione problemas que outras áreas jurídicas não resolvam, dá margem a uma distorção na própria caracterização desse ramo como ciência, pois, foge dos seus objetivos traçados nos primórdios da vida humana em sociedade, que é o repúdio aos bens jurídicos em que a tutela é mais importante na hierarquia constitucionalmente firmada. Isso se dá assim, pois, hodiernamente vivemos uma “criminalização política” das condutas e “legislando no impacto dos fatos”, sem ponderação da real importância da tutela penal e da necessidade de sua existência no cenário jurídico.

A crise da ciência penal hoje em dia parte da sua utilização sem precedentes, invadindo áreas onde o ilícito é meramente administrativo, civil ou tributário. A importância do tipo penal e sua significação na estruturação da proteção da sociedade encontram-se desgastada e em detrimento ao princípio constitucionalmente firmado da intervenção mínima estatal, importando ao legislador quando da feitura das leis penais uma maior reflexão.

Esse princípio que acima mencionamos é bem explicado por Luiz Régis Prado: “O princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade estabelece que o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa. Desse modo, a lei penal só deverá intervir quando for absolutamente necessário para a sobrevivência da comunidade, como ultima ratio” [1].

Assim, o Estado deve-se valer das forças do direito penal quando: demonstrar claramente a insuficiência dos demais ramos do direito em punir com a veemência necessária a conduta e quando restar provado que o ilícito violou valores cuja alçada de atribuição para punir é do direito penal. Dessa sorte, tudo que afasta essas duas áreas de atuação escapa a aplicabilidade do direito penal. E isso se dá por força de mandamento constitucionalmente firmado, com status de cláusula pétrea (artigo 60 § 4º, IV, CR).

René Ariel Dotti lembra: “O princípio da intervenção penal mínima foi recepcionado pela CF através de cláusula geral prevista pelo § 2º do art. 5º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. O princípio em análise tem sua raiz no art. 8º da Declaração dos Direitos do homem e do cidadão (Paris, 1789), ao proclamar que a lei deve estabelecer “penas estrita e evidentemente necessárias” [2]. Os tratados internacionais os quais o Brasil é signatário e contém normas de direitos fundamentais trazem automaticamente para o rol do artigo 5º com igual força e relevância os comandos, sendo pela teoria da recepção incorporados.

Hans Welzel quando de seus escritos mencionou o caráter social da lei penal, ao mencionar a necessidade não só de uma adequação aos elementos normativos, subjetivos e objetivos do tipo penal, devendo ainda encartar a “adequação social” da figura penal, ou seja, a sociedade admitir tal conduta como afrontosa aos valores sagrados a manutenção da paz e equilíbrio a esfera jurídica, então, demandando a aplicação de pena visando o controle social, que é máxime da norma penal. O penalista alemão foi o percussor dos ideais que hoje alastram o direito penal e combatem o movimento lei e ordem que ganhou força. Francisco de Assis Toledo explica que: “podem as condutas socialmente adequadas não ser modelares, de um ponto de vista ético. Delas se exige apenas que se situem dentro da moldura do comportamento socialmente permitido ou, na expressão textual de Welzel, dentro do quadro da liberdade da ação social” [3].


II) A INSIGNIFICÂNCIA PENAL



Atualmente a insignificância penal ganha aceitação, haja vista, o notório insucesso das penas como meio ressocializador do réu, que ao adentrar no sistema carcerário por muitas vezes acaba sendo corrompido e a sanção penal acaba por se perder dos seus objetivos finais.

Dessa forma, as condutas que lesem bens jurídicos de pequena relevância, onde o impacto social do crime é leve a tendência é a de atestar a atipicidade da conduta pela insignificância do bem lesado ou pela inocorrência da lesão embora haja a violação do tipo penal. O que se questiona na aplicação desse princípio é a eficácia do preceito penal e isso, ao nosso ver, é interessante, pois, perquirir a vox socialis é sacramental para o direito.

A doutrina penal moderna inclina-se a esse princípio para que se excluam delitos em que não haja o alcance da resposta demandada pela sociedade, como o que ocorre com o crime de dano (art. 163, CP), sendo na verdade é um ilícito civil, que atinge a esfera patrimonial e se resolveria com uma reparação de danos ou uma ação de regresso, sendo a via penal desnecessária em situações desse porte. Damásio de Jesus faz interessante ponderação: “...recomenda que o Direito Penal, pela adequação típica, somente intervenha nos casos de lesão jurídica de certa gravidade, reconhecendo a atipicidade do fato nas hipóteses de perturbações jurídicas mais leves (pequeníssima relevância material)” [4].


III) A CORRELAÇÃO ENTRE A PROPORCIONALIDADE E A INSIGNIFICÂNCIA COMO CARÁTER REEDUCATIVO DA PENA



A insignificância penal tem perdido a alçada de aplicabilidade, pois, os limiares do que é irrelevante para a lei penal, onde não ocorreu a lesão ao bem tutelado ou esta foi de pouca monta tem sido distorcidos com vistas a alcançar a absolvição com base no artigo 386 do Código de Processo Penal.

Cezar Roberto Bitencourt ensina o criado por Claus Roxin: “Segundo esse princípio, que Klaus Tiedemann chamou de princípio de bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado” [5].

Em se tratando de delitos como o furto privilegiado (art. 155 § 2º, Código Penal), onde a coisa é de pequeno valor e no caso de violação ao artigo 16 da Lei 6.368/76 por ser pequena a quantidade de entorpecentes, há a tentativa excluir a ilicitude da conduta pela insignificância do delito.

Para nós, tal tese não merece prosperar, pois, no caso do entorpecente teremos um consentimento do ofendido de um bem ao qual o titular não pode dispor a saúde, além de em segundo plano o amparo penal recair sobre a paz pública, a tranqüilidade e a saúde pública, todos estes, bens onde não há a disponibilidade ao titular do bem por tratar-se de interesse coletivo. E no caso do furto, porque paulatinamente os agentes podem perder noção das raias daquilo que é de pequeno valor, ínfimo, inestimável e haver um avanço delituoso, pela impunidade que a aplicação do princípio geraria. Mas, pela outra mão, visualizaríamos um cenário onde um réu de pequena capacidade ofensiva seria posto as barras do sistema carcerário deturpador de caráter.

A solução para aparente conflito entre o status libertatis e o jus puniendi está no princípio da proporcionalidade da pena. Há formas de reeducação do réu sem que haja a necessidade de sofrer os martírios da prisão, como as penas restritivas de direito que mostram eficiente forma de recuperação em algumas situações. E dentro desse rol das penas alternativas notamos uma liberdade ao magistrado para que dentro do rol taxativo apontado no Código Penal possa aplicar a reprimenda que melhor adequar ao comando penal violado. E aí reside o princípio da proporcionalidade que para Julio Fabbrini Mirabete: “cada crime deve ser reprimido com uma sanção proporcional ao mal por ele causado. Essa característica, entretanto, é abrandada no direito positivo: a Constituição Federal determina que “a lei regulará a individualização da pena” (art. 5º, XLVI), e o Código Penal refere-se, quando da aplicação da pena, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente (art. 59), à reincidência (art. 61, I) etc” [6], bem como notarmos que dentre as circunstâncias judiciais notaremos a suficiência da pena, que também baliza a justiça na pena.

Pela contraposição dos princípios explanados podemos concluir que a conjugação destes poderá levar a justiça penal, mas que o excesso em qualquer um deles poderá dar azo ao estado de impunidade e atipicidade penal extremada, com a perda das raias do que é ilícito penal e do teor da lesão, do dano e a gravidade do mesmo. A aplicação seqüenciada dos princípios nos levará a justiça norteada pela verdade real e ressocialização, antes da função punitiva estatal de mantença da ordem e paz sociais.


IV) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:



BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – vol. I. 6ª Ed. Saraiva. São Paulo/SP. 2000.

DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 1ª Ed. Forense. Rio de Janeiro/RJ. 2001.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal - vol. 1. 22ª Ed. Saraiva. São Paulo/SP. 1999.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal - vol. I. 17ª Ed. Atlas. São Paulo/SP.2001.

PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro - vol. I. 2ª Ed. RT. São Paulo/SP. 2001.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Basilares de Direito Penal. 2ª Ed. Saraiva. São Paulo/SP.1986.



[1] PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro - vol. I. 2ª Ed. RT. São Paulo/SP. 2001. p. 84.

[2] DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 1ª Ed. Forense. Rio de Janeiro/RJ. 2001. p.64/65.

[3] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Basilares de Direito Penal. 2ª Ed. Saraiva. São Paulo/SP.1986.p.120.

[4] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal - vol. 1. 22ª Ed. Saraiva. São Paulo/SP. 1999. p.10.

[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – vol. I. 6ª Ed. Saraiva. São Paulo/SP. 2000. p. 19

[6] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal - vol. I. 17ª Ed. Atlas. São Paulo/SP.2001. p. 246.
Sobre o(a) autor(a)
Flávio Augusto Maretti Siqueira
Advogado, Pós Graduado pela FDDJ e Pós Graduando em Direito Penal e Processo Penal na UEL.
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