A Cruzada Antitabagista
Semana que vem entra em vigor, em São Paulo, a nova lei antifumo, uma bandeira política do governador José Serra. Os estabelecimentos que não se adequarem serão multados. A era do “politicamente correto” tem sido, muitas vezes, inimiga dos direitos individuais, cada vez mais ameaçados nesses dias.
“Aqueles que imaginam suprimir o pecado suprimindo a matéria do pecado são observadores medíocres da natureza humana”. (John Milton)
Semana que vem entra em vigor, em São Paulo, a nova lei antifumo, uma bandeira política do governador José Serra. Os estabelecimentos que não se adequarem serão multados. O objetivo, no fundo, é atacar o próprio hábito de fumar. A era do “politicamente correto” tem sido, muitas vezes, inimiga dos direitos individuais, cada vez mais ameaçados nesses dias.
Em primeiro lugar, é importante deixar claro que o governo não tem a função de proteger o indivíduo de si próprio. Como disse o ex-presidente americano Ronald Reagan, "os governos existem para nos proteger uns contra os outros; o governo vai além de seus limites quando decide proteger-nos de nós mesmos". Logo de cara, portanto, devemos condenar qualquer lei que tem como meta “educar” cada indivíduo.
E eis justamente um dos objetivos da cruzada de Serra e dos demais antitabagistas. Eles querem nada menos que criar o “novo homem”, livrar da humanidade o “pecado” do fumo. Em excelente artigo publicado em O Globo, intitulado “Pastor das Almas”, o sociólogo Demétrio Magnoli mostrou que esse tipo de cruzada era típica dos regimes fascista e nazista. Tanto Mussolini quanto Hitler acreditavam no Estado como um “pastor das almas”, capaz de moldar o ser humano ideal. O resultado todo mundo conhece.
Nos Estados Unidos, a Lei Seca foi nessa mesma linha, com resultados catastróficos. O puritanismo vencera a batalha, e a bebida alcoólica passou a ser vista como um inimigo público. Deu no que deu: as máfias assumiram a oferta dos produtos ilegais, porém amplamente demandados. A Lei Seca pariu Al Capone. Quando a experiência se mostrou claramente fracassada, e a lei foi derrubada, empresas renomadas passaram a vender bebida de forma controlada. O mundo não acabou.
Deixando de lado o argumento de proteção ao próprio fumante, devidamente refutado, resta rebater o ponto de que a nova lei visa à proteção dos fumantes passivos, ou seja, aqueles que são vítimas da fumaça que os fumantes exalam. Aqui, o principal argumento será a defesa da propriedade privada. Seria compreensível legislar sobre áreas públicas, como ruas, pois a liberdade do fumante acaba onde começa a do não-fumante, ainda que a poluição dos automóveis, por exemplo, seja muito mais nefasta que a dos cigarros. Mas não é possível estender esse direito aos locais privados, como bares e restaurantes.
Ora, ninguém é obrigado a freqüentar determinado bar ou restaurante. Presume-se que o dono do estabelecimento é quem detém o direito de escolher se será ou não permitido fumar no local, e entra nele quem assim desejar. No livre mercado, todos são livres para abrir um novo estabelecimento se quiser, atendendo algum nicho da demanda. Aqueles que detestam cigarro e realmente valorizam um ambiente livre de fumaça podem expressar esta vontade no mercado, e a própria busca por lucro fará com que empresas ofertem este serviço. No limite, os próprios defensores da cruzada antitabagista podem criar tais estabelecimentos, sem invadir a liberdade dos demais empresários. Desta forma eles estariam mostrando que realmente acreditam que existe uma demanda efetiva por locais livres do cigarro.
O que não é correto, do ponto de vista da Justiça, é ignorar o direito de propriedade particular, transformando os estabelecimentos em propriedade pública. Não é através do voto político que devemos decidir o que os bares e restaurantes vão oferecer aos consumidores. O livre mercado acaba ofertando todo tipo de produto e serviço, atendendo enorme diversidade de consumidores. Em contrapartida, a via política representa a ditadura da “maioria”. Um grupo majoritário de antitabagistas poderia simplesmente ditar uma norma geral, asfixiando a liberdade da minoria de fumantes ou indiferentes. E se amanhã a maioria for de vegetarianos? Na prática, nem é preciso uma maioria, pois uma minoria bem organizada politicamente pode fazer barulho suficiente para manipular a opinião pública ou conquistar políticos através de lobistas.
Portanto, a única forma de se preservar a liberdade individual, dependente da propriedade privada, é afastar o governo da questão do fumo em locais privados. Não cabe ao governo, assim como não cabe à maioria, decidir se deve ou não ser permitido fumar em bares ou restaurantes. A escolha deve ser apenas do dono do estabelecimento, e cada consumidor é livre para “votar” com os próprios pés e com o bolso, freqüentando os locais de preferência. Como os empresários buscam o lucro, a tendência será atender a demanda da maioria. No entanto, os direitos das minorias também estarão sendo mantidos, e o principal é que o direito de propriedade privada dos donos dos estabelecimentos estará protegido.
Infelizmente, a liberdade, como disse Lord Acton, sempre contou com poucos amigos sinceros. A maioria coloca seus próprios interesses imediatos acima da liberdade individual. Essas pessoas se colocam sempre do lado legislador, aplaudindo ou condenando medidas de acordo com seus desejos, e não com base no princípio da liberdade. Se não gostam do cigarro, aplaudem a cruzada antitabagista, mesmo que ela esteja agredindo o direito de propriedade particular. Mas se gostam de carne, seriam totalmente contra uma cruzada vegetariana, por exemplo. Essa postura representa uma ameaça à liberdade no longo prazo, pois substitui o princípio do direito de propriedade pelo conceito de “ditadura da maioria”. Por fim, acredito que não acrescenta nada aos argumentos aqui apresentados, que devem se sustentar por conta própria, mas aproveito para dizer que não sou fumante, e que detesto a fumaça do cigarro.