Natureza jurídica das Medidas Provisórias

Natureza jurídica das Medidas Provisórias

Análise doutrinária acerca da natureza jurídica das medidas provisórias e suas consequências.

D eterminar a natureza jurídica das medidas provisórias não é simplesmente um trabalho para fins acadêmicos de classificação. Reside a importância desse assunto no fato de que conforme a natureza jurídica deste instituto, maior ou menor será a possibilidade de o Judiciário assumir controle sobre seus pressupostos de habilitação e conteúdo.

Estudando o tema, conclui-se que ainda hoje, juristas de renome, não chegaram a um consenso. Tamanha é a discordância, que a natureza jurídica desse instituto varia de lei à ato administrativo com força de lei, passando é claro, pela idéia de serem as medidas provisórias ato de governo.

Assim, este capítulo será destinado ao esclarecimento dessas correntes através da exposição dos argumentos que embasaram a teoria de alguns pensadores do direito.

De acordo com CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, a Constituição admite, em determinadas circunstâncias, o exercício da função legislativa pelo Executivo. Partindo deste princípio, para ele, lei não é apenas aquela editada pelo poder Legislativo. A Constituição Federal atribui função legislativa a outras entidades que não o Legislativo. Logo, os atos emanados dessas outras entidades, dentro da competência que lhes foi outorgada, é lei. Pode não ser lei no sentido orgânico e formal, mas é lei no sentido de que produz força de lei; já que tem o poder de inovar originariamente a ordem jurídica. Para ele, o fato de as medidas provisórias estarem elencadas como uma das espécies normativas primárias no artigo 59 da Constituição Federal é motivo para justificá-las como lei. Em seu entendimento, lei para o Constituinte, são todos os atos normativos primários. Assim, medidas provisórias são de natureza jurídica de lei, não em sentido formal; já que existe a lei como gênero e lei formal como espécie. As medidas provisórias são espécies do gênero lei como as leis formais. [1]

A fonte desse raciocínio se encontra na disposição do artigo 84, XXVI da Constituição Federal Brasileira de 1988, o qual confere competência para o Chefe do Poder Executivo de “editar medidas provisórias com força de lei, nos termos do artigo 62 da CF”. Seguindo esse raciocínio, descarta-se a hipótese de as medidas provisórias constituírem uma delegação de competência do Poder Legislativo para o Executivo.

MARCO AURÉLIO GRECO, contrariando os pensamentos do doutrinador acima citado, discorda de ser a medida provisória lei. Sustenta esse autor que, pelo simples fato de ser a medida provisória um ato emanado do Poder Executivo, editado sem a participação do Poder Legislativo, já é o suficiente para descaracterizá-la como lei. Entende também que a competência em que o Executivo se apoia ao editar medidas provisórias, não é uma competência legislativa em sentido técnico. E, se caso fosse, a separação dos poderes, tal como hoje é conhecida, seria negada, na medida em que a função desses Poderes se confundiria. Segundo esse autor, se entender as medidas provisórias como lei, qual seria a explicação para o fato de a Constituição Federal prever o desfazimento integral dela, no caso em que a mesma não seja convertida em lei pelo Congresso Nacional, no prazo estabelecido pelo artigo 62 da Constituição Federal? Quanto a previsão descrita no artigo 59 da Constituição Federal de que o processo legislativo também compreende as medidas provisórias, MARCO AURÉLIO GRECO entende que esta previsão se refere às medidas provisória que já foram convertidas em lei. Assim, depois que as medidas provisórias forem convertidas em lei é que elas integrarão o processo legislativo. Pensando dessa forma, conclui este doutrinador: “A medida provisória é convertida em lei, logo, em si mesma não é lei, pois não se converte o que já é. Quanto à natureza, não difere de um decreto, é ato administrativo com força de lei, igualmente um ato oriundo do Poder Executivo. A competência que ele se apoia não é legislativa em sentido técnico.” [2]

Para a maioria dos estudiosos do direito, a crítica formulada por MARCO AURÉLIO GRECO tem seu valor; entretanto, a classificação dada por ele deixa a desejar.

Buscando explicações quanto a atos administrativos, HELY LOPES MEIRELLES, em seu Direito Administrativo Brasileiro, expõe que um dos requisitos do ato administrativo é a competência do agente, que deve estar restrita aos moldes legais. A competência resulta da lei e por ela é delimitada. E essa competência é específica, pois a competência administrativa é o poder atribuído ao agente da Administração para o desempenho de suas funções. Em sendo assim, não é a medida provisória resultado do exercício de uma função administrativa, pois sua edição apenas obedece aos pressupostos de relevância e urgência e às vedações constitucionais. Subordina-se diretamente à Constituição Federal, enquanto que os atos administrativos subordinam-se diretamente à lei e indiretamente à Constituição Federal. Além do mais, as medidas provisória tem por finalidade regular uma situação emergencial e nova e não a de dar aplicabilidade às leis como é de essência dos atos administrativos. [3]

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO discorda das correntes que afirmam serem as medidas provisórias leis ou ato administrativo com força de lei. Referido autor, define ato administrativo como “declaração do Estado no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional.” Afirma que os atos administrativos possuem regime jurídico próprio, são infraconstitucionais e são norteados pelos princípios da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e Indisponiblidade do Interesse Público. Partindo desse raciocínio, não há como afirmar que as medidas provisórias são atos administrativos com força de lei, já que elas não obedecem ao regime jurídico acima exposto. Por outro lado, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO não classifica as medidas provisórias como lei também pelos seguintes motivos: [4]

    a) medidas provisórias são uma forma excepcional de regular certos assuntos, ao passo que as leis são a via normal de discipliná-los;

    b) medidas provisórias são efêmeras, possuem seu prazo e vigência previamente estabelecidos na Constituição Federal, enquanto que as leis, normalmente tem duração indeterminada e quando temporárias, tem seu prazo de vigência nela mesma fixado;

    c) medidas provisórias, enquanto medida provisória, podem ser infirmadas a qualquer tempo pelo Congresso Nacional. Já a lei, esta depende apenas do órgão que a emanou;

    d) medidas provisórias, quando não convertidas em lei, perdem sua eficácia desde sua edição, efeito ex tunc, ao passo que as leis, quando revogadas, seus efeitos são cessados ex nunc;

    e) as medias provisórias, para serem editadas, devem atender aos pressupostos de relevância e urgência; enquanto que as leis não possuem pressupostos para sua edição;

    f) medidas provisórias são emanadas pelo Poder Executivo. Leis emanam do Poder Legislativo.

Para CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO é erro gravíssimo analisar as medidas provisórias como se fossem leis expedidas pelo Executivo e, em consequência atribuir-lhes regime jurídico ou possibilidades normatizadoras equivalente às das leis.

EROS ROBERTO GRAU, tem o seguinte entendimento: “Este, portanto, o aspecto a deixar bem vincado: medidas provisórias são leis especiais dotadas de vigência provisória”. [5]

RICARDO CAMPOS PADOVESE, buscando explicação para o entendimento de EROS ROBERTO GRAU, afirma não ser a medida provisória uma lei especial, já que DE PLÁCIDO E SILVA assim define lei especial: [6] “São leis, pois, que têm caráter restrito, pois que são impostas para regular relações de certas pessoas colocadas em determinadas posições ou em razão das funções exercidas. São as leis que dispõe sobre casos particulares.” Ao contrário, para RICARDO CAMPOS PADOVESE, medida provisória é um ato normativo, primário, geral, transitório, emanado do Poder Executivo, suscetível de criar direitos e obrigações precários, o qual deverá ser apreciado pelo Poder Legislativo para que adquira definitiva vigência e eficácia. Ainda afirma este autor que a medida provisória pode ser classificada como lei:

Por excelência, é a medida provisória um ato normativo, pelo qual se inserem no mundo jurídico uma ou mais normas. Assim, não poderia deixar de ser, visto que norma, segundo J. Flóscolo da Nóbrega (Introdução ao Direito, p. 26), “é uma regra de conduta que exprime um dever, uma regra de dever ser, prescrevendo o que se deve fazer para alcançar determinado fim”. Como visto, por conter disposição normativa a medida provisória pode ser ela caracterizada como lei. Contudo, deve-se atentar que não é lei em sentido estrito.(sic) [7]

O autor supra citado, procurando esclarecer seu raciocínio, traz ao texto o ensinamento de VICENT RÁO:

Em direito, com duplo sentido a palavra lei se apresenta: um, amplo compreensivo de toda norma geral de conduta que define e disciplina as relações de fato incidentes no direito e cuja observância o Poder do Estado impões coercitivamente, como são as normas legislativas, as costumeiras e as demais, ditadas por outras fontes do direito, quando admitidas pelo legislador; outro, restrito, que se refere à lei em sentido próprio e formal. Neste último sentido, mais preciso, é a lei a norma geral de direito formulada e promulgada, por modo autêntico, pelo órgão competente da autoridade soberana e feita valer pela proteção-coerção, exercida pelo Estado(sic). [8]

Analisando o exposto, RICARDO CAMPOS PADOVESE entende que dúvida não resta de que a medida provisória é lei em sentido amplo. Afirma que apenas nesse sentido de lei é que podem ser entendidos os posicionamentos de juristas que defendem a inclusão da medida provisória no conceito de lei. Isso porque, principalmente, o órgão do qual emana a lei em sentido estrito é que determina sua qualidade. Como a medida provisória é editada pelo Poder Executivo, não pode ser ela classificada como lei restritamente entendida.

Referido autor completa seu raciocínio explicando que medida provisória é um ato primário, porque vale por si mesma, sem necessidade de ser completada por outras. É primário do ponto de vista constitucional também, por ter seu fundamento de validade calcado apenas na Constituição Federal. Desse pensamento é que o autor entende que o instituto em estudo aproxima-se de lei ordinária, visto que esta também tem sua validade fundamentada na Carta Magna e que hierarquicamente uma não se subordina à outra.

Na oportunidade, o autor em questão, afirma que não há nada que impeça serem as medidas provisórias geral, já que as mesmas devem ser respeitadas em todo o território nacional. E, são transitórias, porque, segundo o artigo 62 da Constituição Federal, vige por um período predeterminado, se o Congresso não a rejeitar em tempo menor.

Justifica seu conceito sobre a medida provisória criar direito e obrigação precários pelo motivo de que ela não cria direito adquirido nem ato jurídico perfeito.

O último elemento de sua definição que merece comentários é o de a medida provisória haver de ser apreciada pelo Congresso Nacional. Há fundamental importância desse ato, seguido de outros, para que seja reestabelecida a segurança jurídica o mais breve possível, dando-se estabilidade às relações jurídicas e evitando-se corrida ao judiciário.

Na companhia de renomados juristas, JOSÉ ROBERTO VIEIRA, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, CLÉLIO CHIESA, entre outros, entendemos ter a medida provisória natureza jurídica de ato de governo.

OTTO MAYER, jurista alemão, ao analisar o ordenamento jurídico positivo, constatou que havia uma atividade desenvolvida pelo Estado que não se enquadrava na tripartição de Poderes proposta por MONTESQUIEU. Sendo assim, ele propõe uma Quarta função do Estado, denominando-a de atividade sui geniris do Poder Estatal. Compreende a atividade, não subordinada às normas infraconstitucionais, que o Chefe do Executivo pratica através de uma competência outorgada pelo Texto Constitucional, que manifesta um poder de autoridade maior. [9]

Esta atividade, embora praticada pela administração não se confunde com os atos administrativos, já que obedecem diretamente à Constituição apenas. Caracterizam-se por uma discricionariedade que pode ser submetida à apreciação do Judiciário e pela liberdade de opção inerentes às atividades políticas ou governamentais. [10]

O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que: “as medidas provisórias perfazem no Direito pátrio uma categoria especial de atos normativos primários emanados do Executivo, com força, eficácia e poder de lei.” (Adin 293-7-600/DF, rel. Min. Celso de Mello). [11]



[1] Atividade Legislativa do Poder Executivo, p.56-57.

[2] Medidas Provisórias, p. 15.

[3] Direito Administrativo Brasileiro, p. 65.

[4] Elementos de Direito Administrativo, p.64.

[5] Medidas Provisórias na Constituição de 1988, Revistas dos Tribunais nº 658,p.240.

[6] apud RICARDO CAMPOS PADOVESE, Alguns aspectos atinentes às medidas provisórias, Revista Consulex p.193

[7] Revista Jurídica-Instituição Toledo de Ensino, p.198.

[8] Apud RICARDO CAPOS PADOVESE, Alguns aspectos atinentes às medidas provisórias, Revista Jurídica-Instituição Toledo de Ensino, p. 195.

[9] Apud. CLÉLIO CHIESA, Medidas Provisórias O Regime Jurídico Constitucional, p.32.

[10] JOSÉ ROBERTO VIEIRA, Medidas Provisórias em Matéria Tributária: As Catilinárias Brasileira, p. 244.

[11] Apud. CLÉLIO CHIESA, Medidas Provisórias O Regime Jurídico Constitucional, p. 30.

Sobre o(a) autor(a)
Nicole Barão Raffs
Bacharel em Direito
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