Cadastro reserva em certames públicos: mera discricionariedade ou vinculação administrativa?
Ensaio jurídico acerca do tema concurso públlico, mais especificamente quanto à formação de cadastro reserva e a consequente prorrogação de sua vigência. Tal análise restará balizada à luz dos princípios constitucionais e orientações jurisprudenciais que aludem à temática proposta.
Há tempos, o país observa contínua
e progressiva migração de profissionais do setor privado para o
público. Seja pelo fator estabilidade, seja por mero idealismo, fato
é que a procura por certames públicos tornou-se prioridade de 7 em
cada 10 profissionais recém-egressos das universidades públicas e
privadas brasileiras.
Para tal, cumpre ao candidato
submeter-se às exigências de
um Edital, que segundo José Afonso da Silva “visa
essencialmente realizar o principio de mérito que se apura mediante
investidura por concurso público de provas ou de provas e títulos,
de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na
forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em
comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneracão (art. 37,
II)". [1]
Não obstante a árdua missão de
conquistar sua vaga, num universo de milhares de concorrentes, o
candidato, por vezes, não logra o êxito merecido
e esperado. É que a complicada vida do "concurseiro"
resta ainda mais tormentosa face ao constante desrespeito das
Administrações Públicas, em geral, no tocante às normas
constitucionais alusivas a concurso público.
É certo que, há algum tempo, STJ e
STF pacificaram o entendimento inerente ao direito do candidato
aprovado dentro do número das vagas estabelecidas no instrumento
editalício a ser nomeado ao final do lapso temporal previsto para a
vigência do certame.
No entanto, muitas questões, ainda,
carecem da atenção do Poder Judiciário, eis que conduzem o rumo de
um concurso a terrenos deveras nebulosos, por vezes, culminando em
prejuízos irreparáveis, não apenas aos candidatos, mas à
sociedade como um todo.
Exemplo unívoco pode ser extraído da
polêmica que alude ao tema "cadastro
de reserva" e
"prorrogação do
concurso público".
Bastante recorrente em concursos modernos, o chamado cadastro reserva objetiva, em tese, reunir candidatos habilitados a assumir dada função pública segundo expectativa (evento futuro e incerto) aferida, a priori, conforme à necessidade do órgão ou entidade pública. De tal sorte, a Administração Pública observa à regra descrita no artigo 37, III [2], da Carta Magna, cujo teor estabelece um prazo de validade de até dois anos prorrogáveis pelo mesmo período.
Ab initio,
imperioso consignar que STJ e o STF [3],
por vezes, entenderam que candidatos aprovados em cadastro reserva
possuem "mera
expectativa de direito à nomeação"
em concurso, bem como restou assentado que a prorrogação de um
certame público denota o caráter "discricionário"
da Administração Pública em assim proceder, obstando a análise do
Poder Judiciário acerca do tema.
À margem de qualquer polêmica, é
preciso reconhecer que a premissa acima estatuída consagra, apenas e
tão somente, a regra deste núcleo e, como tal, comporta exceção,
devendo, portanto, ser aferida caso a caso, senão vejamos.
Desde a confirmação da tese, pelo
STF e STJ, atinente ao direito de nomeação dos aprovados conforme
às vagas definidas no Edital, as Administrações Públicas, temendo
eventuais complicações financeiras e orçamentárias, têm lançado
mão de um expediente costumeiramente aferível nos últimos
certames: vagas
predeterminadas cumuladas com a formação de Cadastro Reserva.
Desta feita, por razões diversas, a
Administração Pública deixa de preencher o número de vagas
predeterminadas ao final dos dois anos de validade do certame
(desistências, candidatos inaptos em exames complementares, suposta
dificuldade orçamentária, etc.) e, apesar das vagas existentes e da
manifesta necessidade em preenchê-las, deixa de convocar aqueles
candidatos constantes em cadastro, preferindo publicar novo
instrumento editalício.
Ora, mediante perfunctória leitura
acima, é possível depreender que a existência de vagas
remanescentes, aliada à formação de cadastro reserva, bem como o
caráter dispendioso de um novo certame, torna a situação em tela
extraordinária se comparada
àquela descrita como regra.
É que a Carta Magna brasileira elenca
expressamente e implicitamente dispositivos constitucionais deveras
sensíveis e de observância obrigatória pelo administrador público,
por sua vez, negligenciados in
casu.
Em outras linhas,
a decisão administrativa no sentido de não aproveitar o cadastro
reserva, havendo vagas remanescentes, viola inequivocamente os
princípios da "Legalidade,
Eficiência, Moralidade e, por derradeiro, o princípio da dignidade
da pessoa humana".
Como é cediço, a edição de um
concurso público é precedida de necessária lei que autoriza sua
abertura, bem como defina um número exato
de vagas a serem providas. Assim, por exemplo, se o instrumento
editalício previu 130 vagas para um dado cargo, mas por algum motivo
não conseguiu provê-las in
totum, sem, no entanto,
convocar o cadastro reserva para supri-las, afigura-se latente
a
violação ao princípio da legalidade, eis que a Administração
restou vinculada ao número de vagas ofertadas e tinha meios matérias
para seu preenchimento.
Na mesma esteira, o não-aproveitamento
deste material humano coloca em xeque a estrutura
jurídico-constitucional estatuída pelo princípio
da eficiência administrativa, eis que, desta forma, a Administração
simplesmente descarta profissionais de comprovada boa técnica e
aptos a atender às expectativas almejadas pela máquina pública.
Ademais, vale consignar o desrespeito
aos princípios da
moralidade e dignidade da pessoa humana.
Inequívoco reconhecer que ao formar cadastro reserva, em certames
públicos, a Administração Pública incute, tanto no indivíduo
(candidato) quanto sociedade, à ideia de aproveitamento destas
pessoas assim que caracterizada a possibilidade de seu
aproveitamento.
É o que se infere do julgado abaixo, in verbis:
“Entende esse Juízo que, ao promover o concurso público, ainda que inicialmente para a formação de cadastro de reserva, ré compromete-se a contratar os aprovados, pois o concurso figura como uma promessa de contratação, desde que haja necessidade do serviço, o que corresponde a fato incontroverso nos autos. A compreensão da lide, perpassa pela análise do conteúdo ético do certame, de modo que, ao se inscreverem de boa fé no concurso público, todos os candidatos arcam com os custos do processo de seleção, e se dedicam à preparação, com a expectativa de que, uma vez aprovados, preenchidos os requisitos legais e, havendo necessidade do serviço, a contratação corresponde a um direito inafastável” (grifo nosso).[4]
Destarte,
uma vez frustrada a convocação do candidato, quando esta era
possível, resta evidente a quebra da boa-fé objetiva que norteia
todo e qualquer certame, bem como faz com que o candidato, que há
tempos aspirava a oportunidade de ingressar no serviço público,
experimente situação de absoluto desconforto emocional que não se
coaduna com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Por derradeiro, exsurge unívoco
asseverar que a decisão, injustificada, de não prorrogar um
certame, onde há candidatos suficientes à vaga pretendida, para
lançar novo instrumento editalício, vai de encontro ao princípio
da economicidade (art.
70, CF) [5].
Neste diapasão, vale destacar o ensinamento de Ricardo Lobo Torres
[6],
in verbis:
"O conceito de economicidade,
originário da linguagem dos economistas, corresponde, no discurso
jurídico, ao de justiça. (...) eficiência na gestão financeira e
na execução orçamentária, consubstanciada na minimização de
custos e gastos públicos e na maximização da receita e da
arrecadação. (...) ‘‘sobretudo, a justa adequação e
equilíbrio entre as duas vertentes das finanças públicas.’’
Consoante o excerto supra, resta
induvidoso asseverar que a decisão de não prorrogar um certame
para, em seguida, lançar outro, afronta o princípio da
economicidade. Como é
cediço, a edição de um novo certame implica uma série de
procedimentos, desde os preparos que antecedem à licitação até a
efetiva escolha da nova organizadora do certame, demandando tempo e
gastos que, por sua vez, seriam evitados com a simples prorrogação
daquele vigente.
Tais posições restam confirmadas
em recente julgado proferido na Justiça Federal do Sergipe, cujo
decisum
determinou a prorrogação da validade de certame público promovido
por Autarquia de âmbito federal (INSS), após reconhecida a
ilegalidade do ato administrativo que altera a data de vigência do
concurso, a inobservância dos princípios da moralidade e
proporcionalidade, bem como em homenagem ao princípio da
economicidade.
Aqui, cabe consignar os fundamentos
explicitados nesta r. decisão, in
verbis:
“Na lição da doutrina, a
proporcionalidade exprime uma correlação de eficácia do ato em
relação à realidade sobre a qual vai atuar, selecionando as
medidas adequadas à satisfação do interesse público específico
colimado pela norma de regência do caso concreto.
De seu lado, a razoabilidade
opera uma harmonização da seleção prévia derivada da
proporcionalidade, permitindo balancear a aplicação da medida
selecionada, de modo que a satisfação do interesse público ocorra
concretamente com a menor restrição possível aos direitos
individuais dos cidadãos.
Nesse contexto, é
consabido o esforço e dispêndio para a definição das necessidades
de pessoal e a respectiva alocação de recursos na lei orçamentária
para prover os cargos públicos. Ora,
vencidas todas as etapas - de natureza política, orçamentária e
administrativa -, realizado
o concurso e selecionados os melhores candidatos, não se mostra
aceitável, em termos de boa gestão administrativa
- informada pela proporcionalidade e pela razoabilidade -, a
alteração das regras editalícias, manobrando-se seu prazo de
validade antes fixado, aspecto que poderia levar ao improvimento de
vagas com candidatos a tanto habilitados. (...)
Sob outro giro, a
previsibilidade imanente à segurança jurídica implica um elo de
confiança entre Estado e indivíduo e uma salvaguarda para toda a
sociedade, pois preserva e exige um mínimo ético de parte a parte.
A implicação do postulado da proteção à confiança, da segurança
jurídica e da boa-fé, com os atos administrativos (...) O
princípio da boa-fé, por sua vez, também abrange o aspecto
objetivo, que diz respeito à conduta leal, honesta, e um aspecto
subjetivo, que diz respeito à crença do sujeito de que está agindo
corretamente.
(...)Com efeito, na hipótese versada nesta demanda, não
é conferido ao INSS o direito de surpreender a todos com a expedição
de um edital retificador após a realização do certame e uma vez
conhecidos os candidatos aprovados em definitivo, manipulando o seu
prazo de validade.” [7]
É certo
que o caso, em tela, reserva certa peculiaridade, ante ao
reconhecimento da ilegalidade do ato administrativo que, após a
homologação do certame, alterou dispositivo editalício alusivo à
vigência do certame. No entanto, em seu bojo, trouxe elementos que
consagram à observância de princípios sensíveis por parte da
Administração Pública, impedindo que a inicial discricionariedade
descambe para a arbitrariedade.
Recentemente, o próprio STF deu sinais de que os princípios constitucionais suso mencionados, enfim, começam a permear o espectro do concurso público ao julgar o RE 581113/SC, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli, cuja ementa transcreve-se, in verbis:
EMENTA Concurso público. Criação,
por lei federal, de novos cargos durante o prazo de validade do
certame. Posterior regulamentação editada pelo Tribunal Superior
Eleitoral a determinar o aproveitamento, para o preenchimento
daqueles cargos, de aprovados em concurso que estivesse em vigor à
data da publicação da Lei.
1. A
Administração, é certo, não está obrigada a prorrogar o prazo de
validade dos concursos públicos; porém, se novos
cargos vêm a ser criados, durante tal prazo de validade, mostra-se
de todo recomendável que se proceda a essa prorrogação. 2. Na
hipótese de haver novas vagas, prestes a serem preenchidas, e
razoável número de aprovados em concurso ainda em vigor quando da
edição da Lei que criou essas novas vagas, não são justificativas
bastantes para o indeferimento da prorrogação da validade de
certame público razões de política administrativa interna do
Tribunal Regional Eleitoral que realizou o concurso.
3. Recurso extraordinário provido. (grifo
nosso) [8]
A decisão é paradigmática, eis que reflete os valores buscados por todo e qualquer Estado Democrático de Direito, que deve primar pela qualificação técnico-profissional de seus servidores, sem descurar a primazia pelo escorreito atendimento ao interesse público primário, bem como atende ao preceito que preconiza o respeito à pessoa humana.
Desta forma,
é possível abstrair que a ideia de discricionariedade na convocação
do cadastro reserva e respectiva prorrogação do certame, apesar de
regra, deve ser mensurada conforme às peculiaridades do caso
concreto, devendo o administrador subsumi-las à efetiva necessidade
de preenchimento de servidores e, fundamentalmente, às regras
expressas na Carta Magna.
Noutras palavras,
é preciso que o Poder Judiciário consolide os posicionamentos
descritos outrora, de modo a não permitir que princípios
constitucionais tornem-se letra morta, sendo, por vezes, aviltados
pela Administração Pública em sede de concursos públicos Brasil
afora.
NOTAS
[1]
DA SILVA, José
Afonso.
Curso de Direito
Constitucional Positivo.
28ª Ed. Malheiros Editores. 2007. Pag. 679
[2] Art. 37 - (...)
III - o prazo de validade do
concurso público será de até dois anos, prorrogável uma vez, por
igual período;
[3] 1. O candidato aprovado em
concurso público fora do número de vagas previsto no edital tem
mera expectativa de direito à nomeação. Com isso, compete à
Administração, dentro do seu poder discricionário e atendendo aos
seus interesses, nomear candidatos aprovados de acordo com a sua
conveniência, respeitando-se, contudo, a ordem de classificação, a
fim de evitar arbítrios e preterições. 2.
A prorrogação do prazo de validade de concurso público é ato
discricionário da Administração, sendo vedado ao Poder Judiciário
o reexame dos critérios de conveniência e oportunidade adotados”.
(STJ, RMS 25501/RS, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, Quinta Turma, j.
18/08/2009, DJ 14/09/2009) (grifo nosso)
[4] TRIBUNAL
REGIONAL DO TRABALHO DA 19ª REGIÃO. 8ª VARA DO TRABALHO DE
MACEIÓ/AL. PROCESSO: 0001605-55.2010.5.19.0008. j. em 27 de maio de
2011.
[5] Art.
70. CF - A fiscalização contábil, financeira, orçamentária,
operacional e patrimonial da União e das entidades da administração
direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade,
aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida
pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de
controle interno de cada Poder. (grifo nosso)
[6]
TORRES, Ricardo Lobo.
O Tribunal de Contas e o
controle da legalidade, economicidade e legitimidade.
Revista do TCE/RJ, nº 22. Rio de Janeiro, jul/1991, pp. 37/44.
[7]
JFSE, Ação Civil Pública
nº 0005370-43.2010.4.05.8500, 2ª Vara Federal, j.17/05/2011.
[8] STF, RE 581113/SC, Rel. Min. DIAS TOFFOLI J. 05/04/2011, Primeira Turma, DJe 31/05/2011.