Um caso de coisa julgada progressiva

Um caso de coisa julgada progressiva

Trata sobre um caso concreto em que se pretende executar parcelas da condenação, não passível de alteração, mas pendendo ainda de solução de recurso de revista. A pretensão foi negada, em primeira instância, o que ensejou agravo de petição para o TRT 3ª. O julgamento deve ser breve.

A sentença de primeira instância deferiu, entre outras parcelas, uma indenização por despedida sem justa causa, quinze minutos extraordinários, pela ausência de repouso antes do início da jornada suplementar, o valor correspondente a uma hora extra pela não obediência do intervalo mínimo para refeição e horas extras além da oitava diária, fixando o divisor 200 para apuração do valor de tais horas.  

O vencido não recorreu da condenação relativa à indenização, o que levou a autora a promover, em  autos paralelos, a execução definitiva da referida parcela, processo este já extinto pelo pagamento do débito liquidado.  

Ao recurso do réu não foi dado provimento, sendo mantida a sentença pelo Tribunal, inclusive quanto aos 15 minutos extraordinários e ao divisor 200; aviou revista o vencido, atacando tão somente estas duas questões, tendo sido admitido o apelo.

A autora promoveu, então, a execução provisória do acórdão, sendo que, na liquidação, concordou o réu com os cálculos apresentados pelo autor.

O autor, entendendo que a parte não atacada no recurso de revista transitara em julgado, requereu fosse aquela executada, de forma definitiva. Para tanto, juntou ao requerimento uma planilha de cálculo, onde se excluíram os 15 minutos extraordinários e a vantagem do divisor 200, aplicando-se o de 220.

Sustentou-se, no referido requerimento, que a parte que se pretendia executar já estaria imutável, vez que, qualquer que fosse a decisão do TST, não poderia ela ir aquém do mínimo pretendido, como, por exemplo, aumentar o divisor para número superior a 220 ou reduzir a quantidade de horas extras prestadas além da oitava diária.

Fundamentou sua pretensão na teoria da coisa julgada progressiva.

A discussão nos Tribunais sobre esse tema teve como causa, originariamente, a definição sobre o marco da contagem do prazo decadencial para propositura da ação rescisória.

O STJ, por via de sua Súmula 401, em nome da unicidade da sentença, acolheu  o entendimento no sentido de que somente transita em julgado -  qualquer questão - a partir do “último pronunciamento judicial”.

Por seu lado, o TST, através da Súmula 100, especificamente, o seu inciso II, aceita a progressividade da coisa julgada, deixando claro no dispositivo que “o trânsito em julgado dá-se em momentos e em tribunais diferentes”, excepcionando-se a situação de o recurso buscar acolhimento de preliminar ou prejudicial que torne insubsistente a decisão recorrida, como, por exemplo, a questão que envolva disputa sobre a existência de relação de emprego.

A seu turno, o STF, em decisão de março de 2014, assentou que “os capítulos autônomos do pronunciamento judicial precluem no que não atacados por meio de recurso, surgindo, ante o fenômeno, o termo inicial do biênio decadencial para a propositura da rescisória”.

Observou o relator, Min. Marco Aurélio, que esse entendimento é antigo na Corte, veiculado na Súmula 354. Cita o caso da AP 470 (mensalão), onde se concluiu pela pronta execução da parte do acórdão não atacado por embargos infringentes. 

Quanto à doutrina, parece que a tese da coisa julgada progressiva conta com apoio majoritário dos estudiosos de processo.

É nessa linha de entendimento predominante que se apresentam as reflexões dos presentes escritos. 

Ordinariamente, a sentença decide diversas questões, envolvendo mais de um pedido, ainda que algum possa vir “implícito”, como o de condenação ao pagamento de juros e correção monetária, caracterizando-se as decisões sobre as pretensões deduzidas como capítulos da sentença.

Por inexistir ataque recursal a condenações múltiplas postas nas  sentenças, as decisões relativas àquelas não podem ser mais modificadas, em face de uma preclusão formal.

Essa particular situação é que autoriza e justifica a existência da chamada coisa julgada progressiva.

A utilidade do acolhimento da teoria é evidente: serve à delimitação dos marcos de contagem de prazo decadencial para propositura de rescisória, bem como eventual execução de imediato de condenação.

Anote-se que a verificação do que transitou e do que ainda não alcançou essa condição,  é possibilitada, no plano teórico,  pela natural divisão da sentença em “capítulos”, como sustentam os processualistas.

É certo, contudo, que, ante a ausência de uma precisa definição do que seja capítulo da sentença, podem surgir, na prática, problemas de difícil solução.

Para Cândido Dinamarco, capítulos da sentença são decisões de “questões autônomas” lançadas no dispositivo do julgado.

Aqui começam os problemas.  

Pelo entendimento do ilustre processualista, os contornos e limites do capítulo estariam nas questões autônomas decididas no dispositivo.

É certo que apenas a parte dispositiva faz coisa julgada, o que justificaria a localização do capítulo ali e não em outro lugar.

Todavia, pelo menos no âmbito trabalhista, não é incomum nomear genericamente as parcelas ou verbas deferidas na parte dispositiva, o que levaria, no conceito apresentado, a tornar o capítulo com tamanha extensão alcançando diversas “questões autônomas”, a desfazer o próprio conceito de capítulo, até mesmo o extraído de sua etimologia, “cabeça pequena, cabecinha”, tornando-o um capito (cabeção). 

Esse entendimento traria como consequência a admissão do aleatório, isto é, a definição do alcance do capítulo dependeria de opção do estilo do sentenciante; se minucioso, haveria inúmeros capítulos; se  sintético, alguns poucos. Obviamente, o rigor que a técnica exige impede que a definição de capítulos da sentença fique ao sabor do modo de cada juiz redigir a decisão.   

Veja-se como ocorre o fenômeno de síntese no julgado ensejador dos presentes escritos.                 

Após cuidar detalhadamente, na fundamentação, das horas extras excedentes da oitava diária, das horas do intervalo para refeição não respeitadas e dos 15 minutos relativos aos descansos antes do início da prorrogação da jornada, na parte dispositiva da sentença determinou-se o pagamento das horas extras num só tópico (o que caracterizaria um só capítulo), nos moldes da mesma fundamentação.                                                  

Se se adotar o entendimento no sentido de que seria um capítulo o tema das horas extras, restariam diversas “questões autônomas” dentro de um mesmo capítulo, o que contrariaria o próprio conceito de Dinamarco.  

Sem se considerar a ousadia da ideia,  parece bem razoável excluir-se da definição de capítulo de sentença o elemento tópico, isto é, não situando o fenômeno apenas na parte dispositiva da sentença, mas também na fundamentação do julgado, onde verdadeiramente se resolvem as questões.

De fato, no caso enfocado, as horas extras excedentes da oitava e as relativas ao repouso para alimentação e aos 15 minutos de folga antes do reinício da jornada são questões totalmente independentes; tais questões, por sua vez, não se vinculam, em conjunto ou cada uma de per si,  à decisão sobre divisor de hora extra. Como se vê, são questões autônomas que poderiam ser - cada uma isoladamente - decididas de maneira desuniforme, sem influência das respectivas decisões umas sobre as outras.

Dentro desse enfoque, no caso que deu motivo aos presentes escritos, de fato ocorreu a coisa julgada relativamente às decisões sobre as horas extras além da oitava e sobre as horas de descansos suprimidos, com quebra, assim, do princípio de que  apenas a parte dispositiva produz aquele efeito, ante a inafastável situação de imutabilidade do estabelecido, em função até mesmo de preclusão (esta poderia até não lançar influência em eventual ação rescisória, mas aqui se cuida do cumprimento da sentença, num mesmo processo, onde a praeclusio jamais poderá ser desconsiderada).

Nessa linha de entendimento de progressividade, não resta dúvida que, ocorrente o trânsito em julgado de alguma questão pela não abrangência dela pelo recurso interposto, independentemente de estar ou não na parte dispositiva da sentença, pode a condenação relativa a ela, questão, ser executada de forma definitiva.

Voltando ao caso, seria insanidade sustentar-se, por exemplo, que o número das horas extras fixado na fundamentação não seria alcançado pela coisa julgada porque, na parte dispositiva da sentença, não se constou a quantidade delas.  

Questão mais delicada, contudo, diz respeito à situação não de prejudicialidade de que trata o inciso II, da Súmula 100, do TST., mas de repercussão de determinada decisão sobre pedido distinto do examinado, mas que não implica na sua improcedência, como, por exemplo, a forma de calcular verba deferida e protegida pela res iudicata.

Esta situação se vislumbra no caso concreto de que se cuida, onde a condenação ao pagamento das horas extras além da oitava e das de repouso restou irrecorrida, mas  a discussão sobre o divisor para cálculo delas pende de resolução pelo T.S.T..

Tem-se, dessa forma, a seguinte situação: a autora pediu reconhecimento de jornada de seis horas, pelo que as dela excedentes seriam extraordinárias; o réu, por seu turno, aduziu que estava a autora submetida a jornada comum de oito horas; a solução dessa disputa definiria o divisor para cálculo das horas extras.

A sentença não reconheceu o divisor 180, o mesmo fazendo com relação ao divisor 220. Não recorreu a autora, o que gerou, em relação a ela, trânsito em julgado a impedir a rediscussão do tema.

Restaram apenas duas situações possíveis: a manutenção pelo TST do julgado recorrido, ou a adoção do divisor 220; não há uma terceira opção.

Neste caso, o provimento do recurso poderá influenciar no divisor da hora extra dentro dos limites da questão, mas não estipular divisor maior do que 220; aqui há uma solução trazida pela lei, qual seja, não existe possibilidade de haver divisor maior que 220, logo, com relação a ele, 220, a situação é imutável.

Se imutável, seja que qualificação se dê a esta situação – ocorrência de mera preclusão ou de coisa julgada - não há impedimento lógico ou jurídico para que não se autorize a execução definitiva das horas extras com divisor 220, pois, repita-se, o quanto que se apurar na liquidação dessa execução parcial definitiva será também  inatacável.

Há, ainda, razões de ordem prática a justificar a execução definitiva no caso de haver parte da condenação imune de ataque, em razão da ocorrência de coisa julgada, ainda que não abrangendo esta todo o decidido.   

Na parte alcançada pelo trânsito, já não há mais lide, assim definida como pretensão resistida ao direito material do autor; a lide, agora, surgirá apenas quanto à pretensão executória, já no plano do direito processual.

Não faz o menor sentido em se manter um processo de execução - comportando toda a dívida - suspenso, quando se pode dar prosseguimento a ele,  com rápida solução, para satisfazer, na maioria das vezes, substancial parte do débito.   

 A tese defendida pelo autor da ação aqui cuidada estaria mais reconfortada se já vigesse o futuro CPC.

Com efeito, ao modificar o conceito de sentença, acolheu expressamente a possibilidade de existir resolução de questões de mérito em decisões interlocutórias.

O artigo 513, do futuro diploma processual, dispõe que a coisa julgada, diferentemente do que dispõe o atual artigo 467, é produzida pela decisão de mérito não mais sujeita a recurso; vale dizer, a resolução de questão meritória não precisa, para a ocorrência da res iudicata, ser veiculada em sentença.  

Nesse enfoque, perder-se-ia sentido a discussão sobre trânsito em julgado de capítulos da sentença. Bastaria, no entendimento do autor destes escritos, que a questão de mérito seja decidida – em capitulo de sentença ou em decisão interlocutória - para torná-la apta à aquisição do status de coisa julgada, bastando, para alcançá-la, apenas a ausência de ataque recursal.  

Continuando o raciocínio, sob o mesmo enfoque não haveria nenhum empecilho para a execução de qualquer decisão demérito que não sofreu impugnação recursal, seja a resolução deste veiculada em sentença ou não sem a limitação dos “capítulos”.

No caso concreto da reclamação muitas vezes referida, seria perfeitamente viável a execução nos termos das resoluções meritórias inatacadas (número de horas extras prestadas e maior divisor possível, 220) das condenações ali postas.

Justifica e legitima ainda a iniciativa da execução definitiva o fato de a Constituição Federal prever o direito do jurisdicionado a uma razoável duração do processo; evidentemente que a interpretação desse princípio vai além de rígidas e limitadas regras da técnica processual.

Não adiante resolver o processo sem solucionar a lide, como ocorre, verbi gratia, na extinção dele sem julgamento do mérito. O processo não é um fim; o escopo dele é a composição da lide, com consequente pacificação social.

Interessante notar que, nessa linha de entendimento, vem o artigo 4º., do futuro C.P.C., regrando que as partes têm direito a obter em prazo razoável a solução integral da lide, inclusive a atividade satisfativa; ao se referir à lide e não ao processo, deu dito dispositivo clara interpretação da regra constitucional.   

Ora, se se propõe resolver a lide, em significativa porção, com rapidez, não é razoável que, em nome de teorias sobre a ocorrência plena da coisa julgada, se postergue a composição para um futuro remoto.

Como observado, a razoável duração do processo, ordenada pelo legislador constitucional, na realidade é uma promessa de uma razoável duração do solver da lide.

Essa visão igualmente é confortada por  outra disposição do futuro C.P.C., segundo a qual, na diretriz do artigo 249, parágrafo 2º., do atual Código,  o juiz não acolherá preliminar se o mérito puder ser decidido em favor de quem a arguiu. Essa regra mostra, induvidosamente, a preocupação com o destino da lide e não com o do processo.                   

No plano dos recursos, ainda no futuro CPC, também se agasalhou o princípio da primazia do mérito, conforme se vê da disposição do artigo 945, que impõe ao relator o dever de dar oportunidade ao recorrente para sanar vícios ligados à admissibilidade do apelo.  

No caso de execução definitiva da condenação de parte alcançada pela coisa julgada, pode-se atender, ainda que não completamente,  ao mandamento da solução rápida do processo, com o solver de dívida reconhecida em juízo, embora de forma parcial,  o que é de extrema importância quando se trata de débito de natureza trabalhista. Isto é, tanto alcança o querer da norma a rápida solução parcial como a total da lide; interpretação que afaste a primeira porque não se alcança o máximo representado pela segunda não se afina com o objetivo da Constituição Federal.           

Sobre o(a) autor(a)
Raul Moreira Pinto
Raul Moreira Pinto Bacharel em direito, com colação de grau em 1969. Exercício da advocacia até 1979, quando do ingresso na magistratura trabalhista do TRT 3a. Região. Desembargador do TRT 3a. até 1998, quando aposentou-se...
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