Ofensa à coisa julgada

Ofensa à coisa julgada

A polêmica se instala no momento em que essa segunda sentença é contraditória com relação à primeira e não é rescindida durante o biênio decadencial. Qual das duas sentenças deve prevalecer?

O instituto da “coisa julgada” encontra proteção na própria Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XXXVI: a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Além disso, na Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, ela também é abordada, sendo protegida de leis novas e definida como decisão de que não caiba mais recurso.

Já no Código de Processo Civil ela aparece em incisos como o do artigo 267, onde figura como uma das causas de extinção do processo sem resolução de mérito. O artigo 301, §3º, traz a definição do que seria coisa julgada: há coisa julgada, quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso.

O tema a ser abordado a seguir se refere à questão da coisa julgada em duas sentenças distintas, mas sobre ações idênticas, ou seja, as partes, o pedido e a causa de pedir são iguais.

De acordo com o art. 253, a nova ação deveria ter sido distribuída por dependência ao juízo prevento, porém na hipótese estudada aqui isso não ocorreu. O réu, antes de discutir o mérito na contestação dessa segunda ação, também não alegou coisa julgada, conforme dita o art. 301 do CPC: compete-lhe, porém, antes de discutir o mérito, alegar: Vl - coisa julgada.

Assim, após as decisões, chegamos ao caso de um possível ajuizamento de ação rescisória. Um dos motivos que a ensejam, segundo o artigo 485 do CPC, inciso IV, é a ofensa à coisa julgada: “essa segunda decisão, que não devia ter sido proferida, pode ser rescindida por violar a coisa julgada que, soberanamente, já se formou no primeiro processo” (BUENO, Cassio). A ação deve ser proposta até dois anos contados do trânsito em julgado da decisão (art. 495 CPC).

Apesar disso, se ela não for rescindida e confirmar o pronunciamento da sentença anterior, “o problema, em princípio, não se colocará, pois não haverá ofensa à coisa julgada” (GONÇALVES, Marcus).

A polêmica se instala no momento em que essa segunda sentença é contraditória com relação à primeira e não é rescindida durante o biênio decadencial. Qual das duas sentenças deve prevalecer?

Há as duas correntes.

De acordo com o autor Marcus Vinícius Rios Gonçalves, “em caso de coisas julgadas antagônicas deve prevalecer à primeira, pois a segunda foi prolatada quando já havia decisão definitiva a respeito”.

Posicionamento igual adota Cassio Scarpinella Bueno: “é mais acertada a corrente que sustenta o prevalecimento da primeira coisa julgada, independentemente de ela decorrer da resolução de mérito do primeiro ou do segundo processo”.

Há outros autores que defendem que, nesses casos, o prazo de dois anos para ajuizamento da ação rescisória não valeria: “diante das soluções possíveis, em nosso entender, a melhor é considerar como não escrito o prazo do art. 495 do Código, autorizando-se a rescisória sem o pressuposto do biênio. Isso porque a imposição de prazo para retirar do mundo jurídico uma decisão que contraria a coisa julgada é inconstitucional” (RIZZI, Luiz Sergio de Souza apud DONOSO, Denis).

Já os que defendem que a segunda coisa julgada deve prevalecer, utilizam argumentos como: a parte tem dois anos para recorrer da segunda decisão, alegando a própria ofensa à coisa julgada, mas já que ficou inerte nesse período significa que se conforma com essa nova decisão.

Outro posicionamento dessa corrente se funda no raciocínio de que “o ato estatal posterior revoga os anteriores, ou seja, a sentença posterior não rescindida no prazo de dois anos revoga a anterior” (DINAMARCO, Cândido Rangel apud DONOSO, Denis).

O STF, ao julgar o habeas corpus 101.131 do DF, em 25/10/2011, posicionou-se de acordo com o entendimento de que a primeira sentença deve prevalecer, mesmo no caso da pena imposta ao réu na segunda ser mais benéfica. O informativo do STF 646 traz um resumo da decisão:

PRIMEIRA TURMA

Duplo julgamento pelo mesmo fato: “bis in idem” e coisa julgada


Em conclusão de julgamento, a 1ª Turma, por maioria, denegou habeas corpus, porém, concedeu a ordem, de ofício, a fim de fazer prevalecer decisão proferida no primeiro processo. No caso, o réu fora condenado, duplamente, pela prática de roubo circunstanciado (CP, art. 157, § 2º, I). A defesa alegava que esse fato configuraria bis in idem e que a última decisão deveria predominar em detrimento daquela outra, por ser mais favorável — v. Informativo 622. Aduziu-se que a ação instaurada posteriormente jamais poderia ter existido, seria nula em razão da litispendência, e que apenas a primeira teria validade no mundo jurídico, independentemente da pena cominada em ambos os processos. Destarte, retirar-se-ia uma das condenações, em favor do agente, ou seja, a segunda. Vencido o Min. Luiz Fux, relator, que concedia a ordem, de ofício, para declarar revogada a condenação mais gravosa ao paciente e, por conseguinte, a prevalência da sentença mais recente.
HC 101131/DF, rel. orig. Min. Luiz Fux, red. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio. 25.10.2011. (HC- 101131)

Com base nas leituras e argumentos defendidos pelos autores citados, observa-se que a Constituição Federal e a Lei de Introdução ao Direito Brasileiro protegem a coisa julgada de leis novas. Se ela é resguardada até pela Carta Magna com relação a isso, por que não pensar que ela também deve ser preservada em confronto com uma nova sentença?

Até mesmo poderia ser suscitada litigância de má-fé no que diz respeito ao ajuizamento de segunda ação idêntica à primeira que teve trânsito em julgado. Portanto, é difícil aceitar que a segunda sentença, oriunda de um processo que nem deveria existir, deva prevalecer em detrimento da primeira.

Apenas a demanda inicial continha uma das condições da ação: o interesse de agir. Agora a necessidade não é mais da parte autora da ação, mas sim do ordenamento jurídico em preservar a instituição da coisa julgada, em detrimento de abalar as bases da segurança jurídica.

Posicionamentos como o de RIZZI, citado anteriormente, podem suscitar que também afetaria a segurança jurídica poder intentar uma ação rescisória fora do biênio previsto em lei, porém essa inércia teria como pressuposto anular uma decisão “viciada”, que nem deveria existir.

Com relação ao defendido por Dinamarco, realmente o ato estatal posterior revoga o anterior, mas a CF diz que nenhuma lei (nova) prejudicará a coisa julgada.

Portanto, o posicionamento de que a primeira decisão deve prevalecer parece o mais correto, pois respeita a instituição da coisa julgada de uma forma mais evidente, já que realmente a preserva.


Referências

BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil – Vol. V. São Paulo: Saraiva.

DONOSO, Denis. Coisas Julgadas Antagônicas Após o Prazo da Ação Rescisória. Portal Jurídico Investidura, Florianópolis: 12 fev. 2009. Disponível em: <http://www.investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos

/processocivil/2691-coisas-julgadas-antagonicas-apos-o-prazo-da-acao-rescisoria.html>. Acesso em: 16 mai. 2012.

GONÇALVES. Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. São Paulo: Saraiva.

Informativo do Supremo Tribunal Federal nº 646 de 24 de outubro a 4 de novembro de 2011. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo646.htm#Duplo julgamento pelo mesmo fato: “bis in idem” e coisa julgada>. Acesso em: 19 mai. 2012.

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Selma Rizzetto Tronco
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