A representação dos pobres e dos miseráveis como fator constituinte das suas identidades

A representação dos pobres e dos miseráveis como fator constituinte das suas identidades

Políticas públicas significam a possibilidade de implementações, de fato, de ações governamentais especificadas nos textos constitucional e infraconstitucional, tais como defesa de uma educação e saúde públicas de qualidade, de um meio ambiente limpo e sustentável e do combate da pobreza.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo pretende analisar as implicações do conceito de pobreza no texto constitucional brasileiro, importando numa visão estatal, pro societate, do pobre enquanto ‘o outro’. A nosso ver, constitui tema central das atuais discussões inclusivas o relevante papel do Estado nas Políticas Públicas, sobretudo em resposta aos setores marginalizados da sociedade. Propõe-se também desmistificar determinada visão inexorável e inata igualmente profética e idealizada do pobre e do miserável, como vistos através das lentes do grande Poeta francês, entre sarcástico e maravilhado:

[...] e aqueles seis olhos contemplavam fixamente o novo café com uma igual admiração, diversamente cambiante pelo tempo, porém. [...] Os olhos do pai diziam: ‘Como é belo! Como é Belo! Pode-se dizer que todo o ouro do pobre mundo veio entregar-se a esses muros.’ – Os olhos do pequeno garoto: ‘Como é belo! Como é belo! Mas é um lugar em que só podem entrar pessoa que não são como nós.’ Quanto aos olhos do pequenino, eles estavam em demasia fascinados para expressar outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda (BAUDELAIRE, 1997, Tradução nossa). [1]

2. O ESTADO FRENTE À POBREZA e À MARGINALIZAÇÃO

Percebe-se, nos limites do discurso constitucional, a priori, tal um esperançoso porvir, a identificação do pobre como o diferente, aquele que deve ser ‘incluído’, sob o risco da deslegitimação daqueles direitos regulamentados e prometidos por um Estado que se quer, na ocasião, Democrático e de Direito. Para confrontar nossas idéias, nos embasamos fundamentalmente na Teoria do Mínimo Existencial, particularmente no livro O Direito ao Mínimo Existencial, de autoria de Ricardo Lobo Torres que, pensamos, constitui marco teórico imprescindível na defesa da mais adequada tese de combate a marginalização a que são acometidos os pobres e miseráveis, a partir da afirmação deste autor de que a meditação sobre o mínimo existencial aprofunda-se sob a ótica dos direitos humanos e do constitucionalismo (TORRES, 2009, p. 7).

O artigo 3º, da Constituição Federal de 1988, propõe, como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. Por sua vez, nos artigos 203 e 204, CF/88, o direito à Assistência Social, nas palavras de José Afonso da Silva constitui a face universalizante da Seguridade Social, porque será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição (SILVA, 2008, p. 781).

O mesmo autor, nesse diapasão, conceitua a pobreza e a marginalização:

A pobreza é o estado de quem não tem o necessário para a vida, de quem vive com escassez; ao contrário da riqueza, que é o estado de quem vive na superabundância, com muito mais recursos do que o necessário. [...] Quando a pobreza se aprofunda ao ponto de a pessoa não dispor do mínimo para subsistência [...] com o quê a pessoa se torna excluída. E aí se tem a marginalização (SILVA, 2008, p. 47).

Segundo Torres, o problema do mínimo existencial confunde-se com a própria questão da pobreza, uma vez que se faz necessário distinguir entre o que seja pobreza absoluta e pobreza relativa: a primeira ligada à miséria propriamente dita, que deve ser combatida obrigatoriamente pelo Estado, e pobreza relativa, de causas basicamente econômicas e distributivas, minorada de acordo com as possibilidades sociais e orçamentárias (TORRES, 2009, p. 14).

Silva e Torres entendem, todavia, a dificuldade de uma definição apriorística de pobreza, por causas variáveis no tempo e no espaço. Contudo, reconhecem ambos que a questão da pobreza pouco tem interessado tanto aos juristas quanto aos Tribunais, chegando Torres a afirmar que a tese da miséria e da pobreza foi apropriada por sociólogos e cientistas políticos, embora não tenham estes conseguido penetrar nas considerações valorativas e de dever-ser (TORRES, 2009, p. 15).

Em tal situação, há por parte desse indivíduo fronteiriço, aquele que deve pertencer, pois sobre si não resta contradição alguma, perda de consciência do seu lugar na ordem social, porque não pertencente a nada, a lugar ou coisa alguma, uma vez que tal lugar ou tal coisa já se encontram preenchidos pelos cidadãos ‘incluídos’, detentores da plena cidadania – direito de votar e ser votado ou de ir e vir, etc. –, por cujo viés perpassa o cambiante pensamento liberal econômico, em que iniciativa privada se sobrepõem à ação estatal, ambos garantidoras da ‘mais valia’, contudo. Estão, então, ‘os outros’, por inclusão legal, definitivamente fora dos limites da renovada velha ordem globalizada? Para usar de uma linguagem cara aos vigentes textos legais, desde ao menos a Declaração de 1789, quem são os proprietários do inviolado e sagrado bem-estar mínimo almejado pelos cidadãos a serem incluídos?

Com Elaine Martins Parise, articulando a respeito de Políticas Públicas:

Os direitos sociais previstos na Constituição são dirigidos a todos os habitantes do país e, embora as políticas públicas para a sua implementação já estejam, em grande parte, estabelecidas por legislação infraconstitucional, sua efetividade nem sempre é levada a cabo pelos administradores públicos, o que conduz os cidadãos, por si ou por seus substitutos processuais, à busca de sua implementação (PARISE, 2003, p. 47).

Políticas públicas, na hipótese, significam a possibilidade de implementações, de fato, de ações governamentais especificadas nos textos constitucional e infraconstitucional, tais como defesa de uma educação e saúde públicas de qualidade, de um meio ambiente limpo e sustentável e, entre tantas, do combate e da erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais. Resulta, porém, em observação e em cumprimento da lei pelos Poderes da República, que proceda sobretudo o Ministério Público, na qualidade de promotor em defesa dos interesses indisponíveis da sociedade, pois sua atuação está intimamente ligada à defesa do Estado Social Democrático de Direito.

3. Da Invenção da Pobreza ao Mínimo Existêncial

“O estudo das causas da pobreza é o estudo das causas da degradação de uma grande parte da humanidade” (MARSHALL apud GALBRAITH, 1987, p. 243).

A pobreza e a desigualdade são tão antigas quanto a humanidade e, como diziam os Provérbios, 13:7-8, “Há quem parece rico não tendo nada, há quem se faz de pobre e possui copiosa riqueza. A riqueza de um homem é o resgate de sua vida, mas o pobre está livre de ameaças”.

Por aí, em duas frases ricas em imagens sobre determinada realidade, apresenta-se óbvia, todavia intricada, a complexidade da busca das causas do surgimento da pobreza e das desigualdades, tanto quanto são paradoxais as estratégias de soluções para um problema que se mantém nas ricas e suntuosas sociedades pós-modernas, perpetuando uma anônima e irônica máxima corrente na rede globalizada: ‘dinheiro não é tudo na vida e, às vezes, sequer é suficiente’.

Em escala antes inimaginável, a dupla revolução burguesa dos sécs. XVIII-XIX, sobretudo a Revolução Industrial, trouxe, tormentosa, como novidade para a cena social, o aumento escancarado e brutal da pobreza a olhos vistos, mas trouxe também, no bojo da Revolução Francesa, a novidade indigesta das primeiras formas de resistência dos pobres, que passam a organizar-se enquanto consciência de classe. Nesse período, segundo o historiador E. J. Hobsbawm:

[...] o desenvolvimento urbano foi um gigantesco processo de segregação de classes, que empurrava os novos trabalhadores pobres para as grandes concentrações de miséria alijadas dos centros de governo e dos negócios, e das novas áreas residenciais da burguesia. A divisão das grandes cidades européias, de caráter quase universal, em zonas ricas localizadas a oeste e zonas pobres localizadas a leste se desenvolveu neste período (HOBSBAWM, 2007, p. 283-284).

[...] O verdadeiramente novo no movimento operário do princípio do século XIX era a consciência de classe e a ambição de classe. Os ‘pobres’ não mais se defrontavam com os ‘ricos’. Uma classe específica, a classe operária, trabalhadores ou proletariado, enfrentava a dos patrões ou capitalistas. A Revolução Francesa deu confiança a essa nova classe; a Revolução Industrial provocou nela uma necessidade de mobilização permanente (HOBSBAWM, 2007, p. 291).

Importa afirmar que as primeiras discussões mais contundentes sobre as causas e erradicação da pobreza estão intimamente relacionadas com os impactos da dupla revolução e suas conseqüências na vida das pessoas e das sociedades, algo que reflete correlatamente no modo de ver e de agir dos atuais atores sócio-políticos. O mundo das oportunidades então, como agora, já se abria a todos, e aqueles que não conseguiam ir além por si próprios, demonstravam falta de inteligência pessoal, de envergadura moral, de energia, e eram insensivelmente tratados como bárbaros sem fronteiras, não seres humanos portadores de direitos e deveres. Os pobres não mais seriam os mesmos após os acontecimentos que marcaram o fim de uma história, idílica, ingênua, um tanto quanto apócrifa que, com seus crucifixos e sanguinolenta barbárie, abriria espaço para a modernidade globalizada.

No período da dupla revolução vem à luz, igualmente, o advento das teorias sobre o constitucionalismo moderno, a natureza da sociedade e a direção para a qual ela estava se encaminhando ou deveria se encaminhar. Barroso fornece uma formulação um tanto quanto precisa do momento, ao discorrer que “em um ambiente dominado pelas aspirações de racionalidade do iluminismo, do jusnaturalismo e do contratualismo, as noções de poder constituinte, soberania e legitimidade política iniciam sua longa e acidentada convivência” (BARROSO, 2010, p. 96).

Ainda de acordo com Barroso, “esse processo, [...] conduz ao momento atual, cujo traço distintivo é a constitucionalização do Direito. A aproximação entre constitucionalismo e democracia, a força normativa da Constituição e a difusão da jurisdição constitucional foram ritos de passagem para o modelo atual” (BARROSO, 2010, p. 353-354).

4. A Teoria do Mínimo Existencial

A Teoria do Mínimo Existencial é um subsistema da Teoria dos Direitos Fundamentais. Diz Torres: “o mínimo existencial não é um valor nem um princípio jurídico, mas o conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Não é um valor, por não possuir a generalidade e a abstração de idéias como as de liberdades, justiça e igualdade, mas se deixa tocar permanentemente pelos valores da liberdade, da justiça, da igualdade e da solidariedade. Não é princípio jurídico por não apresentar as principais características dos princípios: ser objeto de ponderação, pois vale definitivamente, constituindo o núcleo básico dos direitos fundamentais e, finalmente por constituir direitos categóricos, cabais. É regra, pois revela o liame lógico de uma situação específica, no caso a pobreza e a marginalização, com a previsão genérica revelada pelo próprio texto legal” (TORRES, P.83-83). Na visão deste autor, as mais relevantes características da Teoria do Mínimo Existencial, da mesma forma que acontece com a dos Direitos Fundamentais – direito de liberdade, direitos fundamentais sociais –, encontram-se as de ser normativa, interpretativa, dogmática e vinculada à moral (TORRES, 2009, p. 26).

É interpretativa, eis que projeta conseqüências sobre a interpretação dos direitos fundamentais. [...] ‘É dogmática porque lhe interessa concretizar os direitos fundamentais a partir de suas fontes legislativas e jurisprudenciais. [...], com a complexidade da sociedade contemporânea, os direitos fundamentais podem se aperfeiçoar nas Constituições dos Estados-membros e na própria legislação, neles incluído o mínimo existencial.’ [...], a teoria do mínimo existencial está intimamente ligada à moral, até porque os direitos fundamentais vinculam-se aos princípios morais ou aos direitos morais. Segue-se daí que a teoria dos direitos fundamentais, nela incluída a do mínimo existencial, é um dos caminhos para a própria legitimação dos direitos fundamentais (TORRES, 2009, p. 26-28).

Questão polêmica na ordem do dia, sobretudo num Estado autotitulado Democrático de Direito, diz respeito à efetividade do chamado direito mínimo existencial, pois, mais uma vez, como diria o poeta, ‘a gente não quer só comida, a gente quer comida e felicidade’. Esse Estado Democrático de Direito fundamentado em princípios tais como o da ponderação, o da razoabilidade e o da igualdade, com determinada e certa ênfase nos princípios da eficiência – interpretado de forma a abalizar melhor a utilização dos recursos, meios, esforços públicos, bem como os seus resultados – e do interesse público – legitimador de uma atuação estatal específica, ponderando com relação aos interesses privados –, princípios que legitimam aquele Estado perante os cidadãos, é que o obriga a assumir relações de cidadania plena e implementar as prestações das políticas públicas.

Sob tal perspectiva, para que restem elucidadas certas dúvidas, o que caracteriza o Estado Democrático de Direito é a incorporação ao seu modelo do costumeiro argumento da dificuldade financeira, daquelas exigências próprias de um Estado que é também social. De certo ponto de vista, a “reserva do possível” não se aplicaria ao mínimo existencial, que se vincula à reserva orçamentária e às garantias institucionais da liberdade, plenamente sindicáveis pelo Judiciário nos casos de omissão administrativa ou legislativa (TORRES, 2009, p. 105-106).

Assim, há a expectativa de uma renovação do relacionamento entre o mínimo existencial, consubstanciado na entrega de prestações materiais em favor dos pobres porque dever do Estado, e os direitos sociais, que devem ser obtidos com recursos daquela reserva orçamentária somada às garantias institucionais de liberdade. Evidente, há limites de ordem fáticas, quase sempre de ordem financeira, à proteção positiva do mínimo existencial, cuja ponderação encontra-se justamente no princípio democrático e, de outra forma, na competência do próprio legislador. E, embora o mínimo existencial esteja compreendido no conteúdo dos direitos fundamentais, a recíproca não é verdadeira. Os direitos fundamentais e o mínimo existencial têm necessidade de proteção estatal aos bens essenciais à sobrevivência das populações miseráveis, sobretudo em países como o Brasil, cujas desigualdades sociais são flagrantes. As políticas públicas, judicializadas que sejam, devem garantir o mínimo existencial, tornando seus limites fáticos relativos.

Nesse contexto, retomamos e reafirmamos a posição adotada nos estudos de Aline Martins Parise, para quem:

A concretização da sociedade almejada pelo constituinte, livre, justa e solidária, na qual esteja garantido o desenvolvimento nacional, sejam erradicadas a pobreza e a marginalização, sejam reduzidas as desigualdades sociais e regionais e, ainda, se promova o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação depende, sem dúvida, da efetivação dos direitos sociais assegurados na Constituição da República (PARISE, 2003, p. 63).

5. A erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades como objetivos fundamentais da República

Dispõem os artigos constitucionais 3º, 203 e 204, respectivamente:

Art.3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

[...];

III – Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

Art.203 A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à Seguridade Social, e tem por objetivos:

Art.204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da Seguridade Social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:

As Constituições atuais emergem da dupla revolução como promessa de afirmação dos direitos humanos, negados pelos Estados Absolutistas, e esta negação, por um aparente paradoxo, ameaçava os homens em sua liberdade e dignidade, colocando em xeque a própria existência do Estado, que não se queria limitado. Norberto Bobbio, ao perscrutar sobre a essência do liberalismo e da democracia, discorrendo sobre os direitos do homem afirmava que:

O pressuposto filosófico do Estado Liberal, entendido como Estado limitado em contraposição ao Estado absoluto, é a doutrina dos direitos do homem elaborada pela escola do direito natural (ou jusnaturalismo): doutrina segundo a qual o homem, todos os homens, indiscriminadamente, têm por natureza e, portanto, independentemente de sua própria vontade, e menos ainda da vontade de alguns poucos ou de apenas um, certos direitos fundamentais, como o direito à vida, à liberdade, à segurança, à felicidade – direitos esses que o Estado, ou mais concretamente aqueles que num determinado momento histórico detêm o poder legítimo de exercer a força para obter a obediência a seus comandos devem respeitar, e portanto não invadir, e ao mesmo tempo proteger contra toda possível invasão por parte dos outros (BOBBIO, 2006, p. 11).

Não é objetivo aqui abordar a seara desta discussão acadêmica, embora adequada a um outro momento, envolvendo diferenças conceituais tautológicas e intrigantes entre direitos do homem e direitos humanos, tão intimamente relacionados entre si, um e outro tangenciando aquilo que as constituições modernas pretendem como direitos fundamentais (direitos não deste ou daquele homem, mas de todo e qualquer homem indistintamente).

De toda forma, Bobbio pretende que toda afirmação sobre direitos do homem e, por extensão, sobre os direitos humanos, superada a diferença entre os termos à moda de uma solução conciliadora ou de renúncias recíprocas, está intimamente relacionada à idéia de que o exercício do poder político apenas é legítimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais devem ser exercidos. Nesse sentido, a Constituição da Republica Federativa do Brasil, ao constituir seus objetivos fundamentais elencados no art. 3º, aponta fins a serem alcançados não por governos passageiros, senão pela República Federativa do Brasil, enquanto Estado, o Estado Brasileiro. Nas palavras de José Afonso da Silva, “não se trata de objetivos de governo, mas do Estado Brasileiro, denominado de República Federativa do Brasil. Cada governo pode ter metas próprias de sua ação, mas elas têm que se harmonizar com os objetivos fundamentais aí indicados”. E adverte: “Se indicarem em outro sentido, serão inconstitucionais” (SILVA, 2008, p. 46).

Objetivos, tal como caracterizado pelo Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, vem a significar aquilo que se pretende alcançar quando se realiza uma ação, enquanto que o adjetivo que lhe segue, Fundamentais, vem exatamente significar aquilo que tem caráter essencial e determinante; básico; indispensável.

Em conseqüência, porquanto a teoria da tripartição dos poderes sistematizada por Montesquieu, elaborada, sobretudo para fins de limitações dos poderes dos governantes em conformidade com as liberdades públicas, tenha perdido terreno pela acessão dos direitos sociais, não cabe a qualquer dos poderes da República furtar-se ao dever de efetivar e, de resto, garantir os direitos sociais previstos constitucionalmente. A partir da Constituição de 1988, a União, tanto quanto o Distrito Federal, os Estados e os Municípios, vêm ampliando investimentos nas áreas sociais, tanto pela via dos governantes – Executivo e Legislativo –, como pela via da solução judicial. Corolários diretos do seu artigo 3º, a Constituição de 1988 estabelece direitos à vida à igualdade, à segurança, à educação, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, à proteção a maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, previstos principalmente nos artigos 5º a 9º, CF/88. Especificamente no que diz respeito aos Poderes Públicos, a Constituição, artigo 23, Inciso X, de forma explícita determina que é competência comum à União, Estados, Distrito Federal e Municípios “combater as causas da pobreza e dos fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos”. Cabe, portanto, à Federação como um todo, adotar e perseguir políticas efetivas que combatam as causas que provocam a pobreza e a marginalização, bem como promover a integração social dos setores desfavorecidos.

6. INSTRUMENTOS ADEQUADOS DE COMBATE À POBREZA E À MARGINALIZAÇÃO

Entre as políticas sociais tendentes a solucionar o dilema brasileiro da pobreza e da marginalização têm-se destacado pelo seu cunho polêmico no seio de amplos setores da nação brasileira as ações afirmativas. Oriunda dos Estados Unidas da América, a partir sobretudo dos anos 60, inicialmente preocupou-se com a marginalização social e econômica dos negros naquela sociedade. Num momento seguinte, formam estendidas às mulheres, aos índios, aos homossexuais, aos deficientes físicos e outras minorias étnicas e nacionais.

O significado de ações afirmativas não chega ao Brasil de forma cristalina, em face justamente dos longos debates e experiências levados à cabo em outros países. De qualquer forma, as ações afirmativas estão relacionadas à políticas públicas direcionadas ao princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos das várias espécies de discriminação. Embora constituam políticas de radical transformação/intervenção no modo de pensar e agir de determinados setores da sociedade brasileira, é indispensável uma ampla conscientização desses mesmos setores e da própria sociedade, como um todo, no sentido de que as ações afirmativas não comportem ‘apenas’ ações reparadoras, compensatórias ou mesmo preventivas.

As ações afirmativas, em que pese a busca da integração dos diferentes grupos sociais existentes, pressupõem na realidade que a convivência entre diferentes pessoas ajudaria a superar visões preconceituosas e práticas discriminatórias, induzindo transformações de ordem cultural, pedagógica, psicológica e coibindo discriminações presentes tanto quanto efeitos persistentes de descriminações passadas que tendem a se perpetuar.

Historicamente, os governantes, sejam de direita ou de esquerda, são acusados de abusar das políticas públicas, em geral caracterizadas pelos seus críticos/opositores de ações assistencialistas e, mais recentemente, numa mudança de perspectiva crítica social, por ações de cunho redistributivo. No Brasil, as primeiras discussões em torno das ações afirmativas ocorrem no final dos anos de 1960, quando técnicos do Ministério do Trabalho e o Tribunal Superior do Trabalho propuseram criação de lei que obrigasse as empresas privadas a manter determinado percentual de empregados negros em seus quadros. Tal lei não vingou. Nos anos de 1980, projeto de lei n. 1332/83, propõe uma ‘ação compensatória, que estabeleceria mecanismos de compensação para afro-brasileiros após séculos de discriminação. Também tal projeto não é aprovado pelo Congresso. Apenas nos anos de 1990 é que surge a primeira lei de cotas adotadas nacionalmente: a legislação eleitoral estabeleceu cota mínima de 30% de mulheres para as candidaturas de todos os partidos políticos. Um marco.

Atualmente, o grande programa existente nas adjacências das políticas públicas é o Fome Zero, conjuntamente com o Bolsa Família e o Programa Minha Casa Minha Vida; têm como princípio básico o atendimento do ‘direito à alimentação, à saúde, à educação, à assistência social e à habitação. Embora tachados de assistencialistas por muitos, sem razão, pois sua estrutura é caracteristicamente emergencial, porém permanentes, na realidade esses programas são considerados inovadores ao criarem mecanismos de combate e de alteração das causas da pobreza, da miséria, da marginalização, ao mesmo tempo em que promove a inclusão social de parcela considerável da população brasileira. Esses programas contribuem indubitavelmente para reduzir as desigualdades sociais no Brasil.

Recentemente, entrou em vigência a Emenda Constitucional nº 67, de 22 de dezembro de 2010, que altera o artigo 79 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e o prazo de vigência da Lei Complementar nº111, de 06 de julho de 2001, que “Dispõe sobre o Fundo de Combate e Erradicação da Probreza, na forma prevista nos artigos 79, 80 e 81 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Dispõe o artigo 1º, da Emenda nº 67, de 22 de dezembro de 2010:

Art. 1º - Prorrogam-se, por tempo indeterminado, o prazo de vigência do Fundo de Combate e erradicação da Pobreza a que se refere o caput do art. 79 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e, igualmente, o prazo de vigência da Lei Complementar nº 111, de 6 de julho de 2001 (1) , que “Dispõe sobre o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, na forma prevista nos arts. 79, 80 e 81 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”.

Nesse ínterim, é de se admitir que o mínimo existencial, tratado em outro tópico, mas que subjaz nas ações analisadas, assenta-se em fontes que privilegiam a pessoa humana, adquirindo qualidade de direito público subjetivo do cidadão, oponível à administração. A violação de qualquer direito, por ação ou omissão, justifica in totum o controle jurisdicional.

Noutra perspectiva, ao Poder Judiciário, em sua especificidade, cabe respeitar os princípios gerais de direito, os costumes, as convenções, respeitar o justo natural que se aufere no viver social, jamais agindo com deliberada arbitrariedade, sob qualquer argumento. Em suas mãos encontra-se entre outros, um dos mais controversos institutos garantidores de direitos, qual seja o Mandado de Injunção, previsto no art.5º, LXXI, CF/88, em cujas bases assentam-se o juízo de equidade – um juízo que se orientará por uma pauta de valores jurídicos existentes na sociedade.

Durante muito tempo, desde sua inserção no direito pátrio, CF/88, padeceu o instituto do Mandado de Injunção de uma maior efetividade, uma vez que encontrava-se, de certa forma, neutralizado politicamente, sob o pretexto da invasão de competência de um Poder pelo outro. Entretanto, nova orientação adotada pelo Supremo Tribunal Federal, em julgados vindo à baila a partir do ano de 2007, pacificou a celeuma, ratificando a finalidade constitucional do Mandado de Injunção que é a de realizar concretamente em favor do impetrante, o direito, liberdade ou prerrogativa sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável seu exercício. Tais decisões, diga-se, neutralizaram o discurso segundo o qual haveria, com essa ação, invasão de um poder pelo outro. Uma vez que a regulamentação declarada tem caráter subsidiário e provisório, até que sobrevenha norma editada pelo órgão competente, não há ofensa à separação entre poderes ou mesmo atuação do STF enquanto legislador propriamente. Saliente-se o efeito erga omnes das decisões em sede de Mandado de Injunção, com o intuito de atender ao princípio constitucional da isonomia, ao mesmo tempo que, em situações análogas, evite-se tanto decisões judiciais conflitantes, quanto a ineficiência do próprio Judiciário.

Uma vez viabilizada a utilização do Mandado de Injunção a partir das recentes decisões do STF, prospera no Brasil, também, a Ação Civil Pública para garantir o mínimo existencial, limitada seu exercício pela lei orçamentária e pela vestuta e respeitável teoria da separação dos poderes. Contudo, voluntariosa, Parise, destaca que:

Os juízes e os membros do Ministério Público, na condição de integrantes da sociedade brasileira, precisam conscientizar-se de que o Estado Social Democrático de Direito e a sociedade mais igual política, social e economicamente, prevista na Carta Magna, dependem, além da atuação firme e corajosa dos membros do Parquet, de um Poder Judiciário transformador e cônscio de sua função jurisdicional (PARISE, 2003, p. 63).

7. Conclusão

Nesse trabalho, procurou-se analisar a questão dos pobres e dos miseráveis vistos sob uma perspectiva estatal, além de que, evidenciou-se o papel das políticas públicas no combate das causas da pobreza e da marginalização de grande parte da população brasileira. Investigou-se, de um lado, o mínimo existencial, constitucionalmente protegido, embora lhe seja antecedente, como direito público subjetivo, oriundo da dignidade do ser humano, seu princípio. Por outro, esse mesmo mínimo existencial, apto a se fazer protegido contra a intervenção estatal e, ao mesmo tempo garantido pelas prestações estatais.

Por fim, a necessária aceitação, com a devida deferência aos outros poderes, como visto, de que as decisões judiciais constituem fontes importantes de reconhecimento do mínimo existencial, importando assim em canal de luta contra as exclusões sociais.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

BAUDELAIRE, Charles. Petits Poemes em Prose (Le Spleen de Paris). Saint Amand: Gallimard, 1997.

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. reimpr. da 6. ed. de 1994. São Paulo: Brasiliense, 2006.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>.

BRASIL. Projeto de Lei n. 1332 de 1983. Dispõe sobre ação compensatória e estabelece percentuais de participação negra.

FUNDAMENTAIS. In: HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

GALBRAITH, John Kenneth. A sociedade afluente. São Paulo: Pioneira, 1987.

HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: 1789-1848. 21. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

OBJETIVOS. In: HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

PARISE, Elaine Martins. O papel do poder judiciário e do Ministério Público na implementação de políticas públicas. In: CASTRO, Dayse Starling Lima (Org.). Direitos difusos e coletivos: coletânea de artigos. Belo Horizonte: Atividade, 2003.

PROVÉRBIOS. In: A BÍBLIA Sagrada: tradução ecumêmica. 57. ed. São Paulo: Ed. Ave Maria, 2005.

SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 5. ed. de acordo com a Emenda Constitucional 56, de 19.12.2007. São Paulo: Malheiros, 2008.

TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

[1] [...] et ces six yeux contemplaient fixement le café nouveau avec une admiration égale, mais nuancée diversement par l’âge. [...] Les yeux du père disaient : “Que c’est beau! que c’est beau! on dirait que tout l’or du pauvre monde est venu se porter sur ces murs.” – Les yeux du petit garçon : “Que c’est beau! que c’est beau! mais c’est une maison ou peuvent seuls entrer les gens quin e sont pas comme nous.” – Quant aux yeux du plus petit, ils étaient trop fascinés pour exprimer autre chose qu’une joie stupide et profonde.
Sobre o(a) autor(a)
Eduardo Luiz Pinto Viana
Eduardo Luiz Pinto Viana Formado em Letras pela UFMG e em Direito pelo UNI-BH. Especialista em Direito Público pela PucMInas.
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